O que as intoxicações mais comuns no Brasil dizem sobre a saúde da população

Por Paula Gomes

Segundo os dados dos centros de informação e assistência toxicológica brasileiros, as duas principais causas de intoxicação no país são por medicamentos (32% dos casos) e animais peçonhentos (30% dos casos).

Os acidentes com animais peçonhentos têm sazonalidade muito característica: aumentam nas estações quentes e diminuem em épocas frias. No calor, animais de sangue frio como aranhas, cobras e escorpiões ficam mais ativos, devido à maior oferta de alimentos e início do período reprodutivo. “De meados de setembro até março a gente observa o pico de casos com animais peçonhentos”, afirma Rafael Lanaro, toxicologista do Ciatox de Campinas e presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox). Há a questão da regionalidade também. Intoxicações com lagartas muito venenosas, como as do gênero Lonomia, são comuns na região Sul do país, enquanto no sudeste são mais frequentes os acidentes com escorpiões e serpentes como jararaca e cascavel.

Perigo na despensa

As crianças são a faixa etária mais acometida por intoxicações no Brasil. Elas representam 16,7% de todos os atendimentos realizados pelos Ciatox, sendo medicamentos – ingeridos acidentalmente – como principal motivo. Há também um número bem expressivo de casos infantis envolvendo produtos de limpeza — os chamados domissanitários, como alvejantes, detergentes, amaciantes e desinfetantes.

Segundo Lanaro, os casos de intoxicações infantis tendem a aumentar em períodos de férias escolares, quando as crianças permanecem mais tempo em casa. As embalagens desse tipo de produto costumam ser coloridas e o conteúdo frequentemente apresenta cor e odor intensos, além de muitos possuírem aspecto cremoso. Todas essas características costumam ser muito atrativas para crianças, que são especialmente curiosas e ativas. Por isso, é necessário cuidado ao armazenar esses produtos. “Esses acidentes costumam ocorrer quando são guardados em um armário baixo, que não é trancado, ou em um local indevido — já tivemos casos de pessoas que guardavam água sanitária na geladeira, em uma embalagem descaracterizada”, relata Nathaly Bueno, enfermeira com atuação no Ciatox de Campinas.

Uma agravante é quando a intoxicação ocorre com produtos vendidos em ruas e feiras, de fabricação caseira, que não são regulamentados nem apresentam rótulos (geralmente são vendidos em garrafas pet reaproveitadas de refrigerantes e sucos). Segundo Nathaly, esses casos são mais difíceis de tratar. “São potencialmente muito mais perigosos, porque não passaram por controle de qualidade, não sabemos a composição nem a concentração. E são nesses produtos que muitas vezes há substâncias corrosivas, como soda cáustica, por exemplo”.

Apesar de muitos desses acidentes serem de leve ou moderada gravidade, há o risco – dependendo do tipo e concentração do produto, ou quantidade ingerida – de complicações como perfuração gástrica, irritações no trato respiratório (caso a substância seja inalada) e outros sintomas que podem persistir por longos períodos.

Intoxicações em adultos

As tentativas de suicídio são a segunda maior causa de atendimentos dos Ciatox  — quase 24% dos casos. Analisando os dados de todo o país desde 2019, mulheres na faixa dos 20 a 29 anos lideram as tentativas de suicídio. Os números caem um pouco nas faixas de 30-39  e 40-49 anos, mas ainda são expressivos. 

Fonte: Mulheres na faixa dos 20 a 29 anos lideram as tentativas de suicídio. Fonte: Datatox

O principal agente utilizado são medicamentos, representando 76,5% dos casos. Segundo Karina Diniz Oliveira, professora do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp, “as tentativas de suicídio com medicamentos são mais comuns em mulheres, enquanto para os homens prevalecem tentativas de maior letalidade, como enforcamento, defenestração, uso de arma de fogo. As mulheres têm mais tentativas, enquanto entre os homens há um maior número de suicídios consumados.”

Um dos motivos pelos quais há a predileção por medicamentos em tentativas de suicídio femininas é a preocupação com a aparência, devido à pressão estética imposta a elas. “Alguns estudos mostram maior prevalência de métodos que preservam o rosto no caso de mulheres. Enforcamento, ferimentos de arma de fogo na boca ou na cabeça, por exemplo, são mais comuns em homens”, esclarece Karina.

Ainda segundo os dados dos Ciatox, os medicamentos mais utilizados por essas mulheres são ansiolíticos, antidepressivos,  analgésicos e antipiréticos e antipsicóticos. 

Medicamentos mais utilizados por mulheres em tentativas de suicídio. Fonte:Datatox/Abracit

Segundo Anna França, pesquisadora do Laboratório de Toxicologia (LTA) da Unicamp, “todo medicamento tem uma dosagem terapêutica, uma concentração que gera o efeito benéfico, mas também uma dosagem tóxica: a partir dela, deixa de trazer benefícios e começa a intoxicar o corpo”.

Em relação aos ansiolíticos e antidepressivos, é preciso ressaltar que, em suas formulações atuais, são considerados muito seguros. “Os medicamentos que geravam algum risco evoluíram. Ficou para trás aqueles que eram perigosos e associados à morte em casos de superdosagem, como é o caso dos barbitúricos, para as novas gerações de ansiolíticos, como os benzodiazepínicos, que são muito seguros”, explica França.

O consumo desses remédios passa a apresentar riscos quando são tomados em superdosagem ou em combinação com outras substâncias. “Dificilmente se consegue atingir uma dose letal apenas com clonazepam, diazepam ou alprazolam. A toxicidade ocorre quando eles são associados a outros medicamentos ou substâncias — benzodiazepínicos com álcool, por exemplo. Como ambos causam depressão no sistema nervoso central, a combinação potencializa esse efeito, podendo gerar depressão respiratória”, explica Lanaro. 

Uma motivação para a utilização desse tipo de medicamento em tentativas de autoextermínio é o fato de eles já estarem sendo utilizados (em dosagens terapêuticas) por essas vítimas, que, não raro, estão em tratamento para algum transtorno mental: “As medicações antidepressivas, ansiolíticas e antipsicóticas muitas vezes estão disponíveis para as vítimas de tentativa de suicídio porque são utilizadas no tratamento de transtornos mentais. Por isso é muito importante que qualquer profissional de saúde inquira ativamente sobre a existência de comportamento suicida em todos os pacientes que relatem sintomas compatíveis com transtorno mental, como ansiedade, tristeza, desconfiança ou isolamento social, entre outros. Ao contrário do que muitos pensam, perguntar sobre ideação suicida não induz o paciente a ter pensamentos de autoextermínio. Pelo contrário, pode ser decisivo para protegê-lo e evitar um desfecho trágico”, alerta Karina.

Além disso, muitas pessoas têm a falsa sensação de que, caso recorram a esses medicamentos para a tentativa de suicídio, irão “morrer dormindo”, uma vez que eles causam sonolência. Karina esclarece que isso não é verdade: “É um método que muitos consideram não ser “doloroso”, o que nem sempre é verdade. E também acreditam que a sobrevivência não gera sequelas – como métodos mais violentos. Mas isso não é real, porque uma parada respiratória pode causar sequelas bastante graves”.

Cuidado com o paracetamol

Os medicamentos isentos de prescrição — aqueles vendidos em farmácias sem necessidade de receita — geralmente não têm grande capacidade de intoxicação, como é o caso da dipirona e do ibuprofeno, por exemplo. Mas um deles apresenta um risco grande: o paracetamol. Esse medicamento, da classe dos analgésicos e antipiréticos, pode ser encontrado em diferentes formulações, recomendado para gripes, dores de cabeça ou dores musculares. É bastante comum, gerando a sensação de que não seria capaz de trazer nenhum malefício, mesmo em altas dosagens. No entanto, não é verdade, como explica Anna França. “Quando o paracetamol está sendo metabolizado pelo fígado, uma substância tóxica para o órgão é gerada. Em dosagens baixas, o corpo consegue expeli-la. Dosagens altas, no entanto, geram um acúmulo no fígado. Existe ainda um agravante: em alguns casos de superdosagem os sintomas são inespecíficos (como náusea e vômitos), mas já revelam dano hepático”. Uma dose tóxica para o fígado não é tão difícil de se atingir: “uma ingesta de paracetamol acima de 150mg por quilo já basta”, alerta Lanaro.

Geralmente as causas de intoxicação por paracetamol são ingestões acidentais por crianças (em formulações líquidas, que as atraem) e por adultos que, por desconhecerem a alta toxicidade do produto, acabam ingerindo altas dosagens. Também é utilizado em tentativas de suicídio, quando há uso de “polifarmácia” — com múltiplos medicamentos.

A boa notícia é que existe um antídoto para esse tipo de intoxicação, chamado NAC, (n-acetilcisteina), que ajuda a diminuir a formação desse metabólito tóxico. “Geralmente é usado em doses bem elevadas —em uma primeira fase é utilizada uma ampola por quilo do paciente. Sem o antídoto, dificilmente se reverte essa intoxicação. O caso evolui para necrose hepática, necessitando muitas vezes de transplante”, explica Lanaro.

Lanaro destaca que é importante que o país tenha bem delineada uma política nacional de antídotos em pontos estratégicos, além de promover e fortalecer a colaboração entre os órgãos de saúde pública, como hospitais e Ciatox. “O Ciatox oferece todo o suporte para esse tipo de intoxicação. O diagnóstico laboratorial é importante, para saber se foi atingida a dose tóxica ou não. Confirmada, é feito o tratamento hospitalar com uso de antídoto. Descartando a dose tóxica, você evita que o paciente permaneça no hospital ocupando um leito de urgência e emergência, ou que uma criança permaneça internada sem necessidade”, conclui.

Paula Gomes é doutora em multimeios (Unicamp) e especialista em divulgação científica pelo Labjor. Pós-doc no CIATox/Campinas