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Radiação cósmica de fundo em microondas


Thyrso Villela


A Radiação Cósmica de Fundo em microondas (RCFM) é um sinal eletromagnético, de origem cosmológica, que pode ser observado hoje em dia em todo o céu. É uma espécie de ruído que permeia todo o Universo. Ela, portanto, atinge a Terra vinda de todas as direções e pode ser detectada, por exemplo, por um aparelho de TV: algo em torno de 3% do ruído eletromagnético recebido por um televisor deve-se à RCFM. Essa radiação é descrita por um espectro de corpo negro a uma temperatura de 2,7 K. Pode-se dizer, então, que a temperatura do Universo hoje é de 2,7 K, ou aproximadamente - 270o C. Por ter essa temperatura, a RCFM tem intensidade máxima na faixa de microondas do espectro eletromagnético. Ela está associada a uma época em que o Universo ainda era muito jovem (muito antes de surgirem as primeiras estrelas, planetas ou galáxias), quando a matéria era predominantemente constituída por prótons e elétrons que formavam uma espécie de "gás primordial".

A RCFM se constitui numa das mais poderosas ferramentas de estudo da Cosmologia. A sua existência foi prevista por Gamow, Alpher e Herman, em 1948, quando estudavam a origem dos elementos químicos e o estado da matéria no Universo primordial, levando-os a concluir que essa matéria, que estaria ultracomprimida, deveria ter liberado uma radiação que teria, hoje, uma temperatura da ordem de 5 a 10 K, que seria a Radiação Cósmica de Fundo em microondas. Ela foi descoberta, acidentalmente, há quase quarenta anos, por Arno Penzias e Robert Wilson. Essa descoberta é considerada como uma das mais importantes da história da cosmologia observacional e, por isso, Penzias e Wilson ganharam o Prêmio Nobel de Física em 1978. A RCFM é uma das fontes mais ricas de informação sobre o Universo primordial, já que nenhum outro observável cosmológico revela um passado mais remoto do Universo do que ela. Nem mesmo as galáxias e os quasares mais distantes conseguem nos revelar como era a fase inicial do Universo. A título de comparação: a luz do Sol viaja oito minutos até chegar a nós; a luz da estrela mais próxima da Terra (depois do Sol) viaja quatro anos e meio até chegar a nós; a luz da galáxia Andrômeda, que é uma das mais próximas da Terra, leva alguns milhões de anos até chegar aqui. A RCFM, por sua vez, leva em torno de 13 bilhões de anos viajando (à velocidade da luz) até chegar a nós.

O Universo, a partir de sua origem, supostamente um estado de alta densidade e temperatura, evoluiu constantemente, se expandindo. Quando atingiu aproximadamente 370 mil anos de idade e uma temperatura em torno de 3000 K, fótons e matéria que formavam o plasma primordial estavam fortemente acoplados. Nessa época, a energia média dos fótons se tornou menor do que o potencial de ionização do átomo de hidrogênio. Como conseqüência, os elétrons livres foram capturados pelos prótons, formando átomos de hidrogênio neutro. Com a diminuição do número de elétrons livres, a matéria e a radiação não mais interagiram de forma significativa e ocorreu o que denominamos de desacoplamento entre a radiação e a matéria. Dizemos, então, que o Universo se tornou transparente à radiação e todos os efeitos provocados pelos processos físicos que ocorreram antes do desacoplamento apareceriam como uma assinatura do Universo jovem na distribuição espacial dessa radiação, que pode ser lida hoje através das observações da RCFM. Esta radiação nos fornece, portanto, informações sobre uma época em que o Universo tinha cerca de 370 mil anos de idade e pode ser estudada a partir de medidas de seu espectro, polarização e distribuição espacial. Os estudos do espectro e da distribuição espacial do RCFM no céu são fatores importantes na discriminação entre os diversos tipos de modelos cosmológicos, ou seja, de modelos que tentam explicar como surgiram as estruturas de matéria que observamos hoje no Universo, como estrelas, galáxias, aglomerados de galáxias, planetas e, em última instância, até mesmo a vida.

A confirmação de que a RCFM possui um espectro de corpo negro quase perfeito foi obtida por meio das observações feitas com o instrumento Far InfraRed Absolute Spectrophotometer (FIRAS), em 1990, um dos experimentos que estavam a bordo do satélite Cosmic Background Explorer (COBE). Esse resultado se tornou uma das mais fortes evidências a favor do modelo conhecido por "Hot Big Bang" e mostra que o Universo à época do desacoplamento estava em um estado de quase equilíbrio termodinâmico. Tão importante quanto esta detecção foi a descoberta de pequenas perturbações na distribuição angular de temperatura da RCFM no céu, ou anisotropias, que estão ligadas à formação das estruturas hoje observadas, tais como aglomerados e superaglomerados de galáxias. A detecção dessas anisotropias na RCFM foi feita pelo experimento Differential Microwave Radiometer (DMR), em 1992, também a bordo do satélite COBE. Ela teve um profundo impacto na Cosmologia, pois pela primeira vez foi obtida uma detecção de anisotropia intrínseca à RCFM, ou seja, uma anisotropia que não estava ligada a nenhum efeito que fosse devido ao próprio observador ou a algum fenômeno que tenha ocorrido no Universo recentemente: ela revelava como era o Universo há mais de 13 bilhões de anos!

Embora notáveis, os resultados do DMR apresentam uma limitação: os dados não permitem que sejam obtidas informações a respeito do processo de formação de galáxias; apenas foi possível se ter uma idéia de como as grandes estruturas, relacionadas aos super aglomerados de galáxias, surgiram. Ale disso, a qualidade das medidas não é muito boa, já que o nível do sinal era muito baixo. Em função disso, desde então, vários outros experimentos, no solo e a bordo de balões, começaram a tentar medir flutuações de temperatura na distribuição angular da RCFM numa grande faixa de freqüências, em diversas escalas angulares e com grande sensibilidade. Esses experimentos proporcionaram um grande avanço na determinação dos parâmetros cosmológicos, ou seja, dos parâmetros que nos ajudam a entender como é o Universo, de que componentes ele é constituído e quais são as suas características, como densidade, topologia, etc.

Conhecer essas características é fundamental para se entender como o Universo evoluiu de uma estrutura tão simples e homogênea (basicamente uma sopa de prótons, elétrons e fótons) para algo tão complexo e heterogêneo como o conhecemos hoje. Atualmente, sabemos que há no Universo regiões com grandes aglomerados de galáxias e regiões com pouquíssimas galáxias (conhecidas como "vazios"). Modelos teóricos nos permitem descrever o gás primordial como sendo bastante homogêneo em termos de sua densidade, apresentando, porém, pequenos desvios dessa homogeneidade, a que usualmente chamamos de "flutuações". Em outras palavras, havia regiões minúsculas que eram um pouco mais densas do que a média e regiões um pouco menos densas. Tais regiões evoluíram para se tornar hoje regiões com altas densidades de galáxias ou com baixas densidades de galáxias. Como os fótons (a radiação) e a matéria estavam fortemente acoplados, qualquer flutuação de densidade na matéria se refletiria necessariamente na radiação como uma flutuação de temperatura. Como a matéria (prótons e elétrons), por efeitos gravitacionais, se aglomerou e formou as estruturas, ou seja, se modificou com o passar do tempo, restaram apenas os fótons (a RCFM), dessa "sopa primordial", que viajaram livres para nos contar a história do passado do Universo. Daí a importância de se estudar em detalhes a RCFM.

Dentre os modelos cosmológicos que tentam explicar a formação de estruturas que hoje observamos no céu, um que foi bastante favorecido com as observações da RCFM foi o que supõe que o Universo passou um processo de expansão extremamente rápida, conhecida como inflação, logo no seu início. Ele explica, por exemplo, como é possível que regiões do céu tão distantes entre si hoje possam apresentar temperaturas tão próximas (com diferenças da ordem de 0,00001 K).

São três as características que podem ser observadas na RCFM: o seu espectro, a sua distribuição angular e a sua polarização. Os astrofísicos buscam, portanto, medir essas características. Essas medidas são feitas por experimentos que observam o céu em microondas. Esses instrumentos, dependendo da freqüência em que operam, podem efetuar essas medidas no solo, em geral em locais de grandes altitudes, ou no espaço a bordo de satélites, foguetes e balões estratosféricos. Para medir as flutuações de temperatura, os receptores são sintonizados numa certa freqüência e apontados, alternadamente, para duas regiões diferentes do céu, medindo-se dessa forma a diferença de temperatura entre essas duas regiões. Medindo a intensidade da RCFM em todo o céu, podemos então fazer um "mapa" da temperatura desse gás primordial, da mesma maneira que fazemos um mapa da Terra representando os acidentes geográficos. Estudando-se esse mapa, é possível inferir os parâmetros que descrevem o Universo.

O problema é que essas diferenças de temperatura são extremamente pequenas, o que dificulta sobremaneira a realização desses experimentos. É necessário empregar os melhores receptores de microondas que existem, as melhores técnicas de criogenia, entre outros recursos, para que os experimentos possam efetivamente medir algum sinal de origem cosmológica. É um desafio tecnológico, além de cientifico! Vários fatores complicam a realização desses experimentos: a nossa atmosfera, que emite microondas e também absorve uma parte das que vêm do céu, a nossa própria Galáxia (a Via Láctea), que ocupa uma grande área do céu e, obviamente, atrapalha a observação direta das microondas cosmológicas, as radiofontes cósmicas, entre outros. O advento da era espacial foi crucial para que o progresso nessa área fosse enorme, já que um dos maiores fatores de interferência pode ser contornado: a nossa atmosfera.

As pesquisas sobre a RCFM no INPE iniciaram-se há pouco mais de 20 anos, quando um experimento realizado a bordo de balão estratosférico, a 33 km de altitude, mapeou pela primeira vez o céu do Hemisfério Sul na freqüência de 90 GHz. Esse experimento, coordenado pela Universidade da Califórnia, Berkeley, EUA, com a participação do INPE, era um protótipo de um dos canais do experimento DMR que seria lançado, em 1989, a bordo do satélite COBE da NASA. Esse experimento fez uma das medidas mais precisas da anisotropia de dipolo da RCFM, mostrando que havia uma diferença de aproximadamente 3 miliKelvin (ou 3 milésimos de grau centígrado) entre duas regiões do céu. O COBE, como dito acima, mais tarde descobriu flutuações de temperatura na RCFM da ordem de alguns microKelvin (alguns milionésimos de grau centígrado). Essa descoberta foi considerada uma das mais importantes da ciência recente. Por meio de uma intensa colaboração com a Universidade da Califórnia, campi de Berkeley e de Santa Bárbara, vários outros experimentos foram realizados com o objetivo de medir de forma cada vez mais precisa as características da RCFM e também as de um dos contaminantes mais problemáticos dessas medidas, a nossa própria galáxia (a Via Láctea). Um dos experimentos que fez parte de uma colaboração com o grupo de Santa Bárbara detectou flutuações de temperatura na RCFM com uma precisão melhor do que a do COBE. A Figura 1 mostra esses resultados.

Resultado do experimento HACME que mostra flutuações de temperatura da ordem de alguns microKelvin em duas regiões do céu próximas das estrelas gUMi e aLeo. Esse experimento foi realizado a bordo de balão estratosférico. A figura mostra uma comparação entre essas duas regiões vistas pelo satélite COBE e pelo HACME (Tegmark et al. 2000).


Atualmente, o grupo de Cosmologia do INPE tem colaborações cientificas com várias instituições nacionais, como a Universidade Federal de Itajubá e a USP, e internacionais, como a Universidade da Califórnia, Universidade de Roma, Universidade de Milão, e já fez contribuições importantes para o aprimoramento desses experimentos. Uma dessas contribuições foi a participação no experimento BEAST (Background Emission Anisotropy Scanning Telescope) que é um radiotelescópio para a região de microondas, que pode ser operado tanto no solo quanto pendurado em um balão estratosférico a 40 km de altura. A Figura 2 mostra o BEAST prestes a ser lançado para um vôo a bordo de um balão estratosférico.

Experimento BEAST pronto para realizar observações da RCFM a bordo de balão estratosférico.

A tecnologia empregada no BEAST é muito mais moderna do que a do COBE, superando-o, por exemplo, em resolução angular: 7 graus no COBE contra aproximadamente 30 minutos de arco no BEAST, sendo que, por exemplo, o projeto óptico desse telescópio, que é uma das partes cruciais do experimento, foi inteiramente desenvolvido no Brasil. Hoje, o BEAST está efetuando observações a 3.800 m de altitude numa estação de pesquisa da Universidade da Califórnia, chamada White Mountain Research Station, nos EUA. O BEAST hoje compete com os mais avançados experimentos que visam medir flutuações de temperatura e polarização da RCFM.

Recentemente, foram divulgados os primeiros resultados desse experimento, que mostram flutuações de temperatura da ordem de alguns microKelvin na RCFM e que estão nos ajudando a ter uma idéia cada vez mais precisa dos processos físicos que foram responsáveis pela formação das estruturas que observamos hoje no Universo.

Thyrso Villela é pesquisador da Divisão de Astrofísica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

 
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Atualizado em 10/05/2003
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