Reportagens






 
Raios cósmicos produzem revoluções na astronomia

Raios cósmicos são radiações existentes no espaço cósmico, que trafegam através dele e eventualmente podem chegar na Terra. Nossa atmosfera nos protege da maior parte deles. Essas radiações são produzidas por inúmeras fontes - estrelas, supernovas (explosões de estrelas) - e há mesmo uma parte dos raios cósmicos cuja origem é totalmente desconhecida.

O estudo dos raios cósmicos permite estudar as características das fontes que os produzem, que incluem o Sol, estrelas e outros objetos diversos, de galáxias a buracos negros. São, portanto, uma excelente fonte de informação sobre os variados corpos do Cosmo. Além disso, pode-se observar raios cósmicos para estudar as próprias partículas de que são formados (parte dos raios cósmicos é constituída de partículas subatômicas viajando pelo espaço). Muitos avanços na física de partículas foram devidos aos estudos de raios cósmicos.

As fontes dessa radiação são muito diversificadas. Alguns tipos de raios cósmicos são produzidos pelo Sol e por outras estrelas (além de produzir a luz visível, o Sol também produz radiação de diversas espécies, como raios ultravioletas e neutrinos). Outros, por objetos distantes, fora da nossa galáxia, como outras galáxias e quasares. Outros, ainda, por cataclismas cósmicos, como as supernovas (gigantescas explosões de estrelas que entram em colapso) ou, conforme se prevê, pela matéria que cai nos buracos negros. Há, ainda, os que parecem ser resquícios de eras remotíssimas, quando o Universo era muito diferente de hoje, como a chamada radiação cósmica de fundo, originada cerca de 300 mil anos após o Big-Bang. Finalmente, boa parte dos raios cósmicos tem origem totalmente desconhecida, como os chamados raios cósmicos ultra-energéticos ou zévatrons. São raios tão energéticos que uma única partícula pode possuir energia equivalente à de um tijolo que cai de uma altura de um metro. O Projeto Pierre Auger, do qual participa o Brasil, pretende construir um observatório, com partes nos hemisférios Sul e Norte, para poder decifrar a origem desses raios.

A origem diversificada se reflete na natureza variada desses raios. Essas radiações podem ser de duas formas: ondas eletromagnéticas ou partículas subatômicas. Exemplos de ondas eletromagnéticas são a luz visível, os raios ultravioletas e infravermelhos, raios X, raios gama e ondas de rádio. A única diferença entre esses diversos tipos de radiação é a freqüência de oscilação das ondas (que é proporcional à sua energia). Exemplos de raios cósmicos constituídos por fluxos de partículas são elétrons, prótons, núcleos atômicos e neutrinos.

Espectros
Há basicamente duas linhas de abordagem nos estudos sobre raios cósmicos: uma que os analisa para obter informações sobre as fontes que os produzem, e outra que os analisa para estudar as leis físicas que governam a natureza das partículas elementares.

No primeiro caso, os raios cósmicos são basicamente uma fonte de informação para a astrofísica. Um exemplo de como se pode obter informação dos astros pela radiação que emitem é o caso dos espectros das estrelas. Trata-se de um refinamento de uma observação trivial, a que fazemos quando olhamos para um arco-íris. A luz visível emitida pelo Sol é praticamente branca. No arco-íris, ela é, entretanto, decomposta em algumas cores: alaranjado, vermelho, verde, azul e violeta. Na verdade, o arco-íris continua depois do violeta, com o ultravioleta, e antes do vermelho, com o infravermelho, mas essas partes são invisíveis. Esse conjunto de cores (ou de freqüências, porque a cada cor corresponde uma freqüência) é chamado espectro.

Ora, observando um arco-íris, vemos que as cores parecem variar continuamente desde o amarelo até o violeta. Há, porém, pequenas falhas nessa continuidade, que não podem ser percebidas a olho nu. Mas revelam-se quando esse espectro é analisado por um instrumento de precisão. Com tais aparelhos, pode-se observar trechos escuros muito estreitos chamados "linhas espectrais de absorção". É como se o Sol não fizesse emissões nessas freqüências específicas; porém, esses trechos aparecem não porque o Sol não os emitiu, mas porque parte da luz produzida por ele foi absorvida pelos gases que o constituem e pela sua atmosfera, que a luz atravessou no início do caminho para a Terra. A absorção ocorre para freqüências muito específicas, daí a presença de linhas espectrais muito finas.

Linhas espectrais do átomo de hidrogênio

Acontece, e essa é a parte crucial, que cada substância provoca um conjunto bem específico de linhas espectrais. Como um código de barras, observando a posição das diversas linhas, pode-se inferir a composição química do Sol e das outras estrelas. E também de nebulosas, poeira interestelar e outros objetos.

A luz visível é apenas um dos tipos de radiação que se pode observar. Hoje, existem radiotelescópios capazes de "enxergar" radiação de diversas freqüências, das ondas de rádio aos raios gama. Em geral, a informação que se pode obter com as outras radiações é bem maior do que apenas com a luz visível. Na figura abaixo, podemos ver a diferença entre duas imagens do Sol, uma com a luz visível e com raios-X. Além disso, pode-se também observar as partículas subatômicas, que constituem uma parte significativa dos raios cósmicos.

O Sol observado através de luz visível (à esquerda), pelo Observatório Solar Nacional (EUA), em 1995, e através de raios-X (à direita), pelo satélite Yohokh, em 1992. A imagem com raios-X mostra detalhes invisíveis com luz comum.
Fontes: Nasa e Yohkoh

Radioastronomia
Por causa da riqueza de informações que os raios cósmicos podem proporcionar, o advento da astronomia baseada na sua observação provocou verdadeiras revoluções na compreensão do Cosmos. Boa parte delas veio da observação de ondas de rádio (a radioastronomia), que são ondas eletromagnéticas com freqüência baixa. Essas ondas levaram à descoberta dos quasares, astros gigantescos que emitem energia em quantidade equivalente à de uma galáxia inteira. Acredita-se que os quasares sejam núcleos (conjunto das estrelas centrais, bem próximas entre si) de galáxias.

Mas a maior revolução causada pela pesquisa com onda de rádio foi a descoberta da radiação cósmica de fundo em 1965. Trata-se de uma radiação que parece chegar homogeneamente de todas as direções do céu. A sua importância é que sua existência fora uma das principais previsões da teoria do Big-Bang, de forma que sua descoberta é um dos pilares nos quais se sustenta essa teoria.

Hoje, o estudo da radiação de fundo ainda continua produzindo grandes novidades. Em 1995, os detectores instalados no satélite COBE mostraram que ela não é totalmente homogênea, mas apresenta pequenas variações segundo a direção de onde vem. Essas variações haviam sido, também, previstas teoricamente; não pela teoria do Big-Bang, mas por um refinamento seu proposto por Alan Guth na década de 1970, a teoria do Universo Inflacionário. Hoje, essa nova teoria é incluída na maioria dos livros de astrofísica, por causa da corroboração feita pelo COBE. Além disso, essas variações contêm informação sobre a proporção de matéria escura presente no Universo. A matéria escura é de natureza desconhecida e não emite nenhuma radiação - sendo, portanto, possível de ser detectada apenas indiretamente, através da sua influência gravitacional nos astros ao redor. Sua importância é que ela parece constituir a maior parte de toda a matéria do Universo.

Radiações eletromagnéticas de outras freqüências também levaram a descobertas importantes. A astronomia de raios-X e de raios gama levou à descoberta dos pulsares, um tipo de estrela extremamente densa - tão densa que pode possuir um diâmetro de apenas 10 quilômetros, apesar de ter uma massa semelhante à do Sol. Além disso, giram em torno de si mesmas em alta velocidade, podendo chegar a várias voltas por segundo. Sua existência também havia sido prevista teoricamente. Normalmente, essas estrelas emitem raios-X e raios gama pelos seus pólos, sendo, nesse caso geral, chamadas estrelas de nêutrons (pois são constituídas quase totalmente de nêutrons, ao invés de átomos). Se sua posição for tal que o facho de radiação cruza a posição da Terra, ela funciona como um farol girante, e a radiação parece piscar em intervalos muito pequenos, chegando a frações de segundo. É então chamada pulsar. Pode-se estudar os pulsares observando o espectro desses raios.

A observação dos raios gama levou também à descoberta das chamadas explosões de raios gama (gamma ray bursts, ou GRB). São gigantescos flashes de raios gama, contendo enorme energia, cuja origem não é bem explicada. Foram observados pela primeira vez em 1967. Em 1999, o maior deles foi detectado, que constituiu a maior explosão já detectada em toda a História.

Neutrinos
Revoluções também aconteceram no estudo dos raios cósmicos em si. A própria física brasileira iniciou-se com o estudo de raios cósmicos. Foi observando esses raios que César Lattes descobriu, em 1947, a partícula subatômica chamada méson pi. Essa foi uma descoberta muito importante, porque foi a corroboração experimental de uma nova teoria sobre as forças nucleares. Após ter sido formulada a mecânica quântica, duas décadas antes, era necessário aplicá-la às outras partes da física. Criou-se então uma teoria quântica para descrever as forças nucleares, a teoria de Hideki Yukawa. Essa teoria previa a existência de partículas novas, diferentes das poucas conhecidas até então: os mesotrons, hoje chamados de mésons pi ou píons. A descoberta de Lattes corroborou a previsão da teoria de Yukawa e deu sustentação empírica a ela. Hoje, a teoria foi substituída por uma outra mais precisa, a cromodinâmica quântica.

O estudo dos neutrinos também revelou-se muito importante para a astrofísica. Neutrinos são partículas elementares levíssimas, produzidas em grande quantidade pelas reações nucleares que ocorrem no interior do Sol e de outras estrelas, e também por supernovas. Além dos conhecidos prótons, nêutrons e elétrons, que constituem os átomos, há outras partículas, que não participam da constituição dos átomos, mas existem "a granel" viajando pelo espaço. O neutrino é uma das mais importantes; o méson pi é outra. Apesar de abundantes, os neutrinos interagem muito fracamente com a matéria, de forma que todos os objetos são quase totalmente transparentes a eles, e por isso são muito difíceis de serem detectados. Mas podem fornecer informações importantes, tanto corroborando teorias sobre as fontes que os geram (teorias até então ainda no estágio de hipóteses sem confirmação experimental) quanto contradizendo teorias já existentes e "exigindo" a sua alteração.

Um exemplo do primeiro caso (corroboração de teorias) aconteceu em 1987, o grupo do Experimento Kamiokande, no Japão, confirmou a previsão teórica da emissão de neutrinos por supernovas. Bem mais recentemente, houve um exemplo espetacular do segundo caso: a observação dos neutrinos cósmicos parecia indicar que eles tinham massa. Até então, a teoria atualmente usada em praticamente toda a física das partículas, o Modelo Padrão, previa que, como os fótons de luz, essas partículas não tinham massa, apenas energia. No final de 2002, veio a confirmação final da massa dos neutrinos, feita pelo Experimento Kamiokande, no Japão. O Modelo Padrão teve então que sofrer alterações. Além disso, a descoberta forneceu também a solução de um problema mais antigo, o problema dos neutrinos solares, uma discrepância entre a previsão teórica e a observação no número de neutrinos produzidos pelo Sol.

Mas a conseqüência mais importante da massa dos neutrinos pode ser relacionada com a cosmologia: sendo tão abundantes, eles podem ser um dos componentes da matéria escura. Além disso, as teorias da evolução do Universo como um todo são governadas pelas forças gravitacionais entre os astros. Introduzindo uma enorme quantidade de partículas massivas no Cosmos, sua contribuição ao campo gravitacional pode ter conseqüências para a cosmologia. Como o que se sabe hoje é só que os neutrinos têm massa, mas não qual o tamanho dessa massa, ainda não se pode avaliar as conseqüências cosmológicas dessa descoberta.

(RB)

 
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Atualizado em 10/05/2003
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