Febres odiosas

Por Carlos Vogt

No século XIX, mais de 3 mil pessoas foram, durante nove anos, vitimadas pela febre amarela no município de Campinas.

Luiz Roberto Camargo Penteado, estudante de medicina em Paris, e a professora Rosa Beck, suíça, apaixonaram-se e ficaram noivos. Ao final do curso, ele volta a Campinas. Ela, para fazer-lhe uma boa surpresa, movida pelos sentimentos, decide no ano seguinte à partida do amado, embarcar para o Brasil, onde chega em fevereiro de 1889, no porto de Santos. Contraíra, contudo, na passagem pelo Rio de Janeiro, onde grassava uma epidemia de febre amarela, o vírus que a levaria, sem que encontrasse o noivo, e que se espalharia por seis epidemias ao longo de quase uma década. Luiz Roberto Camargo Penteado, não suportando a dor da perda, suicida-se dois dias depois.

A EPTV produziu uma série especial sobre o tema, denominada A peste, para o Jornal da EPTV, 1ª edição, que foi ao ar de 15 a 18 de maio deste ano e que trata, com elegante objetividade jornalística, esse episódio de amor e luto marcante na história romântica e de saúde pública de Campinas e região.

Certamente, o escritor Eustáquio Gomes, autor do “romance bandalho” A febre amorosa (Geração Editorial, 2001. Primeira edição, Emu Editores, 1984), teve, para a criação dessa obra, a motivação da história verídica da infelicidade dos amantes no contexto trágico da epidemia em Campinas. Mas como o subtítulo do livro previne, a trama agora vem em folhetim moderno, breve no estilo, certeiro na ironia, contundente no humor e envolvente na narrativa.

O caso amoroso do médico republicano Luís Alvim e de Angélica, casada com um velho barão da monarquia, em seus fins, dá os elementos essenciais para, no contexto da grande epidemia de febre amarela de 1889, a alegoria satírica em relação aos embates de poderes e de formas de regimes políticos, do romance de Eustáquio Gomes.

São muitas as obras de ficção que tratam de temas relacionados às epidemias no Brasil, como é o caso do romance Sonhos tropicais (1992), de Moacyr Scliar, que teve, inclusive, uma versão cinematográfica, no filme dirigido por André Sturm, em 2002.

Scliar, que já transformara Oswaldo Cruz em protagonista de seu romance, tem, de fato, uma predileção pelo personagem histórico que se constitui em referência fundamental para as políticas e para o imaginário da saúde pública no país (ver Folha de S.Paulo. “Ciência”, domingo, 07 de novembro de 2004). Nesse sentido, vale a pena ler o plano de aula preparado por Scliar sobre a relação dos brasileiros com suas doenças tropicais, publicado na revista Carta Capital, no dia 28/02/2011, sob o título “O Brasil e suas epidemias”.

O tema da febre amarela é recorrente na literatura, tanto quanto a doença é persistente no país.

Machado de Assis o menciona no capítulo LVI de Dom Casmurro, publicado em 1899;  Nhã-loló, noiva de Brás Cubas, no romance Memórias póstumas de Brás Cubas, falece, em 1850, vítima da primeira grande epidemia da febre, que acaba por ajudar na aprovação da lei que abole definitivamente o tráfico, por suspeita de que o flagelo vinha com o “infame comércio”. Helena, personagem do romance de mesmo nome, sucumbe também à febre que toma “conta enfim da pobre moça”, como se pode ler no capítulo XXVIII do livro. Para referências mais precisas sobre o assunto, o livro de Sidney Chalhoub – Machado de Assis historiador (Cia. das Letras, 2003) é mais do que indicado.

O próprio Moacyr Scliar, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 01 de dezembro de 2007, comenta o livro O médico doente, de Drauzio Varella (Cia. das Letras, 2007), no qual o autor narra sua triste experiência com a contração da febre amarela em uma de suas viagens de pesquisa à Amazônia.

Ainda sobre a doença no século XIX, o historiador português João Pedro Marques publica, em 2010, o romance Os dias de febre (Porto Editora), que narra o reencontro, depois de 20 anos, numa Lisboa acometida pela febre amarela, de Elvira Sabrosa e do inglês Robert Huntley.

Esse, como se vê, é um tema e uma circunstância recorrentes na literatura e, infelizmente, na realidade histórica e social do Brasil e mesmo em suas origens europeias.

No caso do Brasil, o problema está longe de ser resolvido e a recorrência da doença nos últimos anos mostra que, por várias razões, inclusive a resistência civil organizada às vacinas, continua a ser um grave problema para as políticas de saúde pública e um ingrediente apimentado no tempero do imaginário social sobre as epidemias de febres tropicais, amorosas, ou odiosas, conforme o grau de gravidade do problema que a população efetivamente enfrenta e que a ameaça.