Para não ficar raso de tanto too much, rastreie o comestível, semeie amanhãs

Por Érica Araium

Consumir, ao pé da letra, significa “destruir-se, gastar-se até a total destruição”; também “desaparecer da memória; apagar-se”… Ao avesso, alimentar: “nutrir(-se), sustentar(-se)” e, ainda, “fornecer assunto a”. De mãos dadas à etimologia e à análise do discurso, parece lógica a relação que se deve fazer entre alimentar-se o consumidor de informação para que ele sustente a si ao futuro. De mãos dadas à ciência, parece imperiosa a relação entre a pesquisa e o desenvolvimento sustentável. Rastrear o comestível será preciso.

É preciso rastrear[i] o comestível. Ponderar sobre a origem, o caminho e o fim dos alimentos. A segunda frase, aqui parafraseada por já haver sido incorporada a ene discursos poliglotas, inclusive a este, permeia um sem fim de noções. A primeira, porção mais original, situa o leitor de que este dossiê, marchado a muitas mãos numa cozinha imaginária, barulhenta e linotipada à medida; e servido ainda fresco, deve ser devorado da capitular ao ponto final e revisitado como repeteco daquela saideira “das boas”.

Nos últimos 19 anos[ii], nunca se falou tanto em gastronomia no Brasil. Não com a propriedade multidisciplinar que merece este prato cheio do jornalismo cultural[iii]. Até agora, quando a folkosomia[iv] ladeia-se à taxonomia e já se pode criar a solução da fome de 2050 com os <inputs> legados entre bites e bytes derramados em HTML, compartilhados pelas redes sociais. Pela força do hábito, pode-se determinar a organoléptica do amanhã.

Falar em gastronomia pressupõe legislar pelo estômago, tal postulara o pai da gastronomia Brillat-Savarin (1755-1826); cuja obra mais renomada, Fisiologia do gosto (1825), que eleva a comida à categoria cultura, ecoa e conversa com teoria do gosto de Pierre Bourdieu (1930-2002)[v]. Para este último, “as diferentes classes sociais se distinguem menos pelo grau em que reconhecem a cultura legítima do que pelo grau em que elas a conhecem”. Há, portanto, um sentido de luxo, de pertencimento à exclusividade, de sucesso e acesso privilegiado, de abastamento no ato de consumir algo “diferenciado”/ “top” – duas expressões que já estão desgastadas neste final de década por serem muito like and share nas redes sociais, mas traduzem o mote.

O perigo consumista, que tem relação com a noção de estilo de vida, reside no fato de as escolhas sobre quase tudo que se pretende (ou pode) comprar, e a despeito de serem alimentadas pelo constante produzir e disponibilizar de informações atualizadas (santa tecla F5) não são exatamente escolhas. Sobretudo no ambiente digital, onde a experiência do usuário dita os rumos, por exemplo, da construção novos (e tão caros ao Google) micro-momentos; ou estabelece relações causais entre segundos de atenção e conversão de vendas – para conteúdo, o mesmo se aplica. Se considerar este artigo interessante, por exemplo, estenderá a leitura para além desses 168 segundos (tempo médio dedicado até aqui para 130 palavras/minuto).

Em troca de dados pessoais para a navegação em meia dúzia de sites ou em redes sociais; ou ao preencher formulários ou o que for; ou ao acessar às redes de Wi-Fi via check point, os esforços de marketing, branding e vendas, com um empurrãozinho da neuromarketing[vi], são geniais em fazer com que a terceirização do gosto ou a premeditação dele, no sentido do consumo, também ocorra. O consumidor é e será cada vez mais levado a. Momento para déjà vu para 1984, de George Orwell, ou para o contemporâneo meme “isto é tão Black Mirror”? Pois é.

Veja. Sua próxima pizza personalizada já está assando e chegará quentinha, em minutos, via drone. Os insetos farão jus à ode “menos carne, por favor” aderida em toda segunda-feira, não fique grilado. Afinal, não há comida impossível onde há tecnologia e apreço pela novidade, não é mesmo? Vide hambúrguer vegetal que sangra, vide a foodtech Impossible Foods. Tampouco duvida sobre o que não está no rótulo quando há aplicativos à disposição (procure saber do brasileiro Desrotulando).

Nesse mundo de Internet das Coisas (IoT), cada clique contribui ao design do comer. Agricultores já confiam a algoritmos a decisão sobre o momento de lançar no solo sementes e fertilizantes. Tudo via satélite.

Esses e outros muitos exemplos foram ilustrados, com maestria, pela equipe da revista Época Negócios, na edição de abril deste ano, na reportagem especial “A próxima revolução: seu prato”. A edição teve capa dedicada, com fotos embaladas pelas técnicas de design gastronômico e de food styling. Gosto, sim, se discute. Pois gostar, afinal, é apreciação, sentimento, costume, julgamento. Não deveria ação pasteurizada. Mas debatida de forma tão multidisciplinar quanto a própria gastronomia.

Se “consciente”, clean-lifer – classificação da Euromonitor International –  etc e afins ou coprodutor (continue lendo), em frente à gôndola on ou off-line a decisão de consumo tende a ser em prol do produto ou serviço que respeita a biodiversidade e o meio ambiente, a diversidade de culturas, os saberes tradicionais, o comércio justo, a ética. Leva-se em conta o que haverá de legado para as próximas gerações o desenvolvimento sustentável. E o alimento, nesses casos, volta ao lugar central na cadeia produtiva, para sustentar uma nova leva biodiversa e sistêmica. A indústria de alimentos sabe que precisa recobrar a confiança de seu público – mais de 7 bilhões de pessoas.

“Na pesquisa Barômetro de Confiança 2018, feita globalmente pela agência de comunicação Edelman, o setor de alimentos e bebidas sofreu a maior queda de confiança entre 11 setores avaliados (empatou apenas com o de bens de consumo). A parcela de entrevistados que diz confiar no setor caiu de 73% em 2017 para 62% em 2018”, destaca a reportagem da revista Época Negócios. 2017, para quem tem memória curta, foi o ano da Operação Carne Fraca, no Brasil. Confiança passou a ter outros nomes.

É claro, porém, que nem sempre importa, ao consumidor comum, a noção de pegada ecológica ou de sustentabilidade, embora ambos os conceitos estejam maduros, disponíveis e incorporados ao demi-glace[vii] que embebe a sociedade da informação. E embora, para ela, informação seja matéria-prima; e a convergência tecnológica, propulsora de transformações sociais[viii]. Quantos lados há a se considerar num panorama global de produção de alimentos?

Se, por um lado, há mais exigência em relação ao conteúdo que se produz para informar, por outro, há que se lembrar que a relevância é como agulha no palheiro do excesso de dados. Segundo a Cumulus Media, em 2017, por minuto, 3,5 milhões de buscas foram realizadas no Google e 156 milhões de emails foram enviados, para se ter uma ideia. Quantos desses acessos foram realizados por humanos únicos, de fato? Em março, Tim Berners-Lee, criador da rede mundial de computadores, temeroso em relação ao uso que se dará à ferramenta de 29 anos escreveu, em artigo ao britânico The Guardian, ainda em 2018, que metade da população mundial deve ter acesso regular à internet em todo o mundo. Essas pessoas dizem ter fome de quê? Qual o papel do chef de cozinha na promoção de uma alimentação mais sustentável? E do jornalista?

Esses últimos, sobretudo os especializados em gastronomia, sabem que cabe hoje, ainda, o aforismo savariano aplicado dos “gastrônomos não por fisiologia, mas por condição”. Os foodies[ix], por exemplo, são os novos epicuristas que não perdem uma novidade ou gadget culinário à mesa. Muito embora não sejam talhados, tecnicamente, para serem críticos e se permitam ser tratados por digital influencers, não raro, são casos dessa fatia gourmand contemporânea. De certa forma, porém, todos somos foodies. Basta uma câmera na mão, um prato bem montado à frente, certa capacidade de apuração e ótimas hashtags rastreáveis para narrar-se a última novidade. O conteúdo será dissipado em questão de bytes por segundo.

Ora, gastronomar, por assim dizer, pressupõe flertar com a alta cozinha (haute cuisine) e com o empratado mais simples e simbólico de qualquer resistência ao habitus – tão umbigar, individual. É possível comer de tudo um pouco contanto que não se deixe nenhum terço à margem (da estrada ou do prato)[x], frugalmente. E que sobre um pouco de conteúdo, em fatias ou em mensagens, para a próxima geração. O que falar sobre o comer e o que silenciar? A quem ouvir e a quem dar voz? O que revisitar-se-á, anos adiante, quando a tag, cantada ou digitada no buscador (isso se ainda houver um) for pela expressão “gastronomia brasileira sustentável”?

Vale lembrar que restauração e os chefs brasileiros passaram a conjugar ingredientes em muitas outras línguas graças à influência do tecnicismo e savoir-faire de cozinheiros franceses aqui radicados desde o início dos anos 1980 (caso de Claude Troisgros e Laurent Suaudeau); e da abertura às importações no Brasil (na curta era Collor). Se os planos Cruzado e Real tornaram possíveis a pasteurização e a globalização do gosto, os cozinheiros europeus (sobretudo os franceses) abriram caminho à obstinação pela sustentável localidade, pelo ativismo From farm to table, pelo locavorismo – conceito engendrado, também no início dos anos 1990, nos Estados Unidos, com reflexos na Europa e ressonado, no agora, sob o mesmo apelo pela sazonalidade, pelo frescor, pela relação estreita entre cozinheiro e camponês, pela promoção à agricultura urbana e pelos sistemas agroalimentares sustentáveis etc.

A gastronomia sustentável, contudo, singra um mar bravio de possibilidades e interpretações, conforme o ditar de pegadas – ora digitais, ora ecológicas –, nas ondas da convergência digital avolumadas pelas drásticas e mudanças climáticas – o aquecimento global e toda a problemática decorrente é indubitável, segundo o pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura David Lapola (Amazon Face); e pela já citada avalanche de dados – vivemos em big data, mimetizados as fake news e cheios de fear of missing out (F.O.M.O.). Tudo em dimensão omnichannel.

Faz jus ao cerne do vibrante movimento internacional Slow Food, encampado pelo jornalista italiano Carlo Petrini, desde 1986. E é endossado por uma plêiade de especialistas multiversos, para sorte das próximas gerações. Nela, o mais (in)dócil dos expoentes coristas seja, talvez, o jornalista estadunidense Michael Pollan, para quem cozinhar é uma história natural de transformação, com quaisquer que sejam os elementos preponderantes (ar, terra, água, fogo) evocados para a ação mais sapiens de todas. Aquele homo com 86 bilhões de neurônios contados e recontados, desde 2009, pela neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel.

Entre os cozinheiros, um dos sujeitos muito atentos aos rumos da alimentação no futuro é Dan Barber, autor de O terceiro prato (2014), chef-agricultor-ativista à frente do restaurante Blue Hill, em Nova York, e do Blue Hill at Stone Barns. Ele sabe que a cozinha é o ambiente mais Lavoisier de todos. Nada pode se perder, sobretudo quando o desperdício marca “fome” na pele e nos ossos de 815 milhões de pessoas ou 11% da população global, segundo a dados da ONU divulgados em 2017.

Barber tem noção, ainda, de que não há mais pescados naturalmente disponíveis para a alimentação humana. Mesmo com a Revolução Azul. Ventila isso desde 2010, em eventos como o famoso TED Talks, e busca alternativas. À Folha de S. Paulo, em 2015, defendeu: – “Qualquer coisa que encoraje as pessoas a cozinhar é um passo adiante. Mas não acho que seja possível ensinar uma pessoa a verdadeiramente cozinhar sem ensiná-la sobre a proveniência dos ingredientes, a história do que está no prato. Precisamos de mais gente (chefs, escritores, pensadores) para dizer esse tipo de história sobre nossa comida”. Assino embaixo e, por isso, mantenho Diálogos Comestíveis, desde 2015, além de escrever sobre o comer, dedicadamente, há oito anos.

Barber e outros chefs estrelados[xi] brilham mais por educarem o gosto de seus comensais que pela atitude em frente às câmeras de TV o pelos prêmios que receberam. A constelação de ativistas da gastronomia sustentável trajados com dólmãs, cresce à medida em que novos chefs surgem ao redor de suas referências supernovas, para usar uma metáfora da física. Inclui tudo que cintila ao redor de figuras como Massimo Bottura (Itália), René Redzepi (Dinamarca), Enrique Olvera (México), Ferran Adrià (Espanha), Alex Atala (Brasil. Em janeiro, promoveu o Seminário Fru.To e propôs dialogar sobre o alimento com 31 especialistas de múltiplas áreas), Virgílio Martínez (Peru) entre muitos outros.

Ainda que sejam infinitas as sinapses a dar conta dos recados cotidianos, por vezes, faltam “junções comunicantes” ao cérebro do consumidor para que perscrute e haja, de forma sustentável, em prol de um futuro viável quando beira a mesa, a gôndola ou negócio que atenda à tendência fresh food to go (comida fresca para levar). Há gaps num universo gourmet e raso de tanto too much.

Ao contrário do que a melhor A.I. e o melhor algoritmo possam projetar, as escolhas afetivas, capazes de estabelecer uma espécie de Wi-Fi direct memória-gosto, não são, assim, tão binárias. O bolinho de chuva da avó tem sabor de saudade, doce de salgar. Não estará perto da saudabilidade e sustentabilidade exceto se a relação entre “calorias vazias” e prazer for proporcional à medida de quão justa foi a produção dos alimentos e mínimo o impacto à biodiversidade. É nesse ponto que impera a importância do conteúdo, tanto dos comeres quanto dos dizeres.

Consumir, ao pé da letra, significa “destruir-se, gastar-se até a total destruição”; também “desaparecer da memória; apagar-se”… Ao avesso, alimentar: “nutrir(-se), sustentar(-se)” e, ainda, “fornecer assunto a”. De mãos dadas à etimologia e à análise do discurso, parece lógica a relação que se deve fazer entre alimentar-se o consumidor de informação para que ele sustente a si ao futuro[xii]. De mãos dadas à ciência, parece imperiosa a relação entre a pesquisa e o desenvolvimento sustentável. De mãos dadas à sociedade, parece ímpar a necessidade de zelar pelos brotos deste dossiê. Navegar é preciso? Rastrear o comestível será preciso.

Érica Araium é jornalista com especializações em gestão da comunicação com o mercado, gestão de marketing, jornalismo literário. É palestrante e docente do curso de tecnologia em gastronomia da Universidade São Francisco (USF) e idealizadora do projeto Diálogos Comestíveis. É mestranda do Labjor/ Unicamp em divulgação científica e cultural. Em seu projeto de pesquisa, investiga as relações entre a produção de reportagens gastronômicas e o consumo de alimentos.

Notas

[i] Segundo Juran et al. (1974), a rastreabilidade deve fazer parte de um processo produtivo, a fim de ter a habilidade de identificar o produto e suas origens. Mais em: www.scielo.br/pdf/raeel/v1n2/v1n2a08

[ii] Em 1999, não custa lembrar, começou o boom gastronômico, ano de implementação do curso superior de formação específica em gastronomia no formato sequencial na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, por exemplo. Em 2000, o Senac passa a oferecer o curso de tecnologia em gastronomia. Ainda assim, o número de cursos de gastronomia no Brasil era inexpressivo.

[iii] Referência a “Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural”, dissertação de mestrado da pesquisadora Renata Maria do Amaral, que dá início a um mapeamento do jornalismo gastronômico, inserido no contexto do jornalismo cultural brasileiro contemporâneo. Programa de pós-graduação em comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006. Disponível em:  https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/3492

[iv] O termo é atribuído ao arquiteto da informação Thomas Vander Wal, que o define como “o resultado da atribuição livre e pessoal de etiquetas a informações ou objetos (qualquer coisa com URL), visando à sua recuperação. A atribuição de etiquetas é feita num ambiente social (compartilhado e aberto a outros). A etiquetagem é feita pelo próprio consumidor da informação (Wal, 2007, online)”.
[v] Ver, ainda, Pierre Bourdieu, La distinction. Critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979.

[vi] Vale à pena ler o artigo “Neuromarketing: uma nova disciplina acadêmica?”, publicado em 2017 na Marketing & Tourism Review, disponível em: www.revistas.face.ufmg.br/index.php/mtr/article/download/4560/pdf

[vii] Preparação clássica das mais versáteis. Obtido pela redução de partes iguais do molho espagnole (“molho mãe”) e de um fundo escuro reduzido à metade (à base de ossos bovinos e aparas de proteína bovina, geralmente vitela) até a 1/4 do seu volume original ou consistência nappé. Apresenta aroma de assado.

[viii] “Meio inconscientemente, a revolução da tecnologia da informação difundiu pela cultura mais significativa de nossas sociedades o espírito libertário dos movimentos dos anos 60”. (Castells, 2000, p.25)

[ix] A expressão apareceu, pela primeira vez, em The official foodie handbook (1984), mini-guia gastronômico de Ann Barr e Paul Levy publicado no Reino Unido. Significa “filhos do boom do consumo”.

[x] A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) no Brasil alertou, em novembro de 2017 que, anualmente, 1,3 bilhão de toneladas de comida é desperdiçada ou se perde ao longo das cadeias produtivas de alimentos. Volume representa 30% de toda a comida produzida por ano no planeta.
[xi] Ver Guia Michelin, prêmio que aponta os melhores chefs e restaurantes do mundo, desde 1900.

[xii] Falo mais sobre o tema gastronomia sustentável neste artigo: http://dialogoscomestiveis.com.br/index.php/pensatas-devoradas/81-gastronomia-para-saciar-o-futuro