A violência e o trágico na literatura

Por Carlos Vogt

“Há um aspecto de oposição não entre natureza e cultura, porque não é exatamente nestes termos que esta questão se coloca para os gregos, mas entre selvageria primordial e mundo policiado”.
Jean-Pierre Vernant[1]

No dia 29 de outubro de 2015, participei, de uma mesa redonda sobre o tema “Representação do trágico na psicanálise e na literatura”, realizada dentro do conjunto de atividades do extenso e intenso programa do XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise, em São Paulo.

A motivação da mesa e do tema foi, como não podia deixar de ser, o livro de Jassanan Amoroso Dias, O trágico: Schopenhauer e Freud[2], então recém-lançado, que, desse modo, pautou as nossas duas apresentações.

A autora fez um breve resumo do livro e eu, a pretexto do tema e de suas variações, nele tão bem exploradas e tratadas, acompanhei, com entusiasmo apaixonado, a viagem intelectual que a obra oferece para quem quiser ir da tragédia ática, nos séculos VI e V a.C., ao trágico na filosofia moderna, no drama elisabetano de Shakespeare, passando ainda por Nietzsche, em particular, a filosofia de Schopenhauer e a psicanálise de Freud.

Li o livro pelo prazer da leitura e com ele alimentei, no leitor aficcionado, a reflexão, por ele provocada, não só sobre a tragédia como gênero literário, ou como marca radical das inovações que traz para as instituições sociais e para a experiência humana, como observa Jean-Pierre Vernant, mas também como “o sentimento trágico da vida”, segundo a expressão contundentemente feliz de Miguel de Unamuno.

Foi sob a ótica desse sentimento que procurei traduzir as impressões de leitura do livro de Jassanan, explorando textos que já havia escrito e publicado como prefácios de três romances de três diferentes autores que, de um modo, ou de outro, ressoam características e traços distintivos da presença do trágico em suas obras.

Assim, em A servidão humana, de Somerset Maugham[3], publicado originalmente em 1915, pode-se sentir a profunda inquietação do homem que buscou incessantemente, pela diversidade da experiência de vida, num cenário de grandes transformações da Europa e do mundo, a resposta para a pergunta que gerações arrastaram pelos desertos de abandono produzidos na entressafra de horrores das duas grandes guerras: “Qual o sentido da vida, se é que a vida tem algum sentido?”

Embora o físico Niels Bohr tenha anotado que “o sentido da vida consiste em que não tem nenhum sentido dizer que a vida não tem sentido”, o fato é que para a literatura do século XX, de uma forma geral, essa questão permaneceu como um enigma em busca e à espera de sua decifração e encontrou respostas como a que, de maneira dolorosamente simples, lhe dá o narrador do romance de Somerset Maughan:

“Pensando em Cronshaw, Philip lembrou-se do tapete persa que ele lhe dera, dizendo-lhe que ele oferecia uma resposta à questão sobre o sentido da vida; e de repente a resposta ocorreu-lhe: ele riu: agora que ele a possuía, era como um quebra-cabeça que você tenta resolver até que a solução lhe é mostrada e você fica se perguntando como é que não a viu antes. A resposta era óbvia. A vida não tem nenhum sentido”.

No caso, a solução do enigma é a resignação agnóstica de quem também anotara no livro Confissões[4]: “Permaneço um agnóstico, e a consequência prática do agnosticismo é que você age como se Deus não existisse”.

Desse modo, o romance A servidão humana é também, a seu modo, uma resposta a essa pergunta-enigma e o encontro do personagem-aprendiz Philip Carey, desse romance de formação, com a revelação que ela traz é uma forma de libertação da condição de escravidão metafísica do ser humano diante da vida e de seus mistérios.

Na tragédia clássica Édipo Rei, de Sófocles, o herói, ao decifrar o enigma da esfinge, na entrada da cidade de Tebas, torna-se, ele próprio, como bem anota Vernant, enigma também, que ele não pode decifrar e, assim, transforma, novamente, a resposta da decifração na pergunta de sua condenação.

Ainda, como observa Lévi-Strauss, há no mito de Édipo um movimento, de um lado, de superestimação das relações de parentesco, que aproxima e une, por exemplo, Édipo e Jocasta, ou Antígona e Polinice e, de outro, um movimento que subestima essas relações, gerando, por exemplo, o parricídio de Laios por Édipo, ou o fatricídio de Polinice por Etéocles. O que os personagens não sabem constitui a sua perdição; o que eles vêm a saber decreta sua condenação.

Em Somerset Maughan, as amarras da servidão humana, a que se refere o título do livro, são de natureza metafísica e ligam o homem à condição dos limites que o agnosticismo desconfiadamente estabelece para a afirmação de que Deus não existe, com a certeza de que não há como prová-la.

Por isso, é emblemática desse pessimismo cético do autor a história do rei oriental que ele menciona no capítulo LXVI de Confissões e retoma, pela lembrança do personagem Philip Carey, no capítulo CVI de A servidão humana.

Trata-se da história de um rei que encomenda aos sábios do reino a compilação de todo o conhecimento do homem. Trazem-lhe quinhentos volumes depois de anos. Não tendo tempo de lê-los por ocupação com as coisas do estado, ordena-lhes que os condensem. Mais tempo decorre e lhe entregam cinquenta volumes. Mas o rei envelheceu, o trabalho o assoberba e, assim, é preciso mais concisão. Passa-se o tempo. Rei e sábios envelheceram ainda mais e quando, finalmente, o volume único está pronto para lhe ser entregue, o rei em seu leito de morte, já não pode ler e o conhecimento acumulado, dessa forma, é-lhe de todo inútil.

Essa parábola que, de certa forma, pode ser reencontrada num outro livro que, no entre-guerras, marcou a literatura mundial e gerações sucessivas de leitores. A condição humana, de André Malraux, resume também, de modo icônico, o que, a propósito do romance de Somerset Maughan, escreveu, em sua História da literatura ocidental, Otto Maria Carpeaux dizendo que o autor “é o pessimista mais sistemático da literatura do século XX”.

Neste caso, como também nos romances de Aldous Huxley e Graham Greene a que atrás nos referimos, a presença de Schopenhauer é marcante. E tanto mais marcante, quando se leva em conta que, nesses autores, reproduz-se, de certa forma, e ao modo pessoal de cada um deles, a observação que faz Jassanan Pastore a propósito do filósofo alemão, citando Alexis Philonenko:

“Schopenhauer define essa consciência trágica ─ a árvore do conhecimento não é a árvore da vida ─, essa intuição que sustenta seu sistema inspirado nos versos de Lord Byron, em Manfred: “Dor é conhecimento: os que mais sabem/ Devem suportar o duelo mais profundo desta fatal Verdade/ A árvore do conhecimento não é a arvore da Vida (ato I, cena I)” […]

Philonenko considera que “as reflexões que se apoiam nessa intuição são pessimistas, mas se trata de um pessimismo que convém entender como originariamente fundado na consciência trágica, ou melhor, o trágico filosófico é o alicerce fundante do pessimismo. […] Ou seja, a consciência do trágico em Schopenhauer o conduz para o pessimismo”. [5]

O gênio e a deusa [6] foi publicado pela primeira vez em 1955 na Inglaterra, quando Huxley vivia já há algum tempo em Los Angeles, na Califórnia. Narrada pela interposição do relato de um amigo, a história é contada num diálogo de lembranças entre este e o protagonista da trama John Rivers, no ano de 1951, numa espécie de viagem sentimental em torno de si mesmo e da culpa da recordação.

A ação do romance se passa em 1921 e tem como personagens, além do próprio Rivers, o físico Henry Maartens, consagrado com um prêmio Nobel e reconhecido como gênio, sua mulher Katy, de nórdica beleza, bem mais nova que o marido e percebida pelo narrador como a deusa em questão. Há ainda a filha mais velha do casal, Ruth, e o garoto Timmy, além da criada negra Beulah, da mãe doente de Katy e da mãe protetora de Rivers, estas mais referidas que atuantes no cenário das lembranças, mas nem por isso sem importância no jogo de oposições em que os caracteres do livro vão se moldando e as partilhas do destino se configurando em predestinações, como observa Rivers a propósito do desastre em que perdeu a vida a deusa e a jovem poetisa inquietante e inquieta, pelo amor não correspondido pelo mesmo John Rivers, amante de sua mãe:

“Na verdade foram dois tipos de Predestinação. A Predestinação dos acontecimentos, e ao mesmo tempo a Predestinação de dois temperamentos, o de Ruth e o de Katy ─ o temperamento de uma criança ofendida, que era também um mulher ciumenta; e o temperamento de uma deusa, encurralada pelas circunstâncias e a dar-se subitamente conta de que, objetivamente, era apenas um ser humano, para quem o temperamento olímpico poderia em realidade constituir um sério entrave.”. (p.146)

Se na tragédia clássica é o destino que rege a vida das personagens, o herói do drama romântico perde o destino e ganha destinações nos embates com o meio, com a natureza, com a sociedade, consigo mesmo, multiplicando-se em lutas e estilhaçando-se em angústias.

No conceito de predestinação, tal como aqui aparece no romance de Huxley, pode vislumbrar-se, de um lado, o misticismo religioso e ─ com abuso dos termos ─ filosófico e científico que também marcou sua vida e sua obra, misturando Pascal, orientalismos, o visionarismo de Gerald Heard, mescalina para chegar a As portas da percepção e deixar como herança o título The doors para o conjunto do rock que Jim Morison liderou e precocemente deixou pela triste e prematura morte em Paris. De outro lado, a predestinação de Huxley tem a ver, de certa forma, com a visão trágica que o existencialismo filosoficamente elaborou para o pessimismo existencial de toda uma geração de entre-guerras, lembrando assim a observação lapidar de Camus de que ao poeta, ao escritor não cabe fazer, mas sofrer a história.

O pessimismo de Huxley, apontado por vários críticos e registrado sob diversas formas em diferentes obras e sob vários gêneros literários teve, desde o início de sua carreira, o seu reconhecimento compartilhado por outros grandes pessimistas criadores, entre eles Jorge Luis Borges, que já em 15 de janeiro de 1937 anotava que “o sentimento básico de Huxley é o pessimismo”, atribuindo, assim, a atitude intelectual do autor a uma herança familiar biológica.

No mesmo texto ─ “La dinastia de los Huxley” ─ Borges, contestando as “incuráveis” bobagens do otimismo, cita Thomas Huxley, o avô de Aldous, para confirmar a genealogia do predestinado pessimismo de nosso autor:

“As doutrinas da predestinação, do pecado original, da depravação inata do homem, de seu infortúnio, do reino de Satã na terra, de um demiurgo malévolo, pareceu-me (por mais extravagante que seja sua forma) muito mais razoáveis que nossa ilusão liberal de que todas as crianças nascem boas e que os que as deteriora é o exemplo de uma sociedade corrompida… Tampouco posso crer que a Providência seja um filantropo oculto e que tudo, com o tempo, melhorará.”[7]

Na sequência, observa ainda que a hipótese do avô de uma inversão ou regressão do processo cósmico, não sendo a evolução um processo necessariamente infinito, é lôbrega e que poderia perfeitamente ser de Aldous Huxley.

O comentário de Borges dirigia-se certamente, até pelo ano em que foi escrito, ao livro mais famoso de Huxley ─ Admirável mundo novo ─, mas não deixa de aplicar-se ao romance em que, entre o gênio e a deusa, o jovem aprendiz de físico aprende também que o homem sucumbe à sua própria humanidade e que ao fim salvam-se todos, pela graça divina, menos os que, predestinados ao inverso, se perdem pelos acontecimentos e por perdidos estarem em sua condição.

O gênio e a deusa é, ao mesmo tempo, um romance de tese e um romance familiar.

A tese é a de que não há como escapar à nossa própria humanidade, seja pela beleza ─  a de Katy, a deusa no caso ─, seja pela excepcionalidade e excentricidade da inteligência ─ a de Henry Maartens, o físico atômico e o gênio em questão.

É também um romance familiar, um pouco no sentido técnico que essa expressão tem na psicanálise e que lhe foi determinado por Freud e por Otto Rank.

De fato, John Rivers, que não é nenhuma criança à época dos acontecimentos rememorados por ele com o amigo 30 anos depois de sucedidos, é, contudo, virgem ainda aos 28 anos, quando deixa a casa de sua mãe viúva para ir morar com os Maartens em St. Louis, em busca de sua formação com o mestre que tanto respeita e admira.

Troca, assim, a casa da opressão materna pela fantasia de um lar constituído por um pai genial e uma irmã divina. Édipo logo aparece, tanto na relação de Rivers com Katy, quanto no amor desprezado da adolescente Ruth por ele. O desastre é iminente. Perdem-se todos, menos os que, predestinados, como Rivers e Maartens, se salvam refazendo suas vidas pelos padrões médios da segura bem-aventurança da reconstrução do amor familiar.

Publicado originalmente em 1948, O cerne da questão, de Graham Greene,[8] conta a história de Scobie, major da polícia colonial inglesa em Serra Leoa, África Ocidental. A ação se passa principalmente na cidade de Freetown, capital, cujo nome, dado o clima de clausura, opressão e sufocamento e fofocas em que vivem os personagens, é também uma espécie de ironia literária na composição do ambiente em que se desenrola o cotidiano de suas vidas de funcionários do reino em exílio oficial.

Scobie e Louise, sua esposa, tiveram uma filha que morreu menina quando viviam na Inglaterra, e ele se encontrara fora, em viagem, na África. A morte da filha, que ele não presenciou será, contudo, revivida no episódio em que ele acompanha a agonia de uma garotinha de seis anos, em Pende, como consequência de um naufrágio, no qual pereceram também os seus pais.

Scobie é um homem, hoje se diria, de meia idade, com seus 50 anos e tem um senso agudo de responsabilidade aliado a um fortíssimo sentimento de piedade em relação ao mundo, em relação às pessoas, em relação à sua mulher, em relação à amante, em relação a si mesmo:

“… ele não podia descrever para Mrs. Bowles a inquietação, as imagens obsessivas, o terrível sentimento impotente de responsabilidade e piedade.”  (p.111)

Em Pende, acompanhando o resgate dos sobreviventes do naufrágio e a sua internação para tratamento, Scobie, além da morte da menina de seis anos, tem mais duas experiências marcantemente próximas a reforçar a sua piedosa paixão e, por que não, a sua piedade apaixonada.

A primeira é a recuperação do menino a quem ele finge a leitura de um livro missionário como se fosse um livro de aventuras e que se encontra no mesmo quarto em que também está Helen Rolt, uma jovem viúva, cujo marido pereceu no desastre do navio. Helen se tornará a amante de Scobie enquanto Louise, sua mulher, encontra-se ausente, na África do Sul, numa viagem que ela o pressionou a conseguir pagar, para escapar da opressão e do cerceamento que sentia em Freetown, no ambiente social frequentado e formado pelos seus pares, brancos, ingleses e colonizadores, que mal disfarçavam, na sua percepção, o desprezo pelos seus constantes entusiasmos literários.

As duas, a seu modo, e na diferença de idade que as separa, são parecidas, desprovidas de beleza e graça e nada atraentes.

É a paixão da piedade, a piedade transformada (melhor seria dizer transtornada) em vício que leva Scobie à armadilha da obrigação moral irreconciliável, com os homens, com o mundo, com Deus, consigo mesmo. O adultério e o suicídio de Scobie são consequências (saídas?, clausuras?) do mistério da piedade – no sentido teológico e religioso em que se fala do mistério de Cristo – , mistério que a impõe ao homem na ambivalência da virtude e do vício.

Kenneth Allot e Miriam Farris no estudo crítico The art of Graham Greene [9], no capítulo “The universe of pity” em que são analisados, além de O cerne da questão, The power and the glory (1940) e The ministry of fear (1943), sintetizam bem o mergulho nesse universo de conflitos a que nos levam esses romances:

“ser feliz é uma impossibilidade no mundo decaído para o homem sensível: o que ele deve sentir é piedade – piedade pela juventude e inocência, piedade pelos sofrimentos de toda espécie, piedade até mesmo pelo iníquo.
Camus escreve que os grandes sentimentos geram mundos característicos que lhe são próprios: o mundo de Greene nesses três livros é construído sobre o sentimento de piedade, tal como o mundo de François Mauriac se constrói sobre o sofrimento causado pela decepção (inclusive a decepção consigo mesmo).”

Scobie acompanha, piedoso e responsável, os trabalhos de assistência aos náufragos resgatados em Pende. É noite. Pensa no jovem Pemberton, comissário distrital que se matou em Bamba:

“Que coisa absurda é esperar por felicidade num mundo cheio de miséria” (p.111)

Scobie vai se envolvendo em outros incidentes e é envolvido por outras circunstâncias, direta ou indiretamente relacionadas com o pecado do adultério. É dessa forma, como pecador, que ele vive e tem a percepção do caso amoroso com Helen, pois, católico, tal qual vários outros personagens e protagonistas dos romances de Greene, o conflito moral que assim se desencadeia gera o dilema religioso que, assoberbado pelo “terrível e impotente sentimento de responsabilidade e piedade” (p.111) acabará, de modo um tanto melodramático, a levá-lo ao suicídio.

O cerne da questão, é um romance de provação. Scobie é encerrado no circuito fechado de sua provação e o que o perde definitivamente é a danação da bondade:

“Desesperança, é o preço que se paga por se estabelecer um objetivo impossível. É, como se diz, o imperdoável pecado, mas é um pecado que o homem corrupto, ou mau não comete. Ele sempre tem esperança. Ele nunca atinge o ponto de conhecer o fracasso absoluto. Só o homem de boa vontade leva para sempre em seu coração essa capacidade de danação.” (p.50)

A saga do Major Scobie compõe a via sacra da paixão da responsabilidade e desenha o roteiro da provação do mistério da piedade do homem abandonado ao cumprimento de seu destino, melhor dizendo, de sua destinação, pois que se trata do drama trágico do homem moderno e da expiação de seus pecados no mundo.

Desse modo, como se vê, o trágico fundado pela tragédia grega, os ecos da consciência trágica, do sentimento trágico do mundo, e do pessimismo que daí derivou, estão presentes em boa parte da boa literatura do final do século XIX e, praticamente, de todo século XX.

Como anota Jassanan Pastore, voltando a Schopenhauer, este “adverte que a vida governada pelo desejo não admite felicidade duradoura e é, por isso, essencialmente sofrimento ─ um estado de infelicidade radical.”[10]

Ou, como eternizaram Vinícius de Moraes e Tom Jobim:

Tristeza não tem fim
Felicidade sim…

Ou, como aprendemos a recitar, desde as primeiras letras poéticas, com Vicente de Carvalho:

Felicidade

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada:
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Ou ainda no poema “Do amor enigma”, que escrevi, em parte motivado pela leitura do livro de Jassanan Pastore e pelas leituras que nele ela faz de tantos autores capazes de multiplicar as motivações em torno do tema:

Do amor enigma

No meio do caminho de nossa vida,
Cruzam-se presença e ausência
A traçar o trajeto de quem lida
Com o sucesso e o fracasso da existência.

No ponto de encontro, una e dividida,
À sombra do acaso, sobra a aparência
De que a revelação se dá por escondida
Máscara do real, ilusão da consciência.

Tenta-se não perder o encantamento
De juntos ser felizes só por tê-lo,
O amor, ora projeto e sentimento,

Às vezes, sendo excesso e também zelo,
Esbarra no destino, mesmo lento,
De sempre se enganar com o próprio erro.

* Este texto, com breves adaptações, constitui a versão ampliada da resenha-comentário ao livro de Pastore, J. A. D. O trágico: Schopenhauer e Freud. São Paulo: Primavera Editorial, 2015, publicada na Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 50, nº 3, 2016, p.15.

[1] Vernant, J-P.. Entre mito & política. São Paulo: Edusp, 2ª ed. 2002, p. 369.

[2] Pastore, J. A. D. O trágico: Schopenhauer e Freud. São Paulo: Primavera Editorial, 2015, publicada na Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 50, nº 3, 2016, p.15.

[3] Cf. o prefácio “O sentido do sem sentido da vida” ao romance A servidão humana, na publicação da editora Globo, São Paulo, 2005.

[4] Maugham, S.. Confissões, editora Globo, São Paulo, 2006, para cuja edição em português do original inglês Summing up, de 1938, fiz também o prefácio.

[5] Pastore, op. cit., p. 176.

[6] Cf. o prefácio “Um romance familiar”, ao livro O gênio e a deusa, na publicação da editora Globo, São Paulo, 2005.

[7] Borges J. L. Obras completas. Buenos Aires: Eunice Editores, 1996, v. IV, p. 243.

[8] Cf. o prefácio “Nó górdio”, ao romance O cerne da questão, na publicação da editora Globo, São Paulo, 2007.

[9] Kenneth Allot & Miriam Farris. The art of Graham Greene. Londres:  Hamish Hamilton, 1951, p. 163.

[10] Pastore, op. cit., p. 172.