Reintrodução de fauna, o caminho contrário à extinção

Por Bruno de Sousa Moraes

Na época em que a perda de biodiversidade por ação humana é mais brutal, pesquisadores trabalham para reverter alguns dos efeitos danosos do desaparecimento de espécies locais

A chamada “crise da biodiversidade” (resumida neste vídeo) é caracterizada por uma perda muito acelerada de espécies biológicas, com deterioração dos ecossistemas e consequente alteração do clima e da disponibilidade de água e ar limpos. Conferências internacionais, acordos climáticos e iniciativas de empreendedorismo verde compõem o engajamento global para minimizar os riscos inerentes ao processo, e um dos resultados é a publicação dos 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), em 2015. Na ocasião, que marcou o aniversário de 70 anos da ONU, líderes dos países membros firmaram um compromisso com dezessete objetivos, voltados para a promoção de um mundo mais justo, mais equilibrado ecologicamente e com o mínimo possível de alterações irreversíveis no clima e na biosfera — o conjunto de toda a vida no planeta, seja essa terrestre ou aquática, interagindo entre si em seus ecossistemas de origem.

Em julho do ano passado, durante um encontro anual denominado “Fórum político de alto nível sobre o desenvolvimento sustentável”, foi revisado o progresso até agora dos dezessete objetivos, com foco especial nos de número 6 (água limpa e saneamento), 7 (energia acessível e limpa), 11 (cidades e comunidades sustentáveis), 15 (vida sobre a Terra) e 17 (parcerias em prol das metas).

Uma abordagem para a conservação da biodiversidade, diretamente relacionada ao objetivo de número 15, e que tem ganhado cada vez mais destaque ao redor do mundo, é a reintrodução de espécies.

A falta que um bicho faz

“Temos um problema bastante grande no mundo atual, que é conhecido como “defaunação do Antropoceno”, afirma o professor Fernando Fernandez, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos pioneiros da biologia da reintrodução no Brasil. O Antropoceno, ao qual ele se refere e que já foi tópico de um artigo da ComCiência, refere-se à época geológica na qual a Terra começou a lidar com uma quantidade cada vez maior de humanos fazendo alterações cada vez mais expressivas no funcionamento da natureza.

“Essa defaunação significa que muitas florestas [e outros ecossistemas] acabaram perdendo várias espécies animais, que foram extintas no local. Elas se tornaram florestas vazias, principalmente por conta da caça comercial e de subsistência, e também por consequência do próprio desmatamento. Esse processo já havia acontecido há séculos nos países das regiões temperadas, mas no século XX continuou em grande extensão nos trópicos. Então, há grandes áreas de floresta que ainda estão de pé mas que perderam a fauna, e essas são florestas depauperadas inclusive em interações ecológicas”, complementa Fernandez.

A palavra-chave é “interações”. Quando um animal é extinto de um local, isso significa muito mais do que apenas a perda daquela espécie. Como as espécies interagem entre si e com processos como a polinização de plantas ou o espalhamento das suas sementes, assim como interferem na composição do solo com seus excrementos e carcaças, a extinção de uma espécie animal em uma floresta significa a perda de todos esses processos dos quais ela participava.

“Sem isso, os ecossistemas não funcionam bem, e isso pode gerar perdas adicionais de biodiversidade, por extinções em cascata. O fato de os ecossistemas não mais funcionarem tão bem pode, adicionalmente, fazer com que eles parem de desempenhar vários de seus serviços ambientais”, explica o professor.

Um exemplo importante citado por Fernandez é o de um artigo publicado em 2015 na revista Science. Fruto do trabalho de pesquisadores brasileiros, o artigo avalia o impacto da perda de grandes vertebrados em uma das funções mais valorizadas das florestas: o estoque de carbono atmosférico.

Grandes animais frugívoros, cuja dieta tem os frutos como base, têm uma capacidade que os tornam insubstituíveis por animais menores, que é a de dispersar sementes grandes. O estudo de Carolina Bello e colaboradores fez estimativas a respeito do possível impacto que a perda desse serviço de dispersão poderá trazer para comunidades de árvores de Mata Atlântica no futuro. Como a perda dos dispersores é o caminho para a extinção dessas espécies arbóreas, e algumas delas são mais eficientes no sequestro de CO2 do que as árvores que produzem sementes menores, a tendência é a de que a perda de fauna torne as florestas menos eficientes em reduzir o acúmulo de gases do efeito estufa. Somado ao desmatamento, esse processo aumenta ainda mais os riscos para o futuro do planeta — e para a própria humanidade.

Reescrevendo interações

“Ao mesmo tempo em que temos essas notícias horríveis, uma notícia interessante é que, principalmente no Hemisfério Norte, o planeta está com um ganho líquido de florestas. E mesmo no Hemisfério Sul, onde o resultado final é o de mais desmatamento do que regeneração florestal, ainda temos áreas nas quais a floresta está retornando”, diz Fernando Fernandez.

Cutia reintroduzida no Parque Nacional da Tijuca, flagrada por uma “armadilha fotográfica”. O uso de câmeras de disparo automático tem ajudado a equipe do Refauna a monitorar a população, uma etapa vital para o sucesso de qualquer projeto de conservação. (Foto: Refauna/Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações – UFRJ)

Florestas em processo de regeneração geralmente têm suas faunas bastante empobrecidas. Em alguns casos, é até possível que parte dos animais retorne, principalmente quando a área em regeneração está próxima de outros remanescentes florestais que contenham populações animais que possam atuar como colonizadores. Mas, na grande maioria dos casos, não existem populações-fonte de novos bichos, e as florestas em regeneração continuam com débito de interações, que não acontecem pela falta dos animais que estariam envolvidos nelas. É como se você tivesse um teatro montado, com um palco pronto e os roteiros e figurinos preparados, mas não tivesse os atores para a realização da peça.

E é nesse fato, que muitos veriam com desespero, que Fernandez vê uma oportunidade para a atuação de grupos de pesquisa focados na conservação da biodiversidade: “É possível e, a meu ver, muito importante, que você pegue essas florestas sem bichos e reconstrua as faunas, para poder restabelecer as interações e voltar a ter ecossistemas funcionais. Esses ecossistemas, além de proverem uma série de serviços ambientais como a conservação de corpos d’água e o estoque de carbono, também têm um papel de conservação de cada espécie muito importante. Porque, com isso, uma espécie que hoje ocorre em algumas poucas localidades, pode ocorrer em muitas outras, o que diminui a probabilidade de extinção global”.

Reintrodução é o processo de retornar uma espécie biológica a um local de onde ela foi extinta. E não é um processo simples. Além da dificuldade de encontrar animais que estejam saudáveis e que poderão ser movidos para outra localidade sem causar prejuízos ao indivíduo ou a uma população natural que também está em perigo, é importante se certificar de uma série de coisas: se o fator que levou a espécie à extinção já deixou de ocorrer; se os animais não correm o risco de introduzir uma nova doença na localidade; se eles não podem oferecer perigo a outras espécies que já estão por lá; se os indivíduos são de fato membros da espécie que ocorria na área…

A lista é longa. E mesmo que todos esses critérios sejam atendidos, há ainda a necessidade de acompanhar os animais reintroduzidos, para aprender e refinar as estratégias e métodos de campo e também para ter noção do tamanho da população, e se ela está crescendo, diminuindo ou estável. Esse monitoramento também ajuda a constatar se as interações e processos ecológicos desejados estão, de fato, sendo restabelecidos.

Fernandez, junto à equipe do Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações, que ele coordena, e a outros grupos de pesquisa parceiros, vem investindo esforços para a reconstituição de faunas e dos processos ecológicos que as acompanham. O Projeto Refauna começou em 2009, com a reintrodução de cutias no Parque Nacional da Tijuca. Os primeiros bichos foram capturados e triados em 2009, e a primeira soltura aconteceu em 2010.

A ideia de devolver a uma localidade espécies que foram perdidas já é discutida entre especialistas da área de ecologia e conservação há um tempo. Um famoso caso, o dos lobos reintroduzidos no Parque Nacional de Yellowstone, nos estados de Montana, Wyoming e Idaho, nos Estados Unidos, já tem mais de vinte anos. O lobo é um caso especial por ser um predador no topo da cadeia alimentar, e controla populações de grandes herbívoros como alces, impedindo o consumo descontrolado da vegetação, que ocorria no parque antes do retorno dos lobos. As florestas do Yellowstone tem apresentado regeneração florestal e um aumento no volume dos rios, e até mesmo o retorno de famílias de castores à região. Um ator novo chegou ao teatro, e logo uma companhia inteira o seguiu. E os novos contornos da peça tendem a garantir uma floresta saudável no Parque Nacional estadunidense.

Construindo o futuro uma espécie por vez

Fêmea de bugio-ruivo no dia da primeira soltura no Parque Nacional da Tijuca. Um dos últimos registros da espécie no local havia sido feito por Charles Darwin, em seu livro A viagem do Beagle, no século XIX. (Foto: Peterson de Almeida/Parque Nacional da Tijuca). O repórter desse texto integrou este projeto.

As cutias do Projeto Refauna vieram do Campo de Santana, um parque urbano no centro do Rio de Janeiro, próximo à Central do Brasil. Lá, em meio a gatos de rua, pessoas oferecendo aos animais os alimentos mais inesperados, e o barulho estressante do trânsito, esses roedores de médio porte vivem às dezenas. Uma população estável como essa é perfeita para doar indivíduos para uma floresta, onde elas não apenas têm a chance de reconstruir interações ecológicas, mas também acesso a uma vida e alimentação mais adequados à espécie.

“Depois das cutias, que depois desses anos todos andam muito bem no parque e mandam lembranças, tivemos a soltura dos primeiros bugios”, brinca Fernando. Um dos maiores primatas frugívoros da Mata Atlântica, o bugio-ruivo é um ótimo dispersor de sementes. Além disso, já foi visto que outras espécies de bugio são capazes de influenciar a composição do solo e a dinâmica de competição e crescimento de espécies vegetais através do consumo de suas folhas e flores. Em setembro de 2015, após mais de seis meses de adaptação e formação de vínculos sociais em cativeiro, os primeiros quatro bugios (dois machos e duas fêmeas que haviam sido resgatados de diferentes criadouros e centros de triagem) foram soltos na Floresta da Tijuca. Desde então, a população recebeu mais alguns indivíduos, tanto reintroduzidos quanto nascidos na natureza.

Além de retornarem, tanto cutias quanto bugios estão dando evidências de participação em processos ecológicos de dispersão de sementes, e os macacos ainda interagem indiretamente — através de suas fezes — com diversas espécies de besouros rola-bosta, que também atuam na dispersão de sementes e promovem a concentração de nutrientes em alguns trechos do solo .

“Para o futuro, acompanhamos um projeto do RioZoo que está reintroduzindo cutias na Serra da Carioca, e também temos os jabutis. Estamos com 60 jabutis, que serão a nossa terceira espécie reintroduzida na Tijuca. A ideia é soltarmos metade no princípio de 2020, durante a estação úmida, e mais 30 na estação seca. Eles estão ainda na parte dos exames veterinários e quarentena. Também há uma equipe tentando viabilizar a reintrodução da araraúna”, diz Fernandez.

Ainda é cedo para saber que efeitos essas reintroduções terão no Parque Nacional da Tijuca, a nível ecossistêmico. Os lobos de Yellowstone demoraram anos até que resultados como a volta dos castores aparecessem. Mas a refaunação utilizando espécies nativas é uma promessa e tanto, não apenas para a área protegida mais antiga do Brasil, a Floresta da Tijuca, mas para a biodiversidade mundial como um todo.

Bruno de Sousa Moraes tem graduação em ciências biológicas (UFRJ), mestrado em ecologia (UFRJ) e é aluno do curso de pós-graduação em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

Para saber mais:
Armstrong, D. P.; Seddon, P. J. “Directions in reintroduction biology”. Trends in Ecology  Evolution, v. 23, n. 1, p. 20-25, 2008.
Bello, C. et al. “Defaunation affects carbon storage in tropical forests”. Science Advances, v. 1, n. 11, p. e1501105, 2015.
Beschta, R. L.; Ripple, W. J. “Can large carnivores change streams via a trophic cascade?”. Ecohydrology, v. 12, n. 1, p. e2048, 2019.
Chapman, C. A. et al. “Are primates ecosystem engineers?. International Journal of Primatology, v. 34, n. 1, p. 1-14, 2013.
Fernandez, F. et al. “Rewilding the Atlantic Forest: restoring the fauna and ecological interactions of a protected area”. Perspectives in Ecology and Conservation, v. 15, n. 4, p. 308-314, 2017.
Genes, L. et al. “Effects of howler monkey reintroduction on ecological interactions and processes”. Conservation Biology, v. 33, n. 1, p. 88-98, 2019.
Mace, G. M. et al. “Aiming higher to bend the curve of biodiversity loss”. Nature Sustainability, v. 1, n. 9, p. 448, 2018.
Redford, K. H. “The empty forest”. BioScience, v. 42, n. 6, p. 412-422, 1992.
Terborgh, John et al. “Ecological meltdown in predator-free forest fragments”. Science, v. 294, n. 5548, p. 1923-1926, 2001.