Juarez Xavier: ‘Onde há racismo, há machismo, e onde há racismo e machismo, há supremacismo de classe’

Por Rafael Revadam

Formado em jornalismo, com mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP, Juarez Tadeu de Paula Xavier é professor da Unesp no campus de Bauru. Com cerca de 30 anos de experiência no jornalismo, é também colunista sobre diversidade da Rádio FM/Unesp e membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Pesquisadores e Comunicadores em Comunicação Popular, Comunitária e Cidadã (ABPCOM). É coordenador do Núcleo Negro Unesp para a Pesquisa e Extensão (Nupe). No ano passado, o professor foi esfaqueado e sofreu ofensas racistas no Dia da Consciência Negra.

Você diz que as pessoas não têm vergonha de serem racistas. Acredita que essa postura tem um respaldo político atualmente?

Acho que sim. Desde 2016 um núcleo de ideias com foco no preconceito racial, de gênero e de classe social, perdeu qualquer freio no debate político. Perdeu-se a ideia do respeito às elaborações políticas que estavam sendo formadas desde 1988, conquistas de mulheres, negros, gays, lésbicas, trans, indígenas, populações quilombolas, tudo que foi um grande arco de conquistas na Assembleia Nacional Constituinte e dos movimentos sociais.

Há um processo sistemático de violência, em todas as áreas. Observamos isso na campanha do Donald Trump nos Estados Unidos, em que ele perdeu realmente qualquer senso de respeito civilizacional e republicano. Depois, foi replicado nas eleições da Alemanha, da Inglaterra, na França, na Itália, e partidos de extrema direita cresceram.

Houve uma articulação desde 2008 no mundo, e no Brasil a partir de 2016, com o que hoje já se sabe, o golpe institucional que tirou da Presidência da República uma presidenta legitimamente eleita e abriu-se um espaço assustador de violência com foco étnico-racial.

Na edição da ComCiência sobre saúde mental, o psicólogo Paulo Amarante também entrou nesse contexto do impacto político. Ele falou que quem está no poder define quem é normal, quem é aceito e quem não é. Podemos trazer esse recorte para a questão racial?

Sem dúvida, e podemos trazer o recorte da saúde mental também. Enfrentar o preconceito, a visão preconcebida, a discriminação, a segregação física e material, a violência sistemática que leva a altos índices de mortalidade da população negra, afeta profundamente a saúde mental. Há uma lógica cultural quando, por exemplo, jovens negros não podem sair de casa sem documento, nem para ir à farmácia, e a preocupação das mães negras, se os filhos voltam ou não. Você entra no ônibus e não sabe onde sentar, escolhe um lugar e ninguém senta ao seu lado. São ações do cotidiano que destroem a saúde mental das pessoas.

As decisões políticas afetam mais a população negra?

Todas as medidas do Estado implicam na população negra de forma significativa. Você pega, por exemplo, as políticas de ação afirmativa, que começam a ser desenhadas pelo movimento negro nos anos 1970, mas são executadas só no século XXI no Brasil. E essas ações afirmativas, como a reserva de vagas nas universidades ou no setor público, ainda reproduzem a segregação. Isso porque a população negra está numa situação tão degradante da sociedade que as políticas não conseguem atingi-la, mesmo direcionadas à população mais vulnerável. Assim, foram necessárias políticas complementares, com recortes e marcadores étnico-raciais.

As políticas macro afetam o conjunto da população, mas quando têm as características que vimos na reforma trabalhista e na reforma da previdência, atingem mais a população negra, que não tinha uma participação efetiva no mercado de trabalho ou na política previdenciária. Ao desmontar essas estruturas, essa população, que estava em condição vulnerável, se torna mais vulnerável ainda.

Há um crescimento nas pesquisas do IBGE de autodeclaração, em que as pessoas se reconhecem mais como negras e pardas. Por que você acha que há esse crescimento?

Quando você faz uma leitura dos últimos anos há um ponto de inflexão importante no debate político sobre a questão racial no Brasil em 1978, com o lançamento do movimento negro contra a discriminação racial. Até 1978, de certa forma, a população negra achava que precisava criar condições, num esforço excepcional, para se colocar ao nível da população não-negra na sociedade. Mas nesse ano, a partir de experiências como os Panteras Negras nos Estados Unidos, ou movimentos na África, o negro brasileiro percebeu que não era ele o problema, mas sim os mecanismos de desenvolvimento da ação supremacista branca. Assim, o negro deixa de se sentir culpado, para ler e compreender como, na verdade, a estrutura, o racismo estrutural e institucional, provocaram essa situação.

Há pelo menos 40 anos de debate, em que a população negra vai se apropriando das questões políticas nacionais e internacionais, dos conceitos que circulam no universo negro, e isso se espelha na atividade política no Brasil. Há um processo de avanço na compreensão do próprio negro em relação ao racismo. Hoje, o principal grupo social que luta contra o chamado extermínio da população negra, e os dados mostram isso, é justamente a juventude negra, que se apropriou de tecnologias, de movimentos políticos concretos na periferia, dos movimentos culturais, como hip hop e funk, para se manifestar contra essas violências que praticamente dizimam a população negra.

E esse movimento tem impactado setores empresariais também?

Quando começou a se discutir a participação da população negra nas áreas de visibilidade e poder político, umas das que mais se destacaram foi a questão econômica. Não é crível ter mais de 50% da população fisicamente ocupando o território nacional e só uma pequena fração em áreas de prestígio e poder político. Isso chamou muito atenção. E a pressão, quase de caráter internacional, também repercutiu fortemente. No mundo inteiro se destacava a chamada economia negra ou economia étnico-racial.

Isso impulsionou o debate, e há pontos importantes de inflexão. Um deles foi quando modelos negros se recusaram a ter um tratamento serviente e de subalternidade no evento Fashion Week no Brasil, exigindo participação efetiva no mercado. E as empresas tiveram que reagir. Porque o conflito sempre existiu, com uma inadequação entre o mercado de trabalho e consumo e a população negra. Essa violência sempre existiu. Recentemente, uma empresária negra foi a um banco sacar dinheiro e teve que ir até a delegacia para justificar porque estava fazendo um saque daquela magnitude.

Houve uma série de ações que provocaram uma forte reação da população negra, e o mercado precisou responder. Os jornais, por exemplo, abriram mais editorias para pessoas negras, que estão levando o debate para os meios de comunicação; os telejornais aumentaram a presença de negros. Grandes empresas estão preocupadas com a questão da diversidade, algumas com a necessidade mercadológica de ampliar o seu espectro consumidor, mas outras com a preocupação da diversidade, já que quanto mais diverso é um negócio, mais criativo e inovador ele é.

O que você diria ao jovem que está se percebendo negro nesse cenário de desigualdade hoje?

O jovem negro já procurou um caminho, a articulação política. Associar-se é necessário, romper as fronteiras do isolamento, até para consolidar a sua visão de identidade política, social e cultural. As experiências das universidades públicas mostram que entrar e se isolar do conjunto é negativo para a população negra. As três universidades públicas estaduais de São Paulo estão experimentando isso: o jovem negro tende a sentir, na universidade, o mesmo sistema de violência de fora.

Seja para o jovem negro, a mulher negra, a mulher, de modo geral, a população LGBTI+, é preciso criar condições para que esses grupos se articulem e passem a formular políticas. Compreender que essa diversidade precisa ter uma dimensão sistêmica, pensar o que é a segregação, como ela se institui, quais são os seus mecanismos nas áreas de poder político, para construir, de fato, um país inclusivo.

Tenho a impressão que o jovem negro que tem experimentado formas de organização mais comunitárias, na periferia, a partir de cultura, do hip hop, da capoeira, das escolas de samba, ele já começa a perceber, de forma bem estruturada, a necessidade de uma ação política mais forte.

Como a população negra pode se reunir para rever o retrocesso eleitoral?

O que mostra a experiência internacional? Observando o que aconteceu em Portugal, com a chamada “geringonça”, eles se organizaram para o enfrentamento, assim como na Espanha, com uma frente importante que ganhou a eleição e freou o desmonte em algumas áreas (e agora com o sociólogo Manuel Castells como ministro do Ensino Superior, um luxo). Essas experiências ensinam que, primeiro, você precisa definir uma bandeira da população negra, como outros setores sociais têm, como o movimento sindical, as mulheres, os estudantes. A população negra precisa articular uma bandeira, uma política, para frear o genocídio de sua população, ampliar a participação no mercado de trabalho em áreas de prestígio e poder político. E, ao lado disso, ter ação política para também ampliar o leque com o setor não-negro, mas antirracista, a fração da sociedade que compreende que o racismo é um obstáculo ao desenvolvimento civilizacional.

Há uma terceira questão também, a ação política interseccional, com a compreensão de que onde há racismo, há machismo, e onde há racismo e machismo, há supremacismo de classe, e assim por diante. Este novo momento que estamos vivendo exige uma articulação mais ampla.

Qual o espaço do negro na ciência? Há espaço igualitário?

Há três aspectos importantes para refletir. Primeiro, no Brasil, a ciência nasce com o pressuposto da afirmação do supremacismo branco. E mantém esta visão até o final do século XIX, em especial com a chegada da família real, e posteriormente, em 1827, com a formação dos cursos de direito e, depois, dos institutos de ciência e pesquisa. Foi a base do chamado racismo científico no Brasil. A revisão deste ponto de vista da ciência só foi feita em 1930, quando o próprio Roquette Pinto, que foi um supremacista na década de 1910, faz uma autocrítica. É importante considerar isso, este histórico da fundação do ensino superior e da pesquisa no Brasil, de tentar provar a inferioridade cênica, teórica, física e conceitual da população negra. Este é um legado profundamente negativo da ciência no Brasil.

O segundo aspecto a ser considerado é que ciência se faz na universidade, principalmente nas universidades públicas, onde a presença negra é muito pequena. Os negros compõem o grupo étnico-racial minoritário entre os professores (cerca de 4%), por isso as políticas de ação afirmativa são fundamentais.

A terceira questão é que quando você traz a população negra para a universidade, ela provoca mudanças no ensino, com as experiências que tem. Surgem espaços de reflexão e pesquisas que abordam a população negra. Entre os meus orientandos há pesquisadores negros discutindo temáticas negras, temáticas que seriam praticamente invisibilizadas há 10, 20 ou 30 anos.

As políticas de ação afirmativa começam a construir um novo cenário, e esse novo cenário tem o negro não como objeto de estudo, mas como sujeito formulando as propostas de pesquisas científicas. O que foi criado no século XIX com o racismo científico será dissolvido pela ação, pela reflexão e pela pesquisa dessa população não-branca que chega às universidades.

Rafael Revadam é jornalista formado pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul, pós-graduado em estudos brasileiros pela Fundação-Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Atualmente, cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.