Dificuldades e avanços nos recursos de inclusão para daltônicos

Por Mateus Bravin Lopes e Laura Segovia Tercic

Em um mundo dependente de imagens e do ambiente virtual, os cidadãos que têm dificuldade em perceber diferenças de colorações e, assim, distinguir informações contidas em fotos, mapas, símbolos e esquemas podem contar com algumas inovações.

Os portadores do daltonismo, condição assim conhecida por causa de John Dalton (1766-1844), físico-químico inglês que tinha a condição e descreveu seus próprios sintomas, enfrentam mais desafios do que se costuma reconhecer. Débora Gusmão Melo, professora no Departamento de Medicina da UFSCar e uma das autoras do estudo “Os ‘daltônicos’ e suas dificuldades: condição negligenciada no Brasil?”, afirma que a vida profissional de adultos daltônicos pode ser afetada pela condição. Uma situação corriqueira é exemplificada no caso da interpretação de planilhas e tabelas, essencial a inúmeras áreas. 

Já em relação à infância, as principais dificuldades, segundo Débora, estão relacionadas à vida escolar. “Quando o daltonismo não é identificado, muitas vezes os professores exigem da criança a execução de tarefas que não são compatíveis com sua visão de cores, sem que sejam feitas as adaptações necessárias”. Débora relata ainda que, no Reino Unido, crianças em idade de alfabetização são avaliadas pelos próprios professores, que adequam as atividades educacionais de acordo com as necessidades de integrantes daltônicos no grupo.

Não é apenas o desempenho escolar que é afetado no desenvolvimento de uma criança com daltonismo. Miguel Neiva, designer gráfico português criador do sistema ColorAdd para identificação de cores, comenta também sobre o aspecto social. “Há o bullying que uma criança sofre, muitas vezes até do professor, que não entende porque ela pintou a árvore de vermelho, ou não conseguiu interpretar um gráfico. Ou seja, situações constrangedoras”.

No Brasil, a falta de padronização no método de avaliação da capacidade em identificar cores para obtenção da carteira de habilitação levou a muitas negativas de renovação nos anos 2000. Houve casos de motoristas que dirigiam há décadas e tiveram sua habilitação não renovada por terem sido examinados pelo teste Ishihara, que não avalia a pessoa em situação real de trânsito. Como decorrência disso, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran), em 2012, determinou que “candidatos à direção de veículos devem ser capazes do reconhecimento das luzes semafóricas em posição padronizada, prevista no Código de Trânsito Brasileiro”.

No entanto, ainda há casos de negativa a motoristas aptos. Porém, segundo Luiz Fernando Castilhos Silveira, advogado e coordenador da pós-graduação em direito civil e processo civil da Universidade de Caxias do Sul, “consegue-se judicialmente a habilitação do candidato desde que ele seja, efetivamente, apto, ou seja, consiga obedecer à sinalização de trânsito”.

Para Silveira, é um erro tanto da legislação quanto do senso comum considerar a condição de discromatopsia algo binário, ou seja, ou a pessoa é daltônica ou não é. “Existem formas e graus diversos e acho um ponto grave todos serem tratados de maneira igual quando não há igualdade de condições”. Em junho de 2019, o Tribunal de Justiça da Bahia reconheceu ilegalidade na reprovação de candidato daltônico para vaga na Polícia Civil, pois não havia indicativo específico no edital de que o daltonismo o impediria de exercer o cargo.

Além do trânsito e de questões legais, há diversos outros aspectos da rotina e uso de produtos que implicam em alguma discriminação para os que têm dificuldades em diferenciar cores e tonalidades. Ao longo do tempo, Miguel Neiva recolheu informações de pesquisas ao redor do mundo e realizou as suas próprias para melhor entender a demanda dos daltônicos em diversos setores. Situações como procurar linhas de metrô, identificar os sistemas de direcionamento de alas em hospitais e estacionamentos, participar em jogos e escolher combinações de roupas estão entre as principais nos levantamentos.

De acordo com a OMS, o daltonismo atinge 350 milhões de pessoas no mundo, sendo 8 milhões no Brasil. Apesar de não haver cura (na maior parte dos casos a origem é genética, sendo a maior proporção dos afetados do sexo masculino), são várias as iniciativas que pretendem facilitar a vida do portador da condição, tornando-o mais integrado com o mundo dos não-daltônicos que o cercam. A mais famosa tecnologia atual talvez seja a dos óculos de marcas com Enchroma e Pilestone, cujos vídeos de reações ao uso circulam na internet e criaram grande expectativa no público-alvo.

No entanto, essa criação enfrenta certa polêmica entre usuários e especialistas, pois o valor do item o faz pouco acessível. Também porque, segundo estudo publicado em 2018 pela Universidade de Granada, os óculos não tornam a visão de um daltônico comparável à de alguém sem a condição, além de não atender igualmente os diferentes tipos de daltonismo.

Outros recursos criados para o cotidiano de quem possui alguma das formas de daltonismo incluem ferramentas de filtro de tela em sistemas operacionais como o Windows, que aumentam os contrastes de cores nas imagens; aplicativos de celular sincronizados com os semáforos, que avisam das mudanças; e técnicas de conversão de páginas da internet para um formato de texto que indica quais palavras e termos estavam ressaltados em diferentes cores no texto original.

O sistema de códigos gráficos criado por Miguel Neiva é uma linguagem universal, e o realizador comenta que o sistema poderia ter surgido há muitos anos, pois não é dependente de avanços tecnológicos. “Mas, de fato, a sociedade esqueceu-se dos daltônicos”. A iniciativa está em mais de 100 países e já recebeu diversos prêmios relacionados à acessibilidade digital, transporte e direitos humanos.

Basicamente há três símbolos para as cores primárias (vermelho, amarelo e azul) e a combinação desses três símbolos em pares forma o próprio símbolo das cores derivadas da junção das cores primárias (laranja, roxo e verde), além de dois símbolos próprios respectivamente para branco e preto que, adicionados aos de cores, indicam tonalidades mais claras ou mais escuras da cor em questão.

O código pode ser usado em diferentes produtos. A ideia não é que, por exemplo, a criança daltônica use lápis de cor específicos, mas sim que os símbolos estejam presentes nos lápis de todas as crianças, evitando, dessa forma, a discriminação. Segundo Miguel, “o público alvo é o daltônico, mas não só. É para chegar a todos”.

A empresa atua com parcerias públicas e privadas, nacionalmente e internacionalmente. Em Portugal, o código já está presente em bandeiras de sinalização de perigo em todas as praias. Nos Estados Unidos houve a produção do jogo popular UNO em versão inclusiva com o ColorAdd.

No Brasil há parcerias com ONGs, com a instituição de ensino Mackenzie, que planeja incluir o código em seu material didático, e com o Supremo Tribunal Federal, que assinou acordo para iniciar a aplicação do sistema de codificação em publicações institucionais, a começar pelo acervo histórico-cultural. A ideia é que a linguagem e o reconhecimento dos símbolos se torne cada vez mais comum pela população em geral.

Percebe-se no Brasil certo atraso em lidar com questões de acessibilidade para casos de deficientes visuais, auditivos e de mobilidade. Luiz Silveira aponta que “ainda há poucos elevadores com avisos sonoros para deficientes visuais, inclusive em prédios públicos”. E, enquanto a tecnologia avança, as instituições necessitam instrumentalizar-se para resolver problemas básicos de desorientação desses cidadãos.

Mateus Bravin Lopes é formado em audiovisual e cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

Laura Segovia Tercic é bióloga formada pela USP e cursa a especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.