Divulgação científica: faça agora ou cale-se para sempre

Por Herton Escobar

A comunidade científica não pode mais delegar à imprensa a responsabilidade de educar a sociedade sobre a importância da ciência — porque não cabe a ela essa responsabilidade, e mesmo que coubesse, ela não tem condições de fazer isso sozinha. O abismo é fundo demais para ser preenchido só com folhas de jornal e alguns minutos de televisão.

A divulgação científica sempre foi deficiente no Brasil, mas nunca fez tanta falta quanto agora. A crise orçamentária que foi imposta à ciência brasileira nos últimos anos escancarou o abismo de comunicação que existe entre a comunidade científica-acadêmica e a sociedade da qual ela faz parte e à qual ela deveria servir. Um abismo que sempre existiu, mas nunca incomodou, porque nenhum dos lados fazia muita questão de conversar com o outro. Os cientistas não precisavam do apoio da sociedade para conseguir recursos para suas pesquisas — bastava impressionar seus pares nas agências de fomento, publicar um paper no final, e estava tudo certo. A sociedade, por sua vez, nunca enxergou (nem foi ensinada a enxergar) a importância ou a relevância da ciência para as suas vidas; portanto, não havia muito sobre o que conversar.

Agora, a conversa é outra. O dinheiro secou, e os cientistas se viram obrigados a fazer algo que nunca precisaram fazer antes: convencer as pessoas de que a ciência é importante e merece (precisa!) ser financiada pelo poder público, para o bem de todos. Não basta mais convencer os seus pares do mérito científico de seus projetos — “pregar para os convertidos”, por assim dizer. Agora, é preciso convencer também os ateus, agnósticos e desinformados de todo tipo, incluindo (em especial e em última instância) a classe política do nosso país — que, convenhamos, mal sabe o que fazer ciência significa e, mesmo que soubesse, tem outras prioridades na agenda.

A comunidade científica, sozinha, não tem poder de fogo para convencer a classe política de nada. Precisa da sociedade. De nada (ou quase nada) adianta escrever cartas e manifestos às autoridades, se quando vossas excelências olharem pela janela de seus gabinetes não virem uma multidão enfurecida, dizendo que não votará mais neles se não investirem mais dinheiro na ciência — figurativamente falando. Qual é o custo político de se cortar o orçamento da ciência hoje em Brasília? Muito baixo, infelizmente. Os cientistas vão ficar furiosos, é claro; mas e daí? Se a sociedade não se importa com a ciência, porque vossas excelências deveriam se importar? Ninguém vai perder uma eleição por causa disso.

Argumentos, modelos e estatísticas não faltam para provar, por A mais B, que sem investimento em ciência, tecnologia e inovação não existe desenvolvimento econômico, social ou intelectual. Tudo que o Brasil (e qualquer outra nação do mundo) produz é fruto da ciência: a soja da agricultura, o aço da siderurgia, a cana da biotecnologia, as vacinas da saúde, o petróleo do pré-sal, o café do cafezinho e o leite do café da manhã… nada disso existiria sem ciência e tecnologia, em grande parte (ou totalmente) desenvolvidas no Brasil. Mas as pessoas não sabem disso.

Lógicas e verdades científicas no papel não bastam. Para pressionar os políticos é preciso, primeiro, convencer a sociedade; e é aí que entra (ou deveria entrar) a divulgação científica. Para que as pessoas defendam a ciência, elas precisam, primeiro, entender porque a ciência é importante para a vida delas; e ninguém melhor para explicar isso do que os próprios cientistas. A pesquisa Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil 2015 [clique aqui para baixar o Sumário] mostra que as pessoas confiam nos cientistas mais do que em qualquer outro profissional (inclusive jornalistas e médicos). A maioria, infelizmente, não é capaz de citar o nome de um único cientista ou instituição científica brasileira; mas a percepção geral, ainda assim, é de que os cientistas são pessoas confiáveis, bem informadas e bem intencionadas. A comunidade científica precisa tirar proveito dessa confiança — no bom sentido.

A imprensa tem uma papel importante nessa história também, como fonte de informações e formadora de opiniões; mas não pode ser o único canal de comunicação entre a comunidade científica e a sociedade. É como tentar apagar um incêndio com um regador. Os jornalistas que se dedicam à cobertura da ciência são poucos, e o espaço que a grande mídia costuma dar ao tema é pequeno. Poderia (e deveria) ser maior, sem dúvida; mas vale lembrar que a missão primordial do jornalismo é informar a sociedade, não educá-la. A imprensa só vai noticiar aquilo que é inédito, e a maior parte do que falta à sociedade saber sobre a ciência não é notícia, é conhecimento.

Ou seja, a comunidade científica não pode mais delegar à imprensa a responsabilidade de educar a sociedade sobre a importância da ciência — porque não cabe a ela essa responsabilidade, e mesmo que coubesse, ela não tem condições de fazer isso sozinha. O abismo é fundo demais para ser preenchido só com folhas de jornal e alguns minutos de televisão.

Então, qual é a solução? A comunidade científica precisa acordar para a realidade, sair da sua torre de marfim acadêmica, e começar a dialogar direta e diariamente com a sociedade. Até alguns anos atrás, era até justo cobrar mais atenção da mídia, pois não havia outros meios práticos e efetivos disponíveis para se comunicar com a sociedade de maneira regular. Para fazer uma informação chegar à sociedade, o cientista precisava de um interlocutor: o jornalista. Agora, não. Graças à internet e às redes sociais, qualquer cientista pode se comunicar hoje diretamente com a sociedade, sem necessidade de intermediário, por meio de sites, blogs, vídeos, podcasts e outras plataformas diversas. Em muitos casos, basta uma conta no Facebook.

Essa tem sido minha mensagem principal nos vários eventos a que sou convidado para falar sobre divulgação científica: Faça sua própria mídia! Se você tem algo a dizer, diga! Não espere que outros digam por você. Mostre para a sociedade porque a sua pesquisa é importante; o que a sua ciência já fez e ainda pode fazer por ela.

Ao dizer isso, pode parecer que estou dando um tiro no pé, tornando-me desnecessário. Afinal, na minha função de jornalista, eu dependo da obtenção de informações exclusivas para ser um bom repórter. Nesse caso, quanto mais as pessoas dependessem de mim para se comunicar com a sociedade, melhor. Mas não. Como já indiquei acima, jornalismo científico e divulgação científica são atividades distintas, com finalidades distintas. O jornalismo só se importa com aquilo que é inédito, enquanto que a divulgação pode tratar de qualquer assunto, a qualquer hora e em qualquer lugar.

É um desafio que cabe tanto aos cientistas individualmente quanto às suas instituições. As universidades e institutos de pesquisa do Brasil precisam urgentemente criar programas de divulgação científica, bem estruturados, bem financiados e com recursos humanos qualificados na área de comunicação. É uma questão de sobrevivência perante a opinião pública. Não basta ter uma assessoria de imprensa — que aliás, na maioria dos casos, existe muito mais para blindar as instituições da imprensa do que ajudá-la. São coisas diferentes.

Aqui vale fazer uma analogia com a questão da inovação. Muito se fala (com razão) que não existe uma “cultura de inovação” na academia brasileira, e muitas universidades criaram núcleos ou agências institucionais nos últimos anos, dedicadas a fomentar essa cultura e auxiliar seus pesquisadores no desenvolvimento de projetos, obtenção de patentes, contatos com a indústria, negociação de contratos etc. Nem todo acadêmico serve para ser um empreendedor, mas para aqueles que têm essa vocação, a ajuda está disponível. E assim as coisas têm andado.

O mesmo vale para a divulgação científica. Ela não vai acontecer por conta própria, num passe de mágica. É preciso fomentar essa cultura dentro da academia e criar uma infraestrutura de apoio minimamente adequada, para que aqueles que tiverem interesse de trabalhar com isso consigam fazê-lo com um mínimo de sucesso. Nenhum pesquisador deve ser obrigado a fazer divulgação científica, mas todos deveriam ser incentivados a fazê-lo. Certamente, em todos os departamentos e faculdades desse Brasil afora há professores e jovens cientistas interessados em trabalhar com divulgação científica, precisando apenas de um pouco de apoio e orientação para começar.

Recentemente fui procurado pelo diretor de um importante instituto da Universidade de São Paulo (USP), que conheço há muitos anos, e o dilema dele era exatamente esse: “Queremos conversar com a sociedade, mas não sabemos como. Nos ajude.” Eu ajudei com algumas dicas, claro, mas quem tem que dar esse apoio são as instituições, não a imprensa.

Já aviso que não vai ser fácil, e que os resultados não vão aparecer do dia para a noite. A comunicação é uma arte que exige estudo, treinamento, experiência e qualificação para ser feita com qualidade. Não se pode esperar que um cientista saiba fazer comunicação, assim como é injusto esperar que um comunicador saiba fazer ciência. Você pode criar uma página na internet e enchê-la de conteúdo, fazer postagens diárias no Facebook, e de nada vai adiantar se esse conteúdo não estiver com a linguagem certa e a formatação ideal para o público-alvo que se deseja atingir. Não basta escrever algo cientificamente correto; é preciso trabalhar com plataformas multimídia, explorando ferramentas de vídeo, áudio, fotografia, desenho, animações. A concorrência pela atenção das pessoas no mundo digital é feroz, e o que não falta na internet são conteúdos inúteis ou esquecidos, que não atingem ninguém.

A divulgação científica não vai trazer o orçamento da ciência brasileira de volta, nem neste ano nem no próximo. É um investimento a longo prazo, de caráter educativo, para garantir (ou pelo menos tentar evitar) que situações críticas como essa voltem a acontecer no futuro. Essa consciência sobre a importância da ciência não vai surgir espontaneamente na sociedade, é algo que precisa ser construído, semeado e irrigado diariamente. Está posto o desafio.

Herton Escobar é jornalista especializado na cobertura de ciência e meio ambiente. Desde janeiro de 2000 é repórter do jornal O Estado de S. Paulo, com mais de 2 mil matérias publicadas em formato impresso e digital, sobre uma grande variedade de temas, abrangendo pesquisa básica, política científica, desenvolvimento tecnológico e inovação. Desde janeiro de 2015 é também colaborador internacional da revista Science.

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