A volta do cambuci

Por Luanne Caires, Monique Rached e Mauricio Boff

Plantio do fruto nativo da Mata Atlântica envolve produtores, sociedade civil e setor privado e alia conservação e desenvolvimento sustentável na Serra do Mar

A história do cambuci confunde-se com a da cidade de São Paulo. Nome de um fruto nativo da Mata Atlântica, também é um bairro tradicional no coração da megalópole brasileira. A Campomanesia phaea – o nome científico da cambuciera – ou kamu’si – pote d’água, em tupi-guarani – era abundante naquela região, motivo pelo qual o distrito recebeu, anos depois, o nome de Cambuci. Registros históricos datam do século XVI. Naquela época, o bairro integrava a trilha entre São Paulo, no alto do Planalto de Piratininga, e o porto de Santos. As árvores de cambuci eram fonte de alimento e sombra para os tropeiros que cruzavam a rota entre a Serra do Mar e o interior paulista.

O predomínio das árvores cedeu espaço à urbanização e à especulação imobiliária. A partir de 1890, foram construídos o Museu do Ipiranga e a linha de bonde, que ligava o aparelho cultural ao centro da cidade. O bairro foi oficializado no final de 1906. Hoje, mais de 36 mil habitantes vivem nele. Apesar de perder prestígio e quase desaparecer no século XX em consequência do crescimento urbano e da exploração descontrolada da madeira de excelente qualidade da árvore, o cambuci voltou a crescer no bairro no século XXI.

Em 2009, o Instituto Auá começou o projeto histórico e cultural chamado Rota do Cambuci, que inclui a capital paulista. No bairro do Cambuci, o projeto consiste em mutirões de plantio de cambucizeiros. Calcula-se que já tenham sido plantadas mais de 200 mudas, e que entre 40 e 50 pés do fruto nativo vingaram deste então.

Rua Espírita, no bairro do Cambuci, em 1927 (Foto: Caio P. Barreto/Sampa Histórica – Memória Pública do Acervo do Arquivo Público de São Paulo).

Cambuci: conservação e desenvolvimento na Serra do Mar

A história do cambuci também se confunde com a da conservação da Mata Atlântica no Estado de São Paulo. O fruto, que tem cor verde e formato de um disco voador, é endêmico das florestas nativas dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O tempo passou e o cambuci resistiu nos limites da capital paulista e no topo da Serra do Mar. No entorno de São Paulo, um cinturão verde de cerca de 600 mil hectares de Mata Atlântica original resiste e propicia serviços ambientais à vida na cidade.

O cambuci constrói atualmente uma história que alia conservação e desenvolvimento econômico regional também em outros  municípios da região. Esse é um dos motivos pelos quais a Rota do Cambuci envolve 11 municípios paulistas, inclusive a capital. A rota realiza festivais, organiza produtores locais e promove roteiros turísticos. No centro do discurso está a recuperação da Mata Atlântica e valorização da biodiversidade local por meio do cambucizeiro.

A árvore atinge até cinco metros de altura. Tem crescimento lento e germinação difícil. Sua dispersão é feita graças às fezes de animais silvestres, como a paca e o cachorro-do-mato, que se alimentam do fruto. Devido às características, já esteve ameaçada de extinção. Hoje, o número de árvores cresceu consideravelmente, em parte graças ao aumento do interesse comercial por pequenos produtores em áreas próximas a fragmentos naturais de mata. Nos pequenos municípios em torno da Serra do Mar, como Paranapiacaba, Rio Grande da Serra, Salesópolis, Paraibuna e Natividade da Serra, muitos produtores têm adotado o fruto como principal fonte de renda.

O produtor rural Paulo Nakanishi, 62, planta 1,5 mil pés de cambuci no sítio Recanto dos Pássaros, no distrito de Pouso Frio, em Natividade da Serra (SP), distante 200 quilômetros da capital paulista. Nakanishi divide com a esposa e o filho a gestão e manejo da propriedade de 6,5 hectares na porção paulista do Vale do Paraíba. Nascido na Zona Leste de São Paulo, filho de pai japonês e avô materno espanhol, viveu 43 anos em São Paulo antes de se mudar em definitivo para o campo.

Comprou o sítio Recanto dos Pássaros, em 2003, realizando um sonho antigo. Pagou R$ 35 mil na propriedade, hoje avaliada em mais de R$ 1 milhão. Quando entrou pela primeira vez no terreno, não escutou pássaros e viu uma terra degradada pela prática da pecuária. Apenas o canto da seriema ecoava no relevo acidentado, comum em paisagens da Mata Atlântica que foram substituídas por pasto para a alimentação do gado. Na região Sudeste, esse é um problema comum em paisagens rurais no bioma, que são marcadas pela fragmentação dos ecossistemas florestais e, em muitas áreas, baixa produtividade agrícola, perda de biodiversidade e pouca oferta de serviços ambientais.

Mesa posta: entre geleia e porções de bolo e biscoitos de cambuci, foto com a casa e o sítio Recanto dos Pássaros, em 2003 (Foto: Mauricio Boff).

Paulo decidiu começar plantando verdura, em 2003, em parte da propriedade. Não deu certo. ”Lembro de uma vizinha que falava que deveria apostar no cambuci, que o futuro estava naquela fruta. Ela ficava repetindo e repetindo isso. Dizia que seria um bom negócio para minha esposa e para mim”, lembra. O cambuci era abundante nas matas remanescentes na Serra do Mar em terrenos próximos, com árvores centenárias e que chegavam a ter caule do tamanho que um homem sozinho não seria capaz de abraçar. A fruta caía do pé e sobrava no chão da floresta, servindo de alimento para os animais silvestres. Os moradores da região consumiam o xarope do cambuci, que era colocado na aguardente de produção caseira.

Em 2005, conseguiu as primeiras mudas de cambucizeiro com um vizinho. Em 2006, conseguiu sementes e semeou. E começou a pesquisar. “Com 30 pés, calculei que venderia 1,3 mil litros de xarope de cambuci a R$ 6. Se plantássemos uns 100 pés, daria para tirar um bom dinheiro”, recorda Paulo.

Na maior porção do terreno, de relevo bastante acentuado por estar localizado no topo de um morro, Paulo deixou a natureza operar por conta própria em um processo conhecido como regeneração natural. O pasto, antes usado para a criação de animais, foi naturalmente sendo substituído por espécies arbóreas nativas da Mata Atlântica, que vinham trazidas pelos pássaros e animais rasteiros – em boa parte, atraídos pelo fruto do cambuci.

Entre 2007, o Instituto Auá chegou na região com a ideia de estimular os pequenos produtores a plantar o cambuci orgânico com base em técnicas agroflorestais e, pela fruta nativa, sensibilizar a restauração da Mata Atlântica na Serra do Mar. Os pesquisadores promoveram oficinas de sensibilização. Nakanishi foi um dos pioneiros em aderir à proposta do instituto, que tinha a meta de auxiliar os produtores locais a vender comercialmente o cambuci. Uma das oficinas levou produtores rurais de Rio Grande da Serra (SP) para Pouso Frio, em 2008. Os produtores conheciam a produção da cachaça com cambuci e chegaram a montar uma cooperativa de cachaça, a Cooper Cambucy da Serra. O modelo consistia em comprar a cachaça a baixo custo de região produtora de aguardente, curtir a bebida com cambuci em tonéis de madeira e envasar na região produtora do fruto.

A retorno da floresta: pasto foi substituído por árvores nativas e plantio do cambucizeiro. Ao fundo, a casa da família hoje no topo do morro (Foto: Mauricio Boff).

Nakanishi recorda que ficou empolgado e passou a ser um agente para fortalecer a rede que o instituto montava. A Rota do Cambuci nasceu, em 2011, para envolver ainda mais consumidores e também outros produtores nos municípios da região. Hoje, são mais de 70 produtores nos distritos de Pouso Frio e o vizinho Pouso Alto, ambos em Natividade da Serra (SP). Ele estima que os 1,5 mil pés de cambucizeiro rendam 15 toneladas de fruta na safra de 2018. “O cambuci se adaptou bem ao solo da minha propriedade. O mineral do morro adocica a fruta, que é naturalmente azeda”, diz. O instituto compra a produção in natura da fruta congelada para depois fazer a distribuição e a venda. Um dos clientes é uma importante rede de lanchonetes que vende produtos orgânicos na capital paulista.

Outra parte fica com o instituto para a produção de sorvete de cambuci. Nakanishi armazena o xarope na propriedade, faz licor da cachaça e também a cachaça curtida com cambuci. A aguardente provém de Cesário Lange (SP). Para evitar desperdício de matéria-prima, produzem farinha de cambuci com o bagaço seco da fruta, sobra do processo de extração do suco, que é usado para produzir o xarope. O cambuci da propriedade de Nakanishi também vai parar na merenda escolar de Caraguatatuba (SP) e de Itapecerica da Serra (SP). “Digo que não vivo 100% do cambuci, mas 200%. Isso porque como, vendo e respiro o cambuci. Minha família (esposa, filho e eu) não trabalhamos para fora”, comemora o produtor rural.

O cambuci é o carro-chefe, mas planta-se na propriedade 60 variedades de frutos – nem todos endêmicos o ecossistema da Mata Atlântica. Além dos cambucizeiros, pés de araçá e uvaia foram plantados, além de outros frutos nativos e com potencial de valor comercial. O objetivo é incentivar a diversificação da produção e aumentar a biodiversidade. Qualquer monocultivo – mesmo com uma espécie de árvore nativa – não está isento do risco de ataque de insetos ou doenças. A área que regenerou naturalmente no sítio de Nakanishi tem pouca diversidade de espécies. Uma delas é a quaresmeira (Tibouchina granulosa), uma árvore pioneira na Mata Atlântica. A espécie é susceptível a um tipo de broca, que devora a árvore por dentro e pode atacar o cambucizeiro. O inseto já comprometeu 70 árvores no sítio, segundo Nakanishi.

A presença de árvores nativas recompôs serviços ambientais importantes na propriedade rural. Uma nova nascente voltou depois que as árvores voltaram a cobrir o topo do morro.

Paulo e o morro coberto pela floresta: a renegação natural de paisagens florestais degradadas trouxe de volta a Mata Atlântica e, com ela, animais e sistemas ambientais (Foto: Monique Rached).

A Mata Atlântica regenera-se

A Mata Atlântica é reconhecida como um dos ecossistemas com maior diversidade biológica, ou biodiversidade, do planeta. A área ocupada pelo bioma é a mais densamente habitada do Brasil. Nela, vivem quase 80% da população brasileira, ou cerca de 160 milhões de pessoas. Metrópoles brasileiras, como São Paulo, estão localizadas no bioma. Mais de 70% do PIB brasileiro é gerado na região. A Mata Atlântica já chegou a ocupar mais de 1 milhão e 300 mil quilômetros quadrados. O território estendia-se do Rio Grande do Sul ao extremo nordeste brasileiro. Hoje, resta apenas 12% da floresta original.

Após séculos de degradação, as áreas do ecossistema voltaram a se regenerar. A conclusão é da ferramenta de monitoramento florestal Global Forest Watch, que indicou o crescimento da floresta de 4,89 mil quilômetros quadrados entre 2000 e 2014. A recomposição florestal aconteceu em áreas de baixa aptidão agrícola, como encostas e morros. Apenas nos estados de Minas Gerais e Bahia prevaleceu o desmatamento no período.

Em uma pesquisa de doutorado focada na reconstituição gradual e espontânea de parte da floresta na porção paulista do Vale do Paraíba, o biólogo Ramon Felipe Bicudo da Silva, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp, explica que o fenômeno se deve à convergência de fatores sociais, econômicos e ambientais. Silva conclui que o processo de transição florestal tem a ver com o abandono de áreas de topografia incompatível com a agricultura mecanizada, a projetos de conservação envolvendo o cultivo de eucalipto e à migração de pessoas que viviam no campo para grandes centros urbanos.

Além da contribuição científica, a recuperação de florestas na Mata Atlântica passa pela participação conjunta de produtores rurais, pesquisadores de universidades, representantes de organizações não governamentais (ONGs) e de órgãos de governo para conservar a Mata Atlântica. “A restauração se beneficia disso porque é um processo de longo prazo que requer envolvimento contínuo de todas as partes. A partir do envolvimento de instituições, fica mais fácil acelerar os processos de restauração”, destaca a analista de pesquisa da organização sem fins lucrativos WRI Brasil, Mariana Oliveira. Ela desenvolve projetos de restauração e reflorestamento com espécies nativas na porção paulista do Vale do Paraíba.

Depois de fatiado, o cambuci é congelado antes de ser distribuído (Foto: Mauricio Boff).

Fruto valioso para a sde e a gastronomia

 Parente da guariroba, outro fruto nativo da Mata Atlântica, o cambuci é rico em tanino (que é empregado no tratamento de bronquite, tosse e coqueluche), vitaminas A e C, complexo B (ajuda na memória) e ferro. A casca do fruto também tem ação antiinflamatória e cicatrizante. Dele, é possível fazer medicamentos (cosméticos, antitérmicos e produtos de higiene), para os tratamentos da diarreia, cistite e uretrite e para a prevenção da gripe. O cambuci oferece benefícios para outras espécies de animais, sendo fonte de alimento para pacas, antas, cachorros do mato e veados, e também para abelhas noturnas.

Para pequenos produtores rurais locais da Serra do Mar, o cambuci é matéria-prima para alimentação e fonte de geração de renda, como a fabricação de geleias, polpa, tortas, licores e aguardente e o turismo. “A cadeia produtiva pode ser uma ferramenta poderosa para ajudar na conservação de ambientes naturais”, diz o chef brasileiro Alex Atala em episódio para a série de TV Chef’s Table.

Atala entende que a relação do homem com o alimento precisa ser revista – e que um primeiro passo nesse sentido é a noção da origem da comida que se consome. O chef explica, no episódio, como encontra na biodiversidade dos biomas brasileiros e na sociodiversidade das comunidades indígenas e tradicionais os ingredientes para os pratos que prepara no D.O.M., em São Paulo. O restaurante é conhecido pela experiência que proporciona com os sabores da gastronomia brasileira.

“Incentivo o plantio do cambuci. Em reuniões para o pessoal da comunidade, falo sobre a importância de viver bem. Fruta é sinal de vida saudável. Evito enlatado. Evito refrigerante. Quando alguém questiona, digo que não sabe a importância de tomar um suco de cambuci… As frutas fazem bem para o nosso organismo e nos deixam bem nutridos e alimentados”, destaca Nakanishi.

O produtor rural Paulo Nakanishi, que vive 100% do cultivo do cambuci (Foto: Mauricio Boff).

e para a ciência

Além da importância econômica e de conservação, o cambuci tem contribuído com avanços na construção do conhecimento científico. É o caso do estudo sobre abelhas noturnas brasileiras, desenvolvido por pesquisadores do Laboratório de Abelhas da USP. Embora já se conheçam mais de 250 espécies de abelhas noturnas, especialmente em florestas tropicais e desertos, pesquisas com esses animais em ambiente natural são muito difíceis devido à dificuldade de encontrá-los em atividade. Plantios de cambuci favorecem os estudos.

O cambucizeiro tem quatro espécies de abelhas noturnas como polinizadores principais, concentrando a atividade desses insetos em uma área menor e mais fácil de ser monitorada. “No meio da mata, as plantas estão todas dispersas e não sabemos onde estão as abelhas. Como elas visitam o cambuci, é mais fácil de encontrá-las no cambucizal. Só temos visto populações tão grandes assim de abelhas noturnas em sítios com plantio de cambuci”, explica Rodolfo Liporoni, pesquisador e mestrando do Laboratório de Abelhas, que estuda o efeito da intensidade de luz sobre a atividade de abelhas noturnas.

Ptiloglossa latecalcarata (família Colletidae) à esquerda e Megalopta sodalis (família Halictidae) à direita, visitando flores do cambuci (Fotos: Guaraci Cordeiro).

Além dos aspectos ecológicos relacionados a como esses animais exploram os recursos vegetais e quais os fatores que afetam suas atividades, pesquisas com a polinização do cambuci podem ter uma importante aplicação econômica ao fornecer informações para aumento da eficiência da polinização e consequente produção de frutos. Por exemplo, o conhecimento de que uma das espécies polinizadoras faz ninho no solo contribuiu para aprimorar as técnicas de cultivo dos produtores, que pararam de revolver a terra em torno das árvores de cambuci e agora retiram a vegetação invasora manualmente, de forma menos agressiva, como conta Paulo Nakanishi.

Abelhas noturnas similares às polinizadoras do cambuci também têm sido estudadas em termos de suas adaptações visuais para enxergar no escuro, o que tem alto potencial de aplicação tecnológica. Segundo o professor Eric Warrant, em palestra proferida na USP recentemente, seu grupo de pesquisa na Universidade de Lund, Suécia, tem utilizado o sistema visual dessas abelhas como base para o desenvolvimento de algoritmos de processamento de imagem digital, como os de clareamento de imagens escuras.