O documentário, selecionado em seu lançamento como melhor filme pelo júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema, funciona como documento histórico, memorialístico e autobiográfico, e também como um convite à reflexão profunda sobre tempo, trabalho e relações sociais.
Por Anderson Lopes dos Santos
Se Carnaval é festa e celebração para muitos, para outros é uma oportunidade única de descanso de uma rotina de trabalho extenuante, como para os moradores de uma pequena cidade pernambucana. No Agreste – região de transição geográfica entre o litoral e o sertão nordestino – eles dedicam seus corpos e mentes o ano inteiro à produção do “ouro azul de Toritama”.
No documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar (2019), de direção do recifense Marcelo Gomes, que assume também o roteiro e a narração, são expostos os efeitos da doutrina neoliberal na vida da população da pequena Toritama, conforme aponta Gomes em entrevista. Atuando como patrões de si, a maior parte da população da cidade gerencia dentro do próprio quintal uma pequena fábrica de jeans, com muitos se dedicando das seis da manhã às dez da noite, sete dias por semana, a fim de receberem mais no final do mês.
O valor por peça produzida é da ordem dos décimos de centavos, entretanto a lógica produtivista domina os discursos: quem produz mais, ganha mais.
O documentário, selecionado como melhor filme pelo júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema em seu ano de lançamento, funciona como documento histórico, memorialístico e autobiográfico, e também como um convite à reflexão profunda sobre tempo e autonomia. O narrador, em certa medida onisciente, percebe a comunidade no tempo e no espaço e conclui as mudanças que Toritama sediou.
Em meio à rotina extenuante, o som mecânico e quase futurista das máquinas e dos trabalhos repetitivos – que garantem o padrão das peças – enche as ruas da cidade. “O barulho ensurdecedor das máquinas me causa ansiedade. Agora é essa repetição desse movimento que me causa angústia”, diz o narrador. Em uma das cenas tal som é substituído por uma música clássica que adiciona momentaneamente algo de poético ao ritual iterado.
Cerca de 90% do documentário é dedicado a mostrar a realidade dos trabalhadores de Toritama (75 dos seus 85 minutos), seus pontos de vista diversos e seus objetivos em comum; os outros 10% são gravações realizadas pelos próprios trabalhadores curtindo o feriado prolongado na praia ou pelas ruas da cidade, agora esvaziada.
O grande choque de Estou me guardando para quando o Carnaval chegar vem quando as pessoas começam a vender seus pertences para custear a ida à praia. Tudo passa a girar ao redor do momento em que poderão deixar aquele cotidiano para trás em direção ao litoral. As perguntas não calam. Como é possível que pessoas que trabalhem tanto durante o ano não consigam sustentar uma única viagem? Quem tem acesso às cidades, ao lazer, ao descanso? Quem é que pode, de fato, se envolver com o Carnaval, apreciar a celebração?
Os cidadãos de Toritama, que dedicam suas vidas à produção massiva de um bem de consumo, não parecem ser autorizados. E, por isso, têm uma relação simbólica de outra ordem com o Carnaval, que lhes serve de momento de apreciação da vida além do trabalho.
Em tempos em que urge a necessidade de um rearranjo nas relações de trabalho e produção, obras cinematográficas como esta, que desnudam de alguma forma os mecanismos por trás da cultura do trabalho e do consumo, possibilitam o registro e o resgaste de memórias de nosso tempo – e se não nos dão respostas, pelo menos pedem que façamos perguntas.
Anderson Lopes dos Santos cursa licenciatura em Letras (Unicamp) e é estágiário no Labjor (Bas/Deape).