Para quem vive da arte, o isolamento social é um monólogo de sobrevivência

Por Rafael Revadam e Adriele Eunice da Silva

Espetáculos cancelados, shows pela internet e a luta por subsídios governamentais marcam a quarentena de quem tem a cultura como ofício

Foto: Paula Froés/GOVBA

Lonas desmontadas, teatros fechados e palcos sem vida. As mais de um milhão de pessoas que trabalham formalmente com cultura – juntamente com as incontáveis presenças na informalidade – tiveram que parar. Com o coronavírus, o mercado artístico foi o primeiro a cancelar a programação e, conforme diversas estimativas econômicas e sociais, será um dos últimos a normalizar as atividades. Em números, o setor cultural representa 2,64% do PIB brasileiro e possui cerca de 250 mil empresas e instituições. Na prática, são atores, produtores, cantores, escritores, músicos e tantos outros impactados. O que a arte vai contar com a pandemia?

“Estávamos em Montreal quando houve a primeira morte no Brasil. Dia 17 de março, se não me engano. Foi quando o espetáculo foi cancelado e nós tivemos que voltar às pressas para o Brasil. Fizemos sete de dez apresentações previstas, e todo o planejamento para a peça este ano, que não seriam só essas apresentações, foi por água abaixo”, conta o ator e produtor Armando Babaioff. Juntamente com outras 11 pessoas, entre atores e equipe técnica, Babaioff seguia com uma temporada do espetáculo Tom na fazenda, inspirado na obra homônima do autor canadense Michel Marc Bouchard. Sem patrocínio e percebendo que a bilheteria no Brasil não cobriria os custos de produção e montagem, os artistas programaram  para 2020 uma série de apresentações internacionais.

Os cancelamentos de eventos culturais atingiram toda a cadeia do setor. De acordo com dados da Associação Brasileira de Promotores de Eventos (Abrape), 51,9% dos eventos previstos para ocorrer este ano já foram cancelados, adiados ou estão em situação incerta, um prejuízo estimado em R$ 290 milhões. A entidade também prevê a demissão de 580 mil profissionais da área.

“Em geral, nos momentos de crise, as artes, a cultura e as humanidades são as que mais sentem. E as que sentem de maneira imediata”, explica o professor José Alves de Freitas Neto, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Para o pesquisador, a pandemia também tem mostrado um despreparo da classe governamental. “É uma ausência de apoio ou de políticas que valorizem os movimentos culturais. Parece que estamos vivendo um momento também desesperançado por essas estratégias, de querer asfixiar qualquer campo que tenha uma autonomia e criatividade. Porque é pela autonomia e pela criatividade que nós encontraremos uma saída para a crise que estamos passando”.

Quarentena gera chuva de likes no setor cultural

Assim como diversos setores do mercado, a cultura encontrou um desafio com a quarentena: existir num ambiente online. Com mais pessoas em suas casas, a internet se tornou um meio essencial de comunicação, informação e entretenimento. “As pessoas que realmente investem em cultura continuam investindo de outra forma. E eu acho isso veio para ficar, mesmo depois da pandemia”, detalha o músico e coordenador da Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim (Emesp), Edu Ribeiro.

Entre algumas ações estão as lives, shows e apresentações promovidos e transmitidos por plataformas online. De acordo com dados da assessoria da rede social Instagram, 800 milhões de pessoas utilizam diariamente a ferramenta Ao Vivo, disponível via Facebook e Instagram para transmissões em vídeo na internet. Para Edu Ribeiro, esta é uma alternativa importante de difusão da arte, mas que não atende toda a classe. “Artistas que têm uma carreira mais sólida vão entrar nessas programações e sobreviver um pouco com essa condição online, há aqueles até que estão dando um jeito de monetizar o que fazem na internet. Mas há aqueles que nunca se prepararam para nenhuma situação online e estão esperando abrir a porta de novo para voltarem a trabalhar. E eu acho que é uma fatia muito grande da classe”, diz Ribeiro.

E para atender esse percentual de trabalhadores das artes que estão parados, algumas medidas vêm sendo realizadas. Entre elas, a plataforma de streaming Netflix e o Instituto de Conteúdos Audiovisuais Brasileiros (Icab) criaram um fundo emergencial que oferecerá auxílio para até 5 mil trabalhadores e freelancers da produção audiovisual do país. O coletivo FilmaRio também criou uma ação para profissionais que trabalham com artes, focando principalmente para quem fica nos bastidores, como maquinistas, maquiadores, eletricistas, entre outros. Por meio de uma vaquinha online, o FilmaRio está levantando fundos para auxiliar essas pessoas. Até o fechamento dessa reportagem, a campanha arrecadou R$ 80 mil e segue recebendo doações.

Artistas cobram apoio governamental

Apesar das movimentações do próprio setor cultural e da iniciativa privada, a classe artística tem cobrado uma posição de governos sobre auxílios a seus trabalhadores. Alguns estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, possuem projetos de leis para renda emergencial aos profissionais da arte, que ainda não foram sancionados. A mesma situação acontece em esfera federal com o Projeto de Lei nº 1075/2020 que, até a apuração desta reportagem, aguarda votação inicial na Câmara dos Deputados.

Em entrevista ao canal CNN Brasil, a secretária de cultura do governo federal, Regina Duarte, foi questionada sobre as ações que está tomando para dar subsídios aos trabalhadores da classe artística durante a pandemia e limitou-se a lembrar sobre o auxílio-benefício que o governo proporcionou de R$ 600 por mês, durante três meses.

Além dessa medida, considerada insatisfatória de modo geral, houve ainda severas críticas sobre o silêncio do órgão federal sobre as mortes de figuras importantes neste período de quarentena, como o cantor e compositor Moraes Moreira, o escritor Rubem Fonseca, o compositor Aldir Blanc e o ator Flávio Migliaccio. Na mesma entrevista à CNN Brasil, Regina Duarte respondeu: “Optei em mandar uma mensagem para as famílias. Eu imaginei assim: ‘será que eu vou ter que virar um obituário?’”.

Para o professor e pesquisador do Instituto de Artes da Unesp, Paulo Celso Moura, as falas da secretária mostraram o nível da gestão federal a respeito das artes. “Não dá para dizer que a cultura não está sendo tratada. Está sim, mas de uma forma, e a partir de um olhar, absolutamente fascista. Há, na verdade, um projeto por trás disso, que é a utilização de instrumentos governamentais para desestruturar e desmontar a cultura. Uma das primeiras ações foi a extinção do Ministério da Cultura. O setor cultural sempre teve um dos menores orçamentos dos ministérios e agora, além disso, não tem ministério. É a barbárie”.

O ator Armando Babaioff complementa que, neste momento, as pessoas estão consumindo muita cultura, às vezes sem perceber. E espera que isso traga um novo olhar sobre a arte. “Estamos vendo hoje, na quarentena, uma quantidade de pessoas consumindo produtos de audiovisual. Teatro filmado, por exemplo, nunca vi quanta gente disponibilizando teatro pela internet para que as pessoas assistam peças que já estiveram em cartaz. Consumindo seriado, filme, literatura, música. Acho que, neste momento, seria uma forma de as pessoas terem um pouco de consciência e entenderem a importância que a arte tem e representa para a vida de cada um. Mas sempre será algo considerado supérfluo pelas autoridades, essa é a realidade”.

Rafael Revadam é jornalista formado pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul, pós-graduado em estudos brasileiros pela Fundação-Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Atualmente, cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

Adriele Eunice da Silva é bióloga e aluna do curso de especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.