Reportagens






 
Mecanismos bioquímicos de memória

Carlos Fernando de Mello e
Maribel Antonello Rubin

"Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão os tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo o que pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou até variando de qualquer modo os objetos que os sentidos atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou e depôs, se é que o esquecimento ainda o não absorveu e sepultou... ...Quem poderá explicar o modo como elas se formaram, apesar de se conhecer por que sentidos foram recolhidas e escondidas no interior?..." (Santo Agostinho, O palácio da memória, Confissões, Livro X). Esta pergunta de Santo Agostinho, feita há dezessete séculos, parece hoje ainda tão atual e relevante do que quando foi formulada. Isto se deve particularmente à natureza da memória. Como muito apropriadamente coloca o Iván Izquierdo, um estudioso da área de neurobiologia da memória, "...somos aquilo que recordamos, literalmente. Não podemos fazer aquilo que não sabemos como fazer, nem comunicar nada que desconheçamos, isto é, nada que não esteja na nossa memória... ...Eu sou quem sou, cada um é quem é, porque todos lembramo-nos de coisas que nos são próprias e exclusivas, e não pertencem a mais ninguém. As nossas memórias fazem com que cada ser humano ou animal seja um ser único, um indivíduo".

Portanto, mais do que um exercício para a nossa curiosidade, descobrir os caminhos tortuosos pelos quais a memória se forma, e se mantém, parece ser uma oportunidade única de prolongar a individualidade humana frente às várias doenças neurodegenerativas que surgiram com o aumento da expectativa de vida da população, como o mal de Alzheimer.

Mas, afinal, por quais mecanismos formamos a memória?

Na verdade, há evidências de que formamos memória por mais de um mecanismo bioquímico, dependendo do tipo da memória formada. Há evidências, também, de que os mecanismos pelos quais formamos a memória de um fato (aprendemos), são diferentes dos mecanismos pelos quais a evocamos (lembramos deste fato). Conseqüentemente, teremos que classificar os tipos de memória, brevemente, e tecer algumas considerações sobre algumas estruturas cerebrais envolvidas na formação da memória.

A memória pode ser classificada quanto a diferentes aspectos, como o seu conteúdo e o tempo de sua duração.

Quanto ao seu conteúdo, as memórias podem ser classificadas como "declarativas", que são aquelas que conseguimos verbalizar, como um fato; ou "de procedimento", que são aquelas memórias que não conseguimos verbalizar. Na segunda categoria (memória "de procedimento") incluem-se atividades motoras complexas, como dirigir um automóvel, tocar piano, andar de bicicleta, etc... O aprendizado e a formação desses dois tipos de memória dependem basicamente de estruturas cerebrais diferentes. As memórias de procedimento são menos estudadas, porque parecem ser menos suscetíveis ao esquecimento. Assim, pacientes com dificuldade de lembrar fatos podem, com freqüência, não ter dificuldade para dirigir um carro ou andar de bicicleta.

As memórias declarativas, por outro lado, são bastante estudadas e são classificadas quanto ao seu tempo de duração como imediata, de curta e de longa duração.

A memória imediata pode ser ilustrada como a memória de um número de telefone que consultamos na lista telefônica, e que geralmente esquecemos logo após tê-lo digitado. Este tipo de memória não deixa "traços", ou seja, não forma "arquivos"; e parece depender da atividade elétrica de células de uma região cerebral denominada córtex pré-frontal. Pelo fato da memória imediata não deixar traços é que, antes do aparecimento da tecla de "re-discar" nos aparelhos de telefone, tínhamos que consultar a lista telefônica tantas vezes...

As memórias de curta duração (que duram poucas horas) e as memórias de longa duração (que duram meses, ou anos), por outro lado, formam "traço" de memória. O período em que ocorre a formação do traço de memória é chamado de período de "consolidação". Durante esse período (que na memória de longa duração corresponde a algumas horas após o aprendizado), a memória é lábil e sensível a vários tratamentos (fármacos e drogas de abuso, por exemplo) ou eventos, como um traumatismo craniano. Assim, quando sofremos um acidente de carro em uma viagem, é freqüente que esqueçamos não só de como aconteceu o acidente, mas também de eventos que tenham ocorrido alguns minutos antes do mesmo, como uma parada para abastecimento do carro, por exemplo.

Há algum tempo se acreditava que o traço de memória poderia ser armazenado em moléculas-código, como o RNA e o DNA ou, alternativamente, em proteínas. Assim, para cada memória nova formada, teríamos a síntese de uma nova molécula-código, que corresponderia a tal memória. Se isso fosse verdade, poderíamos tentar nos apoderar não só das virtudes de inimigos de guerra comendo os seus cérebros, como acreditavam alguns grupos indígenas (ver I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias), como também de suas memórias. Claro que isso só poderia ser possível se fôssemos capazes de absorver seus RNAs, DNAs e proteínas em sua forma integral, sem clivá-las no processo de digestão no estômago e no intestino. Tal hipótese deu origem inclusive, acreditem, a um experimento em que era ensinada a uma planária uma determinada tarefa, no final da década de sessenta. O animalzinho era posteriormente sacrificado e dado como alimento a outra planária que, surpreendentemente, era capaz de cumprir a tarefa com um desempenho semelhante ao do seu jantar!

Não é necessário dizer que, de forma não tão surpreendente assim, esses dados nunca foram replicados... Além disso, se para cada experiência tivéssemos a síntese de uma proteína específica, como deveria ser o processo de armazenagem e codificação de tamanha quantidade de proteínas, e em que organelas elas deveriam ser armazenadas? Portanto, um sistema em que cada proteína codificasse uma memória pareceu biologicamente inviável, e caiu em descrédito. Contudo, experiências em moluscos, camundongos e ratos mostraram que a memória depende, de fato, de síntese protéica, uma vez que a injeção nestes animais de um inibidor deste processo (anisomicina) prejudica o aprendizado e a formação de memória. Isto não significa que codificamos a memória de longa duração em proteínas, mas que a formação da memória depende de eventos relacionados à síntese protéica, particularmente de proteínas específicas, chamadas "proteínas de adesão celular". Aliás, é de se salientar que a memória de longa duração depende de tal síntese protéica, enquanto a de curta duração, não.

O aumento na síntese protéica decorre de outras alterações no cérebro, e é apenas uma das modificações cerebrais observadas durante o processo de formação de memória. De fato, alterações na liberação de neurotransmissores (substâncias que fazem a comunicação entre os neurônios) pelos neurônios e na eficiência na comunicação entre tais neurônios no hipocampo, córtex cerebral e outras estruturas cerebrais, antecedem a alteração da síntese protéica, e parecem ser eventos neuroquímicos primários para a formação da memória.

Um dos principais neurotransmissores liberados pelos neurônios localizados nas estruturas cerebrais envolvidas na formação da memória é o glutamato. O glutamato liberado se liga a receptores específicos, denominados receptores AMPA, NMDA e mRGLU, que estão localizados no neurônio que recebe a informação (neurônio-alvo). Quando o glutamato se liga a tais receptores, provoca alterações no neurônio-alvo, abrindo canais iônicos e ativando enzimas (proteína quinase A, proteína quinase C, MAP quinase, CREB, etc...), que por sua vez ativam mecanismos intracelulares que culminam com a síntese protéica descrita acima, e no aumento na efetividade da transmissão de informações entre estes neurônios e outros neurônios, aos quais o neurônio-alvo se comunica. Tal alteração nas conexões entre os neurônios tem sido denominada "plasticidade sináptica".

Todos esses processos estão sujeitos à modulação, inclusive por outros neurotransmissores diferentes do glutamato (dopamina, noradrenalina, serotonina, acetilcolina, GABA, poliaminas), que são liberados por neurônios presentes na própria estrutura (no caso, hipocampo) ou em estruturas adjacentes, como a amídala (uma estrutura do cérebro envolvida na percepção e modulação do medo, e de outras emoções). Tal gama de alternativas de modulação permite que o processo de formação de memória seja muito variável, de tal forma que uma maior facilidade ou dificuldade para formar memórias de dados e eventos dependeria, entre outros fatores, do seu significado biológico. Se esse evento fosse de pouca relevância, ele estaria fadado ao esquecimento.

Há que se considerar, também, que a evocação da memória não é tão somente a "reativação" do traço de memória. É freqüente que, quando evocamos uma dada memória, somente parte dela seja restituída, ou podemos confundir pensamentos e associações ligadas diretamente à memória evocada. Assim, o processo de evocação da memória implica também em uma "reconsolidação" da memória prévia, uma vez que a informação armazenada é modificada durante a sua evocação. Isto avança um pouco o conceito de memória, porque faz com que o traço de memória seja suscetível a transformações. De fato, a memória é extremamente dinâmica, e conforme afirma Dalmaz e Netto "lembrar implica num processo ativo de reconstrução e não se assemelha a assistir a uma fita de vídeo do passado". Enfim, tão dinâmica quanto a própria memória, é a plasticidade cerebral que a acompanha, a qual parece ser o mecanismo pelo qual aprendemos e lembramos.

Carlos Fernando de Mello é professor do Departamento de Fisiologia, CCS e Maribel Antonello Rubin é professora do Departamento de Química, CCNE, da Universidade Federal de Santa Maria, 97105-900 Santa Maria, RS, Brasil.

Para ler mais:

Arshavsky YI. "Long-term memory: does it have a structural or chemical basis?". Trends in Neuroscience 29(9): 465-466.
Dalmaz C, Netto CA. A memória. Ciência e Cultura 56(1): 30-31, 2004.
Dias G. Antologia Poética. 5ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1969.
Izquierdo I. Memória, Porto Alegre, ArtMed Editora SA, 2002.
Izquierdo I, Vianna MRM, Cammarota M, Izquierdo L. Mecanismos da memória. Scientific American Brasil 17:99-104, 2003.
Kartry AL, Keith-lee P, Morton WD. Planaria: memory transfer through cannibalism reexamined. Science. 146:274-275, 1964.
McGaugh JL. Memory consolidation and the amygdala: a systems perspective. Trends in Neuroscience 25(9): 456, 2002.
Rubin MA, Berlese DB, Stiegmeier JA, Volkweis MA, Oliveira DM, Santos TLB, Fenili, AC, Mello CF. Intra-amygdala administration of polyamines modulates fear conditioning in rats. The Journal of Neuroscience 24(9):2328-2334, 2004.
Sara S. Retrieval and reconsolidation. Learning and Memory 7:73-84, 2000.
Squire LR e Kandel ER. Memória: da mente às moléculas, Porto Alegre, ArtMed Editora SA, 2003.


 

 
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Atualizado em 10/03/2004
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