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Memória é matéria prima do trabalho do historiador

A discussão sobre a relação entre História e memória é um dos grandes debates teóricos que atravessa várias gerações de historiadores, pois envolve os objetivos e fundamentos do trabalho histórico. Atualmente, a maioria dos autores concorda que a memória não pode ser vista simplesmente como um processo parcial e limitado de lembrar fatos passados, de importância secundária para as ciências humanas. Trata-se da construção de referenciais sobre o passado e o presente de diferentes grupos sociais, ancorados nas tradições e intimamente associados a mudanças culturais. Há também um consenso de que a história não tem mais a pretensão de estabelecer os fatos como realmente aconteceram. No entanto, persistem uma série de diferenças com relação a como considerar a memória para a construção de uma interpretação histórica. Mesmo sem haver uma resposta definitiva, uma maneira de entender a problemática é retomar o desenvolvimento do estudo da História e como foi sendo considerada a utilização de fontes tidas como registros memorialistas, como as fontes orais, ao longo do tempo.

"Desejoso de saber, interrogo". A frase do grego Heródoto, autor daquele que é considerado o primeiro trabalho histórico da civilização ocidental, demonstra que a utilização de fontes orais como meio para se escrever História não é fenômeno recente. Falar do estudo da História, segundo o historiador Paulo Miceli, é falar da origem prática da memória, do testemunho, da pergunta e da resposta, que é muito antiga e que se estende até os dias atuais. Segundo ele, a recorrência a relatos orais para a compreensão da História foi historicamente utilizada por vários autores e de diferentes maneiras: "No século XVI, temos Bernardino de Sahagún, que quis entender os povos conquistados pelos espanhóis e os entrevistou", afirma. Miceli cita ainda outros estudos que tiveram caráter semelhante, como o de Michelet, que fez uma pesquisa para saber a opinião que os franceses tinham sobre a sua própria revolução, no século XVIII.

A utilização de relatos orais, no entanto, foi colocada em suspeição a partir do século XVIII, quando a História ganha o status de ciência e os mesmos passam a não mais ser considerados como fontes seguras para o historiador. Segundo Márcia Mansor D'Alessio, da PUC-SP, isso tem uma relação com o ideário ilumunista de fins do século XVIII, que proclama o império da razão e dissemina a crença cientificista: "Para este ideário, a ciência é a única forma de conhecimento e, como tal, produz verdades únicas, absolutas e objetivas", diz a historiadora. As memórias, construídas a partir de subjetividades, não eram mais vistas como confiáveis para a produção do conhecimento científico. A historiadora Marieta de Moraes Ferreira, da UFRJ, acrescenta que esse processo continuou no século XIX, quando ocorre a institucionalização da História como disciplina universitária e uma profissionalização dos historiadores: "Nesse momento, os historiadores passam a adotar um conjunto de procedimentos para se diferenciar daqueles então denominados 'amadores', que eram cronistas, políticos, literatos ou, como no caso da França, indivíduos ligados à Igreja Católica", afirma. A pesquisadora também esclarece que isso significou a fixação sobre o que deveria ou não ser usado como fonte: "Um estudo 'isento' só poderia ser elaborado quando o historiador se distanciasse do seu objeto de pesquisa, abrindo mão de relatos parciais e cronologicamente próximos de eventos históricos", completa.

Essa História metódica e factual, centrada no estudo de "grandes eventos históricos" e "grandes personalidades", foi muito forte até a primeira metade do século XX. Seu questionamento tem como um grande referencial o surgimento da corrente historiográfica francesa dos Annales, na década de 1920. Historiadores como Marc Bloch e Lucien Febvre propuseram a diversificação de temas, mais voltados para as "pessoas comuns" e relativizaram a importância de "marcos políticos" para a escrita da História. Esse foi o primeiro passo que culminou com a diversificação do uso de fontes, englobando também a iconografia, a literatura e trabalhos artísticos.

Segundo Márcia D'Alessio, outro questionamento importante foi em relação à noção de temporalidade da historiografia tradicional, que encerrava os fatos num espaço de tempo meramente cronológico: "Inspirados em outras ciências sociais, [os integrantes da escola dos Annales] começaram a pensar em tempos longos da observação do real. Os conceitos de 'estrutura social', de Karl Marx, ou de 'quadros', de Halbwachs, são palavras e noções que entram para o vocabulário dos historiadores", afirma. Em outras palavras, eventos históricos deixaram de ser vistos apenas como situados em uma linha do tempo para serem problematizados em função de um contexto mais amplo de rupturas, transformações sociais e mudanças culturais. Para ela, uma vez acontecido esse rompimento, a memória pôde entrar mais facilmente no rol de preocupações dos historiadores, já que "lembranças habitam, por excelência, longas durações", ou seja, estão ligadas a processos históricos mais amplos.

Porém, esse processo de reflexão não implicou em uma retomada automática do trabalho com fontes orais. Isso porque, segundo Marieta Ferreira, é possível trabalhar com a memória a partir de monumentos, literatura e outros documentos: "Muitos historiadores dos Annales, embora se propusessem a trabalhar com a 'História dos homens comuns', ainda viam com muita desconfiança o trabalho com testemunhos", afirma. Segundo ela, durante muito tempo continuou-se aceitando a idéia de que as fontes escritas possuíam uma maior objetividade que as fontes orais, o que só foi quebrado na década de 1980 e 1990, juntamente com a discussão sobre como utilizar os relatos e testemunhos para o trabalho histórico. Tal avanço foi resultado de um processo de embates teóricos iniciados na década de 1950, curiosamente motivados por uma inovação tecnológica. Neste período, foi inventado o gravador, que tornou possível armazenar, reproduzir e conservar um depoimento. "O gravador foi muito usado na Segunda Guerra e posteriormente popularizou-se", afirma Paulo Miceli. A partir daí é que o termo "história oral" começa a ganhar notoriedade.

No entanto, de lá para cá houve o estabelecimento de uma série de controvérsias com relação ao uso de fontes orais. Marieta Ferreira afirma que há um grupo de pesquisadores que entende que a história oral é uma disciplina, que consiste em realizar entrevistas e publicá-las, como se aquilo fosse o resultado final do trabalho histórico. Nesse caso, temos apenas um registro parcial da memória. Para ela, a história oral é uma metodologia: "Trata-se de um conjunto de procedimentos usados para produzir depoimentos, que têm qualidades distintas de outras fontes orais como um programa de rádio ou uma entrevista para a televisão", afirma. Para ela, o trabalho histórico pressupõe um conjunto de procedimentos que visa uma análise e um confronto de fontes e não apenas a publicação de uma entrevista.

Paulo Miceli concorda com relação ao rigor que deve ser observado na realização de uma entrevista. Ele adverte também para a necessidade de não tomar palavra de quem está respondendo como o texto da própria História: "É necessário cercar a entrevista com todos os cuidados que você tem ao ler, por exemplo, a carta-testamento de Getúlio Vargas". Ele chama a atenção para o fato de que os depoimentos envolvem esquecimentos, distorções e omissões que demandam uma pesquisa e uma interpretação para serem compreendidos e contribuírem para o trabalho histórico. Daí a necessidade das entrevistas serem complementadas pelas pesquisas com outras fontes.


Marieta Ferreira: "História Oral é metodologia e não disciplina"

Nesse sentido, segundo D'Alessio, também é possível afirmar que a história oral faz parte de um processo maior de alargamento da possibilidade do uso de fontes para a escrita da história e de trazer para os historiadores instrumentos para lidar com a subjetividade, que está nos depoimentos, mas também nas fontes escritas. Para Marieta Ferreira, ela também auxilia a quebrar uma espécie de "fetiche" pela fonte escrita, que ainda está presente em uma espécie de "establishment historiográfico", até os dias de hoje.

Mas seria possível afirmar que a memória de um ou mais grupos sociais, que inclui tradições, culturas, hábitos, políticas etc, passíveis de serem expressos em depoimentos, pode ser simplesmente tachada como "fonte"? Qual a separação entre memória e História? Para D'Alessimo, embora sejam distintas, o fato da memória ser denominada como "fonte" é fruto das mudanças historiográficas que ocorrem constantemente, mas "é também instituinte desse processo, sobretudo por ser um dos fatores da introdução da subjetividade nos estudos históricos e, conseqüentemente, da transformação do discurso historiográfico em menos demonstrativo e mais narrativo."

Já Marieta Ferreira realça a distinção entre ambas, enfatizando a História como um campo profissional institucional que tem princípios e formas de funcionamento, gerando um conhecimento produzido a partir de uma reflexão, de um conjunto de procedimentos e regras. No entanto, esta distinção não faz com que exista uma oposição ou um conflito entre memória e história. A memória coloca uma série de desafios sobre como deve se fazer a história, assim como a história também pode contribuir com a memória: "Em regiões de conflitos étnicos, onde a memória coletiva é muito agressiva e associada a guerras, a história pode produzir uma reflexão mais crítica e mais comprometida com a objetividade", completa.

Já Paulo Miceli relativiza a distinção dos dois conceitos, afirmando que isso depende da articulação e do arbítrio do historiador, sendo impossível definir conceitualmente onde termina a memória e começa a História. Para ele, tal questão não tem uma resposta definitiva, assim como a própria distinção entre a História e os demais campos das ciências humanas: "É um debate acadêmico, que pode ser abordado do ponto de vista de grandes autores ou linhas interpretativas. Quando a poeira do tempo vai assentando, ficam grandes estudos, que podem estar no campo da memória, da História ou das demais áreas do conhecimento", afirma.

(DC)

 
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Atualizado em 10/03/2004
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