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Físicas enfrentam preconceito em área predominantemente masculina

"Uma vez um colega me acusou de 'ganhar uma discussão científica' por estar usando perfume. Eu obviamente respondi que ganhei a discussão porque minha teoria era correta e a dele era errada. E porque sou mais inteligente que ele!", conta Márcia Barbosa, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente do grupo de trabalho sobre mulheres na física da União Internacional de Física Pura e Aplicada (IUPAP na sigla em inglês)). Nessa passagem, Barbosa retrata seu ponto de vista sobre uma situação vivenciada por mulheres que, ao optarem pelo campo das ciências físicas, entraram em choque com um mundo dominado pelos homens.

A física é uma área que realmente apresenta um número de pesquisadoras e estudantes mulheres bem menor do que de homens. Em 2000, dos estudantes de graduação em física no Brasil, 20% eram mulheres; entre os docentes, a participação de físicas era de 16%; entre os docentes com bolsa de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no nível 1A, o mais alto, as mulheres representavam apenas 1%. Esses dados exemplificam não só o quanto o mundo da física é masculino, mas também o fato de que, no Brasil, a presença feminina diminui à medida que o nível na carreira se torna mais alto, além de ser pequeno o número de mulheres em comissões ou cargos burocráticos.

Segundo Barbosa, entre os motivos para que o percentual de mulheres caia à medida que se cresce na carreira estão as dificuldades em conciliar família e profissão, uma vez que as tarefas de organização doméstica ainda são realizadas primordialmente pelas mulheres. E isso ocorre no mundo todo. Apesar de não existir uma pesquisa específica sobre o assunto, à pesquisadora parece óbvio que uma mulher "com dois empregos" não consegue executar com tanta eficiência seus papéis de pesquisadora e dona-de-casa.

A esse fator acrescenta-se o fato de o período da maternidade coincidir com o período de independência como cientista. Na maior parte dos países, a idade em que a mulher tem que conseguir um emprego e firmar-se como cientista é a mesma idade em que se preocupa em ter os seus filhos. Nesse sentido, na opinião da pesquisadora, é preciso mudar as regras de entrada nos empregos e as condições para obtenção de financiamentos e bolsas, que atualmente, se baseiam no princípio de igualdade. Essas medidas seriam necessárias para que se passasse a considerar as diferenças entre os sexos e a seguir o princípio de eqüidade. "Em muitos lugares, há uma idade ideal para se conseguir um emprego. Como as mulheres têm filhos, elas se atrasam e não conseguem esse emprego. Assim, 'idades limites' para emprego são um problema para as mulheres e, de uma forma subjetiva, isso afeta até mesmo países como o Brasil, onde o fato de ser jovem agrega valor", explica a pesquisadora.

Elisa Baggio Saitovitch, que é professora do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e que foi vice-presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF), lembra ainda que, como o Brasil está fora dos centros mais importantes onde se faz física, é muito relevante estabelecer colaborações e participar de conferências internacionais, o que pode ser também fonte de muito estresse para uma mulher que é obrigada a deixar para trás sua família pela necessidade de realizar compromissos profissionais no exterior.

Saitovitch chama a atenção para o fato de que, no CBPF, o número de mulheres que cursam doutorado no país, é maior do que as que realizam mestrado, o que pode ser um indicativo de que é mais fácil para os homens saírem do país para realizar seu doutorado no exterior do que para as mulheres. De fato, em 2002, das 30 bolsas concedidas pelo CNPq para atuação no exterior na área de física, 27,8 eram para homens e 2,2 para mulheres, apenas 7% do total.

No país, das 1.827,5 bolsas concedidas, 18% eram para mulheres, equivalendo a 15% do valor investido em reais (R$ 2.671.399 de um total de R$ 17.408.016). Ao considerar os projetos e investimentos em fomento à pesquisa, também no ano de 2002, 10 dos 103 projetos aprovados eram para mulheres. Outros indicativos da grande diferença que se tem entre mulheres e homens na física, são as porcentagens entre os sócios da SBF: em 2000, a sociedade era composta por 181 homens e 54 mulheres com grau de bacharel (apenas 23% do total), 522 físicos e 171 físicas com título de mestre (25% do total), e entre os doutores, eram 1.275 homens e 251 mulheres (16% do total).

Com relação à presença de mulheres em comissões e cargos burocráticos, Barbosa atribui à pequena representação feminina o efeito do "narcisismo". "É natural pensarmos que o bom é o igual a nós mesmos. E em um meio dominado por homens, isso significa que só homens são escolhidos", explica ela. Ou seja, é difícil para as mulheres quebrarem o "clube do Bolinha" já existente na física. Saitovitch, por sua vez, afirma que, de um modo geral, é mais fácil encontrar mulheres em posições e cargos burocráticos de caráter local, como chefes de departamento ou de grupos, do que em um nível de representação nacional, como comitês e conselhos. Ela confessa ainda que, embora não preste atenção quanto ao sexo de um candidato a trabalhar no seu grupo, ela acaba, de alguma maneira, tendo mais mulheres do que homens trabalhando com ela. A solução para a situação, segundo a professora da UFRGS, é gerar esforços para garantir um certo número de mulheres em comitês e órgãos decisórios e ter grupos de mulheres preocupados com a questão em cada universidade.

Preconceito
Márcia Barbosa conta que, durante sua carreira, sofreu preconceito por ser mulher e não encobrir o fato - ou seja, não deixar de lado sua aparência feminina. "Muitas mulheres cientistas se sentem constrangidas a se vestirem e se portarem como homens para poder ganhar o respeito deles, mas o fazem. Uma espécie de resposta ao efeito 'narcisismo'", diz. Ela acrescenta que há anos renega essa estratégia: ela é mulher e quer se parecer como tal. Em contrapartida, Saitovitch diz não ter sofrido preconceito por ser mulher enquanto estava na escola ou na universidade, talvez por ter sido muito boa aluna. Porém, de uma forma geral, ela observa que a comunidade mostra certos sinais de discriminação. "Embora existam pesquisadoras com produtividade (número de orientações, artigos e outros indicativos) alta, que ultrapassam a média dos pesquisadores no nível mais alto da bolsa de produtividade do CNPq, as mulheres não atingem esse nível, possivelmente porque o comitê assessor é composto por homens", exemplifica a professora.

Na opinião da presidente do grupo de trabalho da IUPAP, a presença feminina é importante na evolução futura da física, uma vez que a área está se tornando interdisciplinar. Entretanto, ainda não é possível saber qual o perfil ideal para essa nova fase: deve-se, portanto, abrir o leque de opções e, inclusive, viabilizar ao máximo a presença das mulheres na área. "Eu, particularmente, acredito que a nova ciência requer um pesquisador mais articulado e 'multitarefa', características tipicamente femininas", defende.

Já para Barbosa, a pequena presença feminina na física desde os cursos de graduação é resultado de dois problemas interligados: primeiro, a ausência de pesquisadoras que sirvam de modelo e inspiração e, segundo, o estereótipo de um cientista como sendo um nerd, feio e desarrumado - "que menina quer ser isso?", pergunta a pesquisadora. Além disso, para ela, a linguagem usada no ensino de física tem um "tom masculino" e precisa ser mudado.

A professora da UFRGS acredita ainda que é no ensino médio o momento de se conquistar as mulheres para a física. Dessa maneira, desafia os pesquisadores em ensino a atacarem o problema do olhar tipicamente masculino nessa etapa do ensino no Brasil. "Recebi o e-mail de uma menina de 15 anos que está freqüentando aulas extras de física. Ela está animadíssima com as aulas, pois são ágeis e objetivas e trazem os conceitos de física associados aos fenômenos e à vida. O ensino em física deveria se dedicar a estimular meninas como ela que representam o futuro da física brasileira", sugere a pesquisadora.

Barbosa e Saitovitch concordam que essas questões de gênero precisam ser discutidas em maior profundidade, identificando-se quais dos problemas são comuns a todas as áreas da ciência e quais são específicos da física. Com esse intuito, elas estão organizando a conferência Mulheres Latino-Americanas nas Ciências Exatas e da Vida, a ser realizada no Rio de Janeiro, de 3 a 5 de Novembro de 2004.

História da presença feminina na física no Brasil
O acesso da mulher brasileira à educação é recente. Enquanto o país era colônia de Portugal (até 1822) e nos primeiros 50 anos após sua independência, muitas das famílias ricas mandavam os seus filhos para estudar em Portugal. No entanto, até 1879, a mulher não era aceita na universidade, e enviar moças para estudar no exterior nunca foi uma prioridade para as famílias brasileiras. A mulher só teve acesso à educação superior quando a primeira universidade brasileira foi aberta, em 1912, e, ainda assim, elas tinham preferência pelos cursos de humanidades.

A participação efetiva das mulheres, no caso específico da física, ocorreu somente após a criação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, e do início, no mesmo ano, do primeiro curso de física no Brasil, organizado por Gleb Wataghin, o pai da física moderna no país. Antes disso, engenheiros com um bom conhecimento de física eram formados pela Escola Politécnica, que, no entanto, por ter um caráter militar, não aceitava a presença de mulheres. Assim, no período entre 1810 e 1920, a mulher brasileira não contribuiu como profissional da física no país.

Somente a partir dos anos 1930, as mulheres começaram a atuar na física. Dessa fase, pelo menos três mulheres merecem destaque, por terem sido pioneiras no cenário brasileiro ou ainda estarem atuando. A primeira física brasileira, Yolande Monteux, formou-se em 1937 e foi uma das pioneiras no estudo de raios cósmicos, tendo feito parte do grupo de pesquisadores de Gleb Wataghin, que contava com nomes como Marcelo Damy de Souza Santos, Paulus Aulus Pompéia, Mario Schenberg e Oscar Sala.

Em 1943, formou-se Sonja Ashauer, que, no mesmo ano, seguiu para a Inglaterra e se tornou a primeira física brasileira a colar o grau de doutora, na Universidade de Cambridge. Em cartas trocadas com Gleb Wataghin, Ashauer revelava uma vocação incomum, para a época, de uma jovem pela física teórica, num ambiente francamente masculino. Após distinguir-se pelos trabalhos que lhe valeram o doutorado e ser eleita membro da Cambridge Philosophical Society, ela inesperadamente interrompeu sua carreira.

Já Amélia Império Hamburger (leia resenha nesta edição) graduou-se em física em 1954 e, em 1967, obteve o grau de doutora na Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos. Desde 1964, ela é professora da USP, onde atua, nos dias de hoje, como pesquisadora na área de história da ciência. A professora teve experiência com a organização dos arquivos históricos do Instituto de Física da USP e também um contato pessoal com figuras importantes nos primórdios das pesquisas em física moderna no Brasil, como o brasileiro Mário Schenberg, o italiano Giuseppe Occhialini e o norte-americano David Bohm.

Engenheiras do ITA eram vigiadas por seguranças
Foi por influência de um professor de matemática, engenheiro civil, e pelo Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA) ficar próximo de Caçapava, cidade onde nasceu, que Thais Franchi Cruz resolveu ser engenheira. Assim, ela se tornou a primeira mulher em muitos itens: a primeira a se formar como militar; a primeira a fazer o curso de engenheira eletrônica do ITA e o curso de engenharia de vôo do Centro Técnico Aeroespacial (CTA); e a primeira engenheira de ensaio em vôo da FAB em asa fixa - ou seja, em avião, e não em helicóptero, formada em 2002.

A recepção dos colegas foi boa. Havia muito tempo, os veteranos eram favoráveis à chegada de meninas na escola. "Eu sou da segunda turma de mulheres formada no ITA e a primeira que se formou como militar".

Pelo fato de ser mulher, a primeira dificuldade ao chegar no ITA foi o fato de "nós, bixetes, termos que morar no Hotel de Trânsito dos Oficiais, e não no alojamento como os nossos colegas. Isso foi em caráter temporário, mas nos privou de um convívio maior com os colegas de nossa turma e de participar com eles dos trotes dados pelos veteranos".

Também não era fácil encontrar um local para estudar com os colegas de turma. Além dessa falta de infra-estrutura por parte da escola em nos receber, a reitoria tinha receio do convívio entre os alunos e alunas no alojamento. "Logo que nos mudamos para lá, havia um vigia à noite, na entrada do alojamento feminino, e um soldado o dia todo no hall do alojamento masculino, para garantir a 'segurança'." Tirando esses fatos pitorescos, Thais Cruz garante nunca ter sofrido algum tipo de preconceito pelo fato de mulher.

Hoje, com 24 anos e cursando o mestrado em engenharia eletrônica no ITA, ela trabalha no Centro Técnico Aeroespacial (CTA), com Ensaio em Vôo, que é a atividade de obtenção e análise de dados adquiridos em um veículo operacional, protótipo ou de pesquisa, com o objetivo de caracterizar o seu desempenho. Esse veículo pode ser uma aeronave, um míssil, um estágio de foguete, uma cápsula de reentrada na atmosfera ou um satélite.

 
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Atualizado em 10/12/2003
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