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Estudos vêm desvendando processo da memória

Todas as informações que utilizamos em nosso dia-a-dia estão relacionadas à memória. São dados novos que precisam ser armazenados, por alguns milésimos de segundo ou por décadas, ou conhecimentos que são recuperados em nossos arquivos cerebrais para dar sentido aos acontecimentos que nos cercam. Esse processo é feito de forma cruzada e simultânea, em que múltiplas memórias estão envolvidas. Ao ler este texto, por exemplo, o leitor utiliza seus aprendizados de leitura já automatizados, interpreta os grupos de palavras de acordo com conhecimentos preliminares, aprende coisas novas e armazena os significados contidos nos parágrafos anteriores para dar sentido aos posteriores. Enquanto isso, o corpo não se esquece de manter a respiração e a circulação ativas, enquanto os olhos decodificam os símbolos ou letras, que formam as palavras escritas. Já pensou se todas essas tarefas fossem comandadas por um computador? Certamente teríamos que reiniciar a máquina por diversas vezes ou então tentar fazer cada coisa ao seu tempo.

Os processos envolvidos nos vários tipos de memória estão sendo aos poucos desvendados pelos cientistas, mas os estudos não são simples de serem realizados. As descobertas são baseadas, principalmente, em testes com animais ou observações em humanos que possuem lesões cerebrais, frutos de acidentes ou mal formações. De maneira geral, os resultados obtidos em ratos, chimpanzés e pombos - apenas para citar os mais utilizados -, em que lesões são provocadas ou drogas são injetadas, são extrapolados para humanos, já que os mecanismos são semelhantes, embora não sejam os mesmos. A memória tem basicamente as mesmas funções, ou seja, promove a adaptação do ser ao meio, contribuindo para a sua sobrevivência. No caso dos humanos, "a complexidade é maior pela participação da linguagem, e pela modulação por sentimentos, emoções e estados de ânimo", pontua Ivan Izquierdo, coordenador do Centro de Memória da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),

A partir da década de 1970, a neurociência passou a contar com técnicas de imagem cerebral, como a tomografia por emissão de pôsitrons (PET) e a ressonância magnética funcional (fMRI) que evidenciam algumas áreas envolvidas nos processos ligados à memória. Embora esses recursos tenham contribuído para compreender quais áreas estão envolvidas nas etapas de aquisição da informação, consolidação e evocação (memória, propriamente dita), poucos acreditam que haja uma correspondência direta entre uma região do cérebro com a função que exerce, tamanha é a complexidade do nosso aparelho cerebral.

Quando falamos em memória, insistem os pesquisadores, não falamos em informações que são guardadas intactas, mas fragmentos ou traços que são armazenados e recuperados em forma de memória. "Formamos novas memórias sobre outras mais antigas, eventualmente modificando-as e inventando mentiras verídicas", explica Izquierdo, um dos maiores estudiosos sobre o assunto do país. Isso equivale dizer que as memórias não são amostras fiéis de fatos reais mas construções que são modificadas conforme o contexto em que são recuperadas e em meio a um intenso trânsito de sinapses (espaço entre neurônios, onde ocorre a transferência de informações em forma de impulsos elétricos).

Um sem números de cheiros, sabores, objetos, rostos, conhecimentos, sons, tatos, medos, números, comportamentos e cenários vão sendo estocados em nosso cérebro. Ele é capaz de nos remeter à infância, em questão de segundos, quando sentimos um cheiro familiar. Somos capazes de lembrar o momento exato em que aquele perfume fazia parte de nossas vidas. Isso quer dizer que de nada valeria tanta informação guardada se ela não pudesse ser rapidamente recuperada. Izquierdo explica que, no momento da evocação de uma memória, forma-se um percurso sináptico em que cada sinapse possui um caminho de reações bioquímicas, como se cada lembrança tivesse uma reação em cascata própria, um trajeto que a localizasse em meio a tantas informações. "No caso da evocação, esse percurso é mais curto e mais simples do que na formação de cada memória", esclarece o pesquisador.

Memória de elefante

Desenho: Juliana Schober

Quem nunca ouviu falar de memória de elefante? Conta-se que um alfaiate indiano enfiou uma agulha na tromba de um elefante e, anos mais tarde, quando o animal reencontrou o alfaiate, encheu a tromba d'água e despejou sobre o homem, prova de sua boa memória. Na realidade, pouco foi estudado sobre a memória desses animais, mas cientistas da Universidade de Sussex, na Inglaterra, estudaram fêmeas de manadas,testando sons gravados de mais de cem indivíduos do mesmo grupo, do Parque Nacional Amboseli, no Quênia, sendo que alguns já estavam separados há anos. Os animais testados reconheceram os sons apresentados, apontando não apenas para uma boa memória mas para a importância dela para a organização social e até para auxiliar na conservação desses animais.

O início da formação das memórias se dá na fase conhecida por aquisição e que consiste na chegada das informações aos sistemas sensoriais (visual, tátil, auditivo, olfativo e gustativo) na forma de estímulos. Os dados que chegam ao cérebro são, então, processados em diferentes regiões e resultam em memórias que podem ser, basicamente, de três tipos, de acordo com a duração. As operacionais ou de trabalho - só têm tempo de permanecer alguns segundos ou minutos em mente, antes de desaparecerem por completo, como é o caso do título desta reportagem, as frases do parágrafo anterior ou mesmo o número de telefone do dentista que a cada consulta precisa ser checado, para então ser discado e, novamente, esquecido. As outras duas deixam vestígios e seguem em um processo que as consolidarão como memórias de curto ou longo prazo. Nessa fase, iniciada a partir de um período de 1 a 6 horas após a aquisição, há participação da amígdala, do septo, do hipocampo e do córtex enterrinal. As de duração mais curta - que duram de 3 a 6 horas horas - ocorrem paralelamente às de longo prazo - com duração de 6 horas em diante -, embora haja interação entre elas. As memórias de menor duração precisam recorrer às de maior duração, já estabelecidas, para fazerem sentido e poderão, eventualmente, tornar-se memórias de longa duração.

A formação de memórias, desde a aquisição, passando pela consolidação até chegar a evocação ou lembrança, são processos dependentes da transmissão de informações célula a célula por meio da ajuda de neurotransmissores ou moléculas, que agem no espaço existente entre dois neurônios (sinapses). Essas substâncias, conta Izquierdo no artigo "Os labirintos da memória" (Ciência Hoje, n. 148, Abril 1999), são responsáveis por ampliar a comunicação entre as células, uma vez que permitem a ligação de receptores na membrana da célula, que é assim estimulada, provocando o desencadeamento de uma cascata de reações químicas. Entre as muitas reações, os neurotransmissores costumam ativar enzimas (proteínas que aceleram reações químicas), que entram no núcleo da célula, ativando genes que, então, sintetizam proteínas. Essas proteínas estão envolvidas não apenas na formação inicial de memória mas também no momento de recrutá-las como lembranças, para então serem rearmazenadas.

"Os estímulos que o cérebro recebe através dos sentidos promovem uma seleção de combinações neurais, que foram desenvolvidas de modo variável na fase de embrião do organismo, conectadas em 'mapas'. A estrutura do cérebro e seu funcionamento são, portanto, determinados pelo contexto e pela história do desenvolvimento celular", informa José Lino Oliveira Bueno, do Departamento de Psicologia e Educação da USP. Para ele, a memória depende de nossa capacidade de (re)categorizar os traços de informações, que ocorre na forma de ligações entre grupos neuronais de mapas diferentes, e que é temporariamente fortalecida e constantemente afetada pelas condições emocionais presentes e motivacionais, que podem facilitar ou dificultar seu resgate. É a conhecida plasticidade cerebral. Quando ocorrem lesões que impedem o fluxo de informações por um determinado caminho, os neurônios são capazes de fazer novas conexões que permitirão a melhora das capacidades sinápticas, resultando até na recuperação de informações ou performance.

Sonho
O constante e crescente bombardeamento de informações, característico da Era da Informação, vinda a partir do final do século XX, obrigam a mulher e o homem modernos a trabalharem e absorverem cada vez mais o que ocorre ao seu redor, em uma tentativa de apenas mantê-los atualizados. "A vantagens de receber um grande número de estímulos é permitir que o cérebro exerça sua capacidade de plasticidade sináptica e melhore sua performance", opina Anete Curte Ferraz, do Departamento de Fisiologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A pesquisadora, no entanto, chama a atenção para o fato desse volume de informações poder ter um efeito reverso: "o excesso de informações, preocupações, responsabilidades poderia exercer um efeito amnésico". Assim, ao invés de poupar as costumeiras oito horas diárias de sono, que podem soar como perda de tempo, elas devem ser priorizadas. O fato é que este um-terço de nossas vidas é tão fundamental para as memórias quanto a digestão é para a comida, como comparou o pesquisador italiano Giuditta e seus colegas em artigo publicado em 1995 na revista científica Behaviour Brain Research. É durante o sono que ocorre a síntese de proteínas que agem na consolidação de memórias.

Os sonhos seriam, na interpretação de neurocientistas, como Izquierdo, "uma expressão das memórias, em que estas estão embaralhadas ou acessadas por mecanismos diferentes dos da vigília e formam novas 'composições' de memórias, misturas das anteriores". Dividido em dois períodos principais, o sono possui uma fase em que a mente está em repouso e outro em que está em plena atividade, equivalente ao período de vigília, nomeada REM, ou fase em que há Movimentos Rápidos do Olhos (em inglês, Rapid Eyes Moviment), quando ocorrem os sonhos. As duas fases se intercalam durante uma noite de sono. A função do sono ainda não é clara, mas sabe-se que a privação dele abala a saúde, causa perda de memória, aumenta os gastos energéticos, os batimentos cardíacos e pode causar até a morte, como ocorreu em camundongos depois de 10 a 20 dias sem dormir.

Desafios futuros
Embora não se saiba qual é a capacidade máxima de memória de cada um, o coordenador do Centro de Memória da UFRGS acredita que a cada momento utilizamos toda a capacidade que podemos. Ferraz acredita que "nossa capacidade neuronal é enorme e a usamos de forma extremamente modesta". "A grande preocupação da ciência", continua, "ocorre no sentido de minimizar os déficits decorrentes do envelhecimento e de patologias neurodegenerativas como a doença de Alzheimer". Enquanto isso não ocorre, o melhor remédio ainda é exercitar os neurônios.

Para o neurofisiologista Izquierdo, a pesquisa atual sobre a memória, do ponto de vista biológico, procura compreender os aspectos psicológico e molecular e conta, para isso, com um crescente uso de técnicas de imagens para estabelecer quais áreas processam aspectos das memórias, enquanto o processo está ocorrendo no cérebro. Anete Ferraz lembra ainda que cada vez mais, procura-se entender os fenômenos bioquímicos e genéticos envolvidos nas etapas de formação de memória.

(GB)

 
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Atualizado em 10/03/2004
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