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Artigo
Punição e sociedade de controle
Por Edson Passetti
10/05/2008

Desde o final da Segunda Guerra Mundial há dois momentos marcantes da institucionalização da punição na sociedade de controle. O primeiro compreende o período de redimensionamento dos direitos humanos, advindos da declaração de 1948, e que se dirige à preservação da vida e ao combate aos regimes políticos totalitários. Com ele, obtêm-se, também, repercussões favoráveis às reformas das condições de vida nas prisões, relativas às insalubridades, torturas e constrangimentos a prisioneiros e seus familiares. O segundo, mais recente, procede dos anos 1980, e é próprio do liberalismo pluralista: emerge com o programa de tolerância zero em Nova Iorque, repercute com a Declaração dos Princípios da Tolerância, de 1995, e culmina com políticas de penas alternativas, combinadas com variadas maneiras de dar continuidade à justiça penal.

As novas e velozes reformas ampliaram o rigor punitivo no encarceramento e introduziram outras maneiras de punição rápida e flexível a variadas condutas. Seu escopo é o de atingir um maior leque de novos infratores na estratificação social, e, com isso, democratizar a punição até dar cabo à seletividade penal e às impunidades. Estamos diante de uma situação paradoxal: de um lado, os direitos humanos sustentaram fiscalizações aos excessos da prisão, da justiça penal e dos regimes políticos totalitários, mas, de outro lado, suas práticas foram incapazes de estancar as emergenciais medidas de segurança de Estados para legalizarem discriminações e uso legítimo da tortura, após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, e que tendem a se institucionalizar.

Direitos humanos e direitos de minorias passam a ser partituras básicas para a participação democrática, a garantia à variedade cultural e moralização de condutas. Nova Iorque passou a ser a imagem e o modelo da segurança na sociedade de controle: punir mais e com flexibilidades, segundo o regime de tolerância zero; garantir direitos de minorias e articulá-los por meio de elites minoritárias distribuídas pelos espaços demarcados das cidades; crer na indústria do controle eletrônico; contar com polícias locais e a população organizada para gerenciar o regime das variadas penalizações.

A sociedade de controle, assim, une fluxos contínuos de participação de indivíduos e grupos desde o trabalho até o controle das penalidades; combina direitos e exceções em arranjos democráticos que incorporam eleições, influências e tomada de decisão, desde a vida de cada um até o âmbito estatal; institucionaliza a participação democrática, a ampliação das punições e a governamentalização com máquinas cibernéticas.

Diversas maneiras de fazer justiça penal aparecem. Os defensores do sistema de penas alternativas argumentam que sua aplicação geral reduz o uso indevido da prisão. O resultado foi o oposto e levou ao aparecimento da supermax, nos Estados Unidos, cujo correlato brasileiro é o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Antes, ainda nos anos 1970, aportou a proposta do direito penal mínimo, propondo a redução e a limitação da tutela penal. Atualizou a corrente do garantismo, procedente do pós-guerra, pautado no estado democrático de direito, cuja meta era reduzir a pena da infração informada ao sistema e, ao mesmo tempo, livrá-lo das exceções. Atualmente, aproxima-se a justiça restaurativa articulando a moral da religião à jurídica e trazendo a comunidade, onde se encontra vítima ou o vitimizador, para o campo da tomada de decisão. Assim, democratiza-se a decisão do mesmo tribunal. Por todos esses fluxos, não houve redução dos encarceramentos, nem das punições, apenas firmou-se uma moderada variação conservadora do regime das penas.

As reformas penais não abriram mão do regime da penalização universal, até mesmo quando considerou o infrator como vítima; em poucas palavras, a noção de vítima, dilatou ainda mais o controle sobre a população considerada vulnerável, seja por viver em supostas áreas de risco, seja por ser composta, potencialmente, por pessoas tidas como risco para a sociedade. Apareceram os georeferenciamentos, as políticas de inclusões sociais, as ações ampliadas de ONGs, as parecerias público-privadas e, aos poucos, as zonas de riscos, periferias, favelas ou comunidades se constituíram em campos de concentração governados por elites minoritárias, suas polícias, organizações não-governamentais e Estado. A punição na sociedade de controle se expandiu e é governada, democraticamente, por meio do incentivo à participação não só na política de Estado, mas na vida da comunidade-campo de concentração. Formou-se uma consensual cultura cidadã dos direitos e das penas.

Mas, a sociedade de controle não funciona somente por esse fluxo. Ao lado dos direitos, das penalizações flexíveis e ampliadas, mapeamentos de áreas e pessoas de risco e em risco, governo por elites minoritárias, inclusões e mais inclusões, vida livre nos campos de concentração da cidade, a prisão também não é mais a mesma. Ela deixou de ser a expressão do medo e da revolta contra o insuportável, por quem se atreveu a atentar contra a propriedade ou o moralizador; por quem, num átimo intempestivo, tirou a vida de alguém; pelo conjunto de infelizes, otários e fracassados apanhados pela insuperável seletividade do sistema penal. A prisão se tornou uma empresa e um oportuno aparato jurídico, assistencial, social e diplomático nas mãos dos presos. Nos Estados Unidos ela foi integrando a população de rua em suas relações, propiciou encontros com encarcerados, formação de novas famílias com casamento consagrado, entrega aos desígnios religiosos, além de compor empreendimentos econômico-sociais, segundo as regras da legalidade e das ininterruptas ilegalidades. Essas características, no Brasil recente, combinam-se com o domínio do tráfico de drogas e de seu sistema próprio de funcionamento administrativo, justiça, policiamento e negociação com o Estado sobre a produtividade e o apaziguamento na prisão. A sociedade de controle, com sua variada penalização, facilitou a emergência da administração da prisão pelos próprios presos, tanto pelo viés repressor e violento da exceção do PCC (Primeiro Comando da Capital), em São Paulo, quanto por meio dos direitos que levam à democratização das decisões, como no caso de Bragança Paulista (SP), ou mesmo pela participação pelo voto nas eleições, como Porto Alegre (RS).

A sociedade de controle também não supera a relação legalidade-ilegalidade herdada da sociedade disciplinar, mas proporciona a descentralização das redes para os fluxos, estabelecendo variadas formas de participação em que, e de certa maneira, todos acabam incluídos, desde o morador de rua, o prisioneiro, os múltiplos delatores. O dispositivo para tal, não pode deixar de ser paradoxal e chama-se campo de concentração: na prisão, na periferia, nos condomínios luxuosos, no Estado, vive-se de direitos e exceções articulados.

Seja pelo Estado, em nome da defesa e da segurança da população e do planeta, seja no ermo de um campo de concentração, a segurança se torna o dispositivo confiável para acabar com as infrações, seus agentes e seus espaços; para tal, transformou-se os programas de tolerância zero em política de tolerância zero, articularam direitos com torturas, inclusões segregadoras com participação, inibições de resistências com participação democrática. O capitalismo liberal pluralista vive sua realidade e sua utopia pela conservação moderada dentro e fora da prisão, nos fluxos entre os próprios campos de concentração, nas empresas, nas universidades, no Estado, com a certeza que a vigilância eletrônica é capaz de controlar a vida de cada um e qualquer espaço.

Por fim, deve-se destacar que os direitos humanos e os direitos de minorias também visibilizaram a freqüência nada surpreendente das violências contra crianças cometidas por pais, parentes e demais instituições, e expuseram os efeitos da cultura do castigo que o humanismo moderno e contemporâneo são incapazes de conter e sequer diminuir, com sua atual cultura cidadã. Essa pletora de direitos mostrou seus derrisórios começos, feitos de força, deveres, moral e arrogância. Humanos e de minorias, eles reiteram a crença no universal em que o proibitivo prepondera, a começar pela liberdade negativa dos liberais, a soberania do pai, a disciplina que busca o corpo útil e dócil, o controle inteligente produtivo e participativo, a retórica maioria, a reforma eficiente e ampliada do sistema de castigos e recompensas.

A vida está onde há resistências e invenções, onde há transbordamentos; nas experimentações surpreendentes de si e do espaço, ali onde começa a política com ética, no próprio indivíduo e nas suas relações de poder e liberdade; no que desmorona para passar, no que provoca vacúolos; na liberdade de arruinar a comunicação constante, o constrangedor acasalamento entre religião e razão. Como atentam os abolicionistas penais, o fim da punição começa em cada um e numa prática que impeça encarceramentos.

Edson Passetti é professor do Depto de Política e Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, coordena o Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) (link www.nu-sol.org ) e é autor, entre outros livros de Anarquismos e sociedade de controle (2003); Anarquismo urgente (2007). Dentre os cursos que organizou destacam-se: Curso livre de abolicionismo penal (2004); e com Salete Oliveira A tolerância e o intempestivo (2005) e Terrorismos (2006).