Reportagens






 
O que são os raios cósmicos?

Armando Turtelli

Eu vi coisas nas quais vocês nunca acreditariam.
Naves de ataque em chamas perto das bordas de
Orion. Eu vi a luz do farol cintilar no escuro no
Portal de Tannhauser. Todos esses momentos se
perderão no tempo como lágrimas na chuva...
(Blade Runner, filme)


A história das pesquisas sobre essa misteriosa radiação que vem das profundezas do espaço, de muito além do Universo conhecido, é uma verdadeira epopéia na Física. Como o replicante do filme, essas partículas atravessaram longínquas regiões do Universo, foram testemunhas de fenômenos que estão muito além do que a mente humana pode imaginar. Desvendar ao menos em parte os seus mistérios, saber de onde elas vêm, por onde passaram pode nos levar a entender um pouco melhor de onde vem o Universo, como ele está evoluindo e qual será seu destino final, pois essas partículas trazem dentro de si as informações sobre os momentos por quê passaram em seu peregrinar sem fim pelas imensidões do espaço intergalático. Os físicos procuram evitar que essas informações se percam no tempo...

Por três quartos de século, os pesquisadores de raios cósmicos, na tentativa de entender essas fugazes e rapidíssimas partículas que chegam na Terra a todo momento, fizeram de tudo: escalaram montanhas, mergulharam no fundo do mar, em profundas minas, em longos túneis, subiram em balões de ar quente e percorreram os mais remotos cantos do planeta. Suas explorações sem fim elucidaram vários mistérios, mas também revelaram a existência de muitos outros.

Essa história começou no final do século XIX, quando os físicos estudavam as propriedades elétricas do ar, chegando à conclusão de que o ar estava sendo continuamente ionizado (isso é, carregando-se eletricamente). Sugeriram que o agente responsável por essas cargas elétricas no ar deveria ser alguma radiatividade natural que vinha do chão, da terra. No começo do século XX Goeckel subiu em um balão e observou que essa radiação de fato diminuía (como era de se esperar se ela viesse do chão), mas muito pouco. Entre 1911-1914, Hess e Kolhörster efetuaram vôos com balões a altitudes muito maiores e verificaram que a radiação aumentava. Era a primeira suspeita de que havia algum tipo de radiação proveniente do cosmos que bombardeava a Terra continuamente.

Foi assim, com o intrépido Viktor Hess, o austríaco que voava perigosamente dentro de seus balões já no começo do século XX, que começou a interminável caçada a essas partículas. Surgiram a seguir Millikan e Compton, viajando pelo mundo afora para medir a intensidade da radiação em regiões remotas; Anderson, que descobriu a antimatéria usando a radiação cósmica; Pierre Auger, o descobridor dos grandes chuveiros de partículas; Cesare Lattes, Occhialini e Powel, descobrindo o méson pi; Fermi, propondo a teoria para explicar os mecanismos de aceleração dessas partículas.

Energia
Resumidamente, os raios cósmicos são partículas rapidíssimas que provêm do espaço exterior e bombardeiam constantemente a terra, de todos os lados. A cada segundo, cerca de 200 dessas partículas com energias de alguns milhões de eletrons-volts (10 6eV) atingem cada metro quadrado de nosso planeta. Existe um número enorme desses raios cósmicos de baixa energia, mas os de maior energia são em número muito menor. Acima de 1018eV, chega apenas uma partícula por semana em uma área de 1 quilomêtro quadrado. Acima de 1020eV, esse número cai para uma partícula por quilômetro quadrado por século! Quanto maior a energia deles, de mais longe eles vêm, mais espaço eles atravessaram e, portanto, mais informações eles têm a dar aos cientistas. Para encontrar e medir essas partículas, os físicos de raios cósmicos precisam esperar séculos ou então construir gigantescos detectores.

A maior parte das partículas da radiação cósmica são ou núcleos de átomos ou eletrons. Dos núcleos, a maioria são núcleos de hidrogênio (prótons), mas existem também alguns mais pesados, chegando até aos núcleos de átomos de chumbo.

Os raios cósmicos viajam pelo espaço praticamente com a velocidade da luz, isso significa que eles têm uma enorme energia. Alguns deles, de fato, são as partículas mais energéticas jamais observadas na natureza. Os de maior energia são uma centena de milhões de vezes mais energéticos do qualquer outra partícula jamais produzida nos maiores aceleradores de partículas do mundo.

De onde eles vêm?
Ninguém sabe de onde vêm essas misteriosas partículas. A grande parte dos de menor energia vem do sol e de nossa própria galáxia, a Via Láctea. Muitos provavelmente vêm de explosões de estrelas, as Supernovas. Eles também adquirem energia de campos magnéticos em movimento de galáxias longínquas, que eles encontram em seu caminhar incansável pelo Universo.

O grande físico italiano Enrico Fermi foi o primeiro a dar uma explicação sobre como essas partículas adquirem energia ao atravessarem o espaço. No acelerador de raios cósmicos de Fermi, os prótons rebatem em nuvens magnéticas em movimento pelo espaço interestelar. Apesar de tanto os raios cósmicos como as nuvens terem movimento ao acaso, de vez em quando as direções podem ser tais que as partículas ganham energia, adquirindo ainda mais velocidade na direção em que iam se movendo. Esse processo é bem entendido para partículas de baixa energia aceleradas por campos magnéticos produzidos pelo Sol. Em nossa galáxia, os pesquisadores acreditam que nuvens magnéticas muito intensas em movimento e produzidas em explosões de supernovas são as responsáveis pela energia para a aceleração.

Para que servem?
A radiação cósmica pode ser considerada um feixe de partículas de energia muita alta (enorme velocidade) que é utilizado pelos físicos para duas finalidades: estudar o universo das chamadas partículas elementares (o microcosmo) e para obter informações sobre o Universo onde estamos (o macrocosmo).

No primeiro caso, esse feixe de partículas de velocidade muito alta é lançado sobre uma outra partícula, quebrando-a e permitindo que os físicos, estudando os cacos que sobraram, obtenham informações sobre a natureza das partículas.

No segundo caso, através da análise de onde vem esse feixe e de qual é a sua composição, pode-se tentar extrair dele as informações que ele contém sobre o local onde ele foi produzido, sobre o mecanismos físicos responsáveis por sua produção. Pode-se ainda tentar decodificar as informações que ele traz sobre o espaço interestelar que ele atravessou, sobre os fenômenos que ele viu durante sua longa trajetória.

A radiação cósmica é, portanto, uma poderosa ferramenta para se perscrutar o interior dos constituintes últimos da matéria e a única sonda de que dispomos para tentar desvendar alguns dos mistérios dos confins do Universo.

Estudos sobre raios cósmicos
Qualquer que seja o interesse dos físicos na utilização desse feixe de partículas, os aparelhos normalmente utilizados para seu estudo podem estar instalados no espaço (satélites, Estação Orbital Internacional, balões estratosféricos), na superfície da terra (em altas montanhas ou ao nível do mar) e no subsolo (minas de ouro e prata, no fundo de túneis e sob a superfície de oceanos e lagos profundos).

Em qualquer lugar que estejam os aparelhos, eles são basicamente de dois tipos: detectores de tempo real, ou on-line, (isso é, a partícula da radiação cósmica é assinalada no instante em que chega, através de instrumentação eletrônica apropriada) e o outro tipo é o detector passivo, ou off-line. Neste tipo de detector, o feixe atravessa o aparelho e causa nele uma interação qualquer (uma transformação qualquer), que nele fica registrada e é posteriormente decodificada e analisada.

Física de raios cósmicos no Brasil
No Brasil, as pesquisas em raios cósmicos se confundem com o próprio início das pesquisas em Física. Tudo começou com a implantação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na qual desempenhou papel crucial o físico italiano de origem ucraniana Gleb Wataghin. Com seu entusiasmo, seu dinamismo, sua competência e sua cordialidade, ele logo aglutinou ao seu redor jovens interessados em física, destacando-se Marcelo Damy de Souza Santos, Mario Schemberg, Paulus Aulus Pompéia e depois Oscar Sala, Cesare Lattes. Na década de 40, juntou-se ao grupo o italiano Giuseppe Occhialini. Boa parte da instrumentação utilizada nesses primeiros experimentos era construída pelo próprio grupo de Wataghin.

Após o fim da II Guerra Mundial, Lattes foi trabalhar no grupo de Powell, onde já se encontrava Occhialini, tendo dado importante contribuição na descoberta do méson pi.

Já na década de 50, Lattes coordenou a participação do grupo brasileiro em uma grande colaboração internacional da época: o ICEF (International Cooperative Emulsion Flight), que colocava emulsões fotográficas nos longos vôos intercontinentais de então. Nessas emulsões ficavam registradas as passagens e as interações dos raios cósmicos, que eram posteriormente analisadas. A evolução natural dessa colaboração surgiu no início da década de 60, com a iniciativa de Lattes e Yukawa (Prêmio Nobel de Física pela teoria do méson pi) de iniciar uma colaboração Brasil-Japão para detectar e estudar a radiação cósmica com enormes câmaras de emulsões fotográficas instaladas no Monte Chacaltaya, na Bolívia, a 5220m de altura. Essas experiências (ICEF e Chacaltaya) visavam a estudar a constituição da matéria utilizando como ferramenta o feixe de raios cósmicos. Várias gerações de físicos brasileiros, hoje espalhados por todo o Brasil e exterior, se formaram nesses grupos.

No início da década de 80, teve início a colaboração LVD (Large Volume Detector), grandemente impulsionada por Wataghin em Torino. Essa experiência opera um grande detector, no meio de um túnel rodoviário na Itália central, para estudar neutrinos emitidos em explosões de Supernova.

Vê-se que desde o início, as pesquisas em Física no Brasil tiveram um caráter bastante internacional, em grande parte devido ao fato de elas se concentrarem em raios cósmicos.

Situação atual no mundo
Atualmente, há evidências de que acima de 1020 eV os raios cósmicos são prótons. Sendo assim, a sua origem não está dentro de nossa galáxia, pois com essa energia, eles se propagam em linha reta e as fontes dentro de nossa galáxia seriam rapidamente identificadas. Entretanto, as direções de onde eles vêm têm uma distribuição isotrópica (todas são igualmente prováveis), dentro dos erros estatísticos, mesmo acima de 1020eV onde apenas um punhado de eventos foi registrado.

Esse resultado é extremamente paradoxal, pois fontes de radiação a grandes distâncias (acima de 30 Mpc, 1 parsec = 3,26 anos luz) devem ser excluídas. O ponto é que acima de 4x1019 eV os prótons e os núcleos mais pesados interagem com a radiação de fundo primordial de 2.7 K (proveniente do Big-Bang, a grande explosão que deu origem ao Universo) através de reações nucleares bem conhecidas, perdendo assim rapidamente a sua energia. A existência de um evento com 3x1020 eV (o de maior energia visto até hoje) indica que a origem deve estar a menos de 20 Mpc da Terra. Entretanto, as direções de chegada deste evento e de outros com energias próximas não apontam para nenhum objeto extremamente energético na nossa galáxia ou em outro lugar. A não existência de processos eletromagnéticos que poderiam acelerar as partículas até essas energias levou até a se especular que elas poderiam ter sido produzidas em colapsos de cordas cósmicas com massa, que seriam restos topológicos do universo primitivo.

A Colaboração Pierre Auger
O físicos acreditam que os raios cósmicos de maior energia provêm de fontes de fora da Via Láctea - mas de onde?

Um dos 1600 tanques que formarão o Observatório Pierre Auger, instalado no deserto do Pampa Amarela, próximo a Malargue, Argentina.

Deve haver alguma coisa lá fora, não sabemos o quê é e nem onde está, que está disparando pelo universo afora partículas incrivelmente energéticas. Será que elas vêm de alguma superpotente explosão cósmica ainda desconhecida? De algum enorme Buraco Negro sugando estrelas para uma morte violenta? Do colapso de restos invisíveis da explosão que deu origem ao universo? Não sabemos a resposta, mas sabemos que resolvendo o mistério dos raios cósmicos de alta energia os físicos terão dado mais um passo para o entendimento do Universo.

Para permitir um melhor estudo desses eventos, um grupo de físicos de 15 países organizou a Colaboração Pierre Auger, assim chamada em homenagem ao descobridor dos chuveiros atmosféricos. Essa colaboração apresentou uma proposta detalhada para a construção de um observatório mundial de raios cósmicos, usando um gigantesco conjunto de detectores para permitir o registro de um número maior de chuveiros atmosféricos com energias acima de 1019eV. A identificação das fontes desconhecidas dessas partículas contribuirá para um melhor entendimento da origem e da evolução do universo.

O observatório Pierre Auger

Clique aqui e veja o mapa ampliado do sítio do Pierre Auger

Medir diretamente as partículas da radiação cósmica (os primários) exige o envio de detectores a alturas acima da maior parte da atmosfera terrestre, usando balões e satélites. Entretanto, podemos também detectar os raios cósmicos indiretamente na superfície terrestre através das partículas que eles produzem ao interagir com os núcleos dos gases que compõem nossa atmosfera. Um chuveiro extenso ocorre quando uma partícula muito rápida (isso é, com muita energia) da radiação cósmica interage com uma molécula do ar no alto da atmosfera, provocando uma violenta colisão. Fragmentos dessa colisão são expelidos com altíssimas velocidades para todos os lados e tornam a colidir com mais moléculas do ar, em uma cascata que continua até que a energia da partícula original seja distribuída entre milhões de partículas que chovem sobre a terra em uma área de até 16 km2. Neste processo, a atmosfera absorve grande parte da energia dessas partículas e possibilita a sua detecção e medida.

Medindo este chuveiro atmosférico por dois processos diferentes, os cientistas do Observatório Pierre Auger podem determinar a direção e a energia da partícula primária que chegou na alta atmosfera. A primeira parte da detecção é feita com 1600 estações detectoras que formam um gigantesco retículo cobrindo uma área de 3000 km2. Essas estações estão a 1,5 km uma da outra e cada uma tem o tamanho de uma garagem para um carro médio. Cada uma delas é completamente autônoma, com sistemas individuais de localização via satélite (GPS) e de geração de energia elétrica com painéis solares. Os instrumentos nelas colocados medem o número de partículas que as atravessam. As partículas produzidas por um primário de alta energia chegam em várias estações praticamente no mesmo tempo (a diferença de tempo entre uma estação e outra depende da inclinação com elas chegam à terra). Quando elas chegam à estação, um pequeno computador dedicado conferirá via rádio com as outras estações vizinhas se ali também chegaram partículas, para ver se fazem parte de um grande chuveiro. Caso afirmativo, a informação sobre o chuveiro será transmitida via rádio para o centro de coleta de dados. Nesse centro, os computadores combinarão as medidas realizadas pelas várias estações sobre o número de partículas e seu tempo de chegada, para determinar a direção e a energia da partícula primária que deu origem ao chuveiro. O detector medirá cerca de 50 raios cósmicos por ano com energias acima de 1020eV, juntamente com um grande número de eventos com energias menores.

Um segundo sistema de detecção utilizará uma fraca luz difusa produzida pelas colisões das partículas com as moléculas do ar durante o desenvolvimento do chuveiro. Em noites escuras e sem lua, em locais ermos e secos, sensibilíssimos e calibradíssimos sensores de luz podem medir essa fluorescência (basicamente o mesmo processo físico que produz a luz em uma lâmpada fluorescente). Assim, um conjunto enorme de coletores de luz apontados para todas as direções do céu pode ser um autêntico detector de raios cósmicos, observando os raios luminosos atravessando o céu. A quantidade total de luz depende do número de partículas do chuveiro e, portanto, de sua energia. A forma e direção do raio de luz ajuda a determinar a direção de onde veio o raio cósmico e também que tipo de partícula era ele. (Detalhes desse experimento serão dados em um outro artigo desta edição).

Curiosidades
1. O satélite italiano que reentrou na atmosfera e se desintegrou em fins de abril de 2003 se chamava Beppo-Sax. Esse nome foi dado em homenagem ao pioneiro da radiação cósmica Giuseppe Occhialini, que permaneceu no Brasil por alguns anos na década de 40. Com ele trabalharam Wataghin, Marcelo Damy, Sala e Lattes.

2. Um elétron-volt = 1,6x 10-12 erg . Ou seja, quando um próton da radiação cósmica tem 1020 ev, ele tem 108 erg, que é a energia que tem uma bola de meio quilo quando se move com uma velocidade de 100km/hora.

3. Um parsec é igual a 3,3 anos luz. Significa que se um objeto está a 30 Mpc de distância (30 milhões de parsec) a luz que dele sai demora 100 milhões de anos para chegar à terra, ou seja, a luz dele que agora chega na terra mostra como ele era a 100 milhões de anos atrás. Essa distância equivale a 30 quintilhões de quilômetros, distância muito além do que podemos imaginar.


Armando Turtelli é professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp.

 
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Atualizado em 10/05/2003
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