Pesquisa científica contribui para garantir a qualidade e a segurança dos produtos utilizados por pacientes no Brasil.
Por Daniel Rangel
A qualidade dos produtos à base de Cannabis é essencial para assegurar os benefícios terapêuticos esperados por pacientes. Com esse objetivo, o Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Campinas (CIATox), vinculado à Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, tem aplicado metodologias científicas para avaliar a qualidade de óleos enviados por associações e pacientes com autorização para importar ou produzir esses medicamentos.
João Gouvea, doutorando em farmacologia que atua no CIATox avaliando a qualidade e a variabilidade dos lotes produzidos por cultivos associativos, destaca que a pesquisa é essencial para garantir que pacientes tenham a segurança de que o medicamento possui as características desejadas, independentemente da época do ano ou lote do produto. “Essa pesquisa tem o potencial de demonstrar aos órgãos reguladores que produtos de Cannabis desenvolvidos por ambientes associativos conseguem entregar níveis de qualidade que garantem a eficácia terapêutica para os pacientes que necessitam destes produtos a baixo custo”, afirma.
A planta Cannabis sativa L. (o “L.” refere-se a Lineu, cientista que classificou a espécie pela primeira vez), conhecida popularmente como maconha, contém mais de 500 substâncias com potencial terapêutico, incluindo canabinoides, terpenos e flavonoides. Esses compostos atuam de maneira distinta e muitas vezes em cooperação, sendo fundamental identificá-los para garantir a eficácia e a segurança dos tratamentos.
A ampla variedade de tipos de Cannabis faz da planta uma verdadeira farmacopeia natural. No entanto, cada condição médica exige um perfil específico de compostos. Entre os canabinoides mais conhecidos estão o CBD (canabidiol) e o THC (tetrahidrocanabinol), além de suas formas ácidas — CBDA e THCA —, que podem estar presentes quando o óleo não é devidamente processado. Plantas com altos níveis de CBD são indicadas, por exemplo, no tratamento da epilepsia, enquanto aquelas com maior concentração de THC — responsável pelos efeitos psicoativos — são usadas no manejo da dor. Contudo, o THC também pode provocar efeitos adversos, como taquicardia e ansiedade em alguns pacientes. Por isso, conhecer o perfil químico dos produtos utilizados é fundamental.
Desde 2015, quando a Anvisa autorizou a importação de produtos à base de Cannabis, o uso medicinal da planta tem se expandido no país. Esse avanço é resultado da luta de familiares, especialmente mães, que buscaram acesso legal aos produtos para seus filhos. Segundo a startup Kaya Mind, que monitora os dados do mercado brasileiro sobre o tema, cerca de 672 mil brasileiros utilizam Cannabis com finalidade medicinal — número que pode ser ainda maior se considerados os pacientes que não conseguem acessar os produtos legalizados por questões financeiras ou logísticas.
Como começou o projeto
José Luiz da Costa, coordenador do CIATox e professor da Unicamp, compartilhou em uma palestra na Unesp de Araraquara, em abril de 2025, que já possuía experiência com análises de amostras de maconha apreendidas durante sua atuação como perito criminal na Superintendência da Polícia Técnico-Científica de São Paulo. A proposta de aplicar esse conhecimento à área medicinal surgiu por sugestão de uma orientanda, Marília Santoro Cardoso, que desenvolveu mestrado e doutorado sobre o tema no CIATox. “Hoje reconheço que esse é o projeto com maior retorno social do nosso laboratório. Muita gente nos procura por causa dessa iniciativa”, afirma o professor. “É um tema polêmico — há quem apoie e há quem critique —, mas é uma discussão importante”.
Hoje o projeto de pesquisa também se tornou um projeto de extensão e de ensino. Isso porque, à medida que novos alunos entram no laboratório, eles aprendem a operar equipamentos específicos e fazer análises, e os conhecimentos vão sendo passados adiante. É um processo que se retroalimenta, contribuindo para a formação dos estudantes e para a continuidade do trabalho.
Análises das amostras
As amostras de óleo de Cannabis analisadas no CIATox são enviadas pelos Correios por associações e pacientes de diferentes estados brasileiros. Atualmente, o laboratório identifica e quantifica dez tipos de canabinoides, permitindo verificar a concentração real de cada composto presente nos produtos.
Lílian de Araújo Lima, doutoranda que atua no projeto, destaca a importância dessa caracterização. “Produtos com baixa concentração de canabinoides ou com composição divergente da declarada podem comprometer a eficácia do tratamento, deixando os pacientes sem os efeitos esperados”.
As análises são feitas por meio de técnicas avançadas de cromatografia (líquida ou gasosa) e espectrometria de massas. A cromatografia separa as moléculas presentes nos óleos, enquanto a espectrometria permite identificá-las e quantificá-las com precisão, fornecendo aos pacientes informações seguras sobre o que estão consumindo.
Além dos canabinoides, o projeto está se expandindo para detectar possíveis contaminantes, como solventes residuais (provenientes do processo de extração), metais pesados, pesticidas, fungos e micro-organismos. O laboratório também pretende analisar o perfil de terpenos — compostos aromáticos que influenciam as propriedades terapêuticas da Cannabis. “Nosso interesse pelos terpenos tem crescido, pois eles também apresentam atividade biológica relevante e podem potencializar os efeitos dos canabinoides”, explica Lílian.
Desafios enfrentados pela pesquisa
Apesar da relevância social e científica do trabalho, o projeto enfrenta obstáculos. Um dos principais é o alto custo envolvido: uma ampola com apenas 1 ml de padrão cromatográfico de canabinoides pode ultrapassar os R$ 16 mil, tem curta duração e é altamente instável após aberta.
Outro entrave diz respeito ao ambiente regulatório brasileiro. Mesmo seguindo todos os trâmites legais, o estigma em torno da Cannabis ainda gera resistência. Quando o projeto ganhou visibilidade, o CIATox foi notificado pela Anvisa sob a alegação de estar prestando um serviço de controle de qualidade. No entanto, trata-se de uma pesquisa científica, alinhada às finalidades da universidade pública.
O professor José Luiz relatou detalhes desse episódio: a denúncia chegou por meio da ouvidoria da Anvisa e gerou a necessidade de explicar formalmente a natureza acadêmica do projeto. Segundo ele, o apoio institucional da Unicamp foi essencial para garantir a continuidade das atividades, reforçando a importância de universidades se posicionarem frente a pautas sociais controversas.
A burocracia também impacta o andamento das atividades. Em 2023, o laboratório recebeu R$ 180 mil da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) para analisar 300 amostras, mas a liberação dos recursos e das autorizações internas da Unicamp foi demorada. Apenas em janeiro de 2025 foi possível abrir inscrições para o envio das amostras.
Ainda assim, os pesquisadores são otimistas com o futuro das pesquisas. “Na Unicamp, há um ambiente muito mais receptivo à investigação científica na área. E com o amadurecimento das discussões regulatórias no país, muitos dos obstáculos iniciais estão sendo superados”, considera Lilian.
“É com base nos resultados científicos que conseguiremos auxiliar e nortear as agências regulatórias e o governo a estruturar uma legislação justa e que garanta o amplo desenvolvimento do setor no país”, finaliza João Gouvea.
Daniel Rangel é formado e jornalismo e ciências, doutor em biotecnologia e monitoramento ambiental (UFSCar). Especialista em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.