Ana Mafalda Leite: ‘A literatura não conhece fronteiras nacionais’

Por Cristina P. Uchôa

“Se isso é evidente em relação à maioria das literaturas de qualquer parte do mundo, mais aplicável ainda se torna no caso de África, onde grande parte das fronteiras nacionais de hoje refletem os conflitos e sonhos imperiais europeus dos séculos XIX e XX”

Estar em Maputo em 1975, como uma jovem mulher nascida em Portugal, daria significado a toda a sua trajetória dali por diante. A professora Ana Mafalda Leite iniciou seus estudos universitários em Moçambique, durante o processo de independência de Portugal, e aprofundou-se em literatura africana depois de seu retorno à ex-metrópole, em 1976. Seu mestrado, continuidade dos estudos na Universidade de Lisboa, teve como tema “Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa”. Estudou, especificamente, a obra do poeta moçambicano José Craveirinha, escritor considerado central para a produção literária do país e da África, agraciado com o Prêmio Camões em 1991.

Não foi sem tensões que desenvolveu sua pesquisa e produção literária de um idioma circulado entre colônias. “Penso que uma das dificuldades maiores, enquanto estudiosa das literaturas africanas em Portugal, foi o confronto com o questionamento vindo de outras áreas literárias, canônicas, acerca da qualidade literária, da precariedade institucional, ou do valor acrescentado, pretensamente atribuído, com que a ideologia interferia nestas literaturas” declarou a professora nascida na cidade de Aveiro, em entrevista concedida à revista ComCiência.

Ana Mafalda de Morais Leite tem como parte preferida de seu nome Mafalda – que, faz questão de narrar, foi escolhido em referência a um barco que fazia ligação entre Portugal e as então colônias. Atualmente, é pesquisadora no Centro de Estudos sobre África (Cesa) do Instituto Superior de Economia e Gestão, na Universidade de Lisboa.

A entrevista original completa por ser lida clicando aqui

Como se deu a aproximação da literatura africana como seu campo de estudo?

Parafraseando o escritor Mia Couto, posso dizer que iniciei a minha reflexão ensaística e a minha prática criativa como poeta “num tempo de charneira entre um mundo que nascia e outro que morria. Entre uma pátria que nunca houve e outra que ainda está nascendo” (Pensatempos, 2005). Também enquanto criatura de fronteira entre o mar e a terra, entre o rural e o urbano, entre Europa e África. Nasci em “uma nação chamada infância” precisamente no momento em que Moçambique levantava a sua bandeira. “O Índico ficou margem da minha alma, nesse eu nasci”.

Começa assim a minha atividade de pesquisa com o nascimento de uma nova nação, e posso afirmar com toda a propriedade que nasci com ela em termos criativos e em termos críticos, e de reflexão. Tal fato foi de enorme importância para o meu percurso pedagógico, ensaístico e poético. Assim, quando em 1975, ano da independência, na Universidade Eduardo Mondlane em Moçambique – que eu então frequentava como estudante –, se iniciou a revisão curricular, os estudos críticos das literaturas africanas e seu conhecimento saíam também da sua infância.

Quais foram as tensões enfrentadas em sua trajetória no estudo da literatura africana a partir da relação pregressa de colonização entre Portugal e os países africanos de língua portuguesa?

Não deixa de ser relevante salientar alguma interferência ideológica e política nos primeiros anos de ensino dessas matérias, quando, em Lisboa, concluindo meus estudos, confrontei-me enquanto docente e estudiosa, juntamente com outros colegas, com a necessidade e a urgência em colaborar na criação e legitimação do corpus literário dessas novas literaturas, de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, e de contribuir para a sua institucionalização. Criada pela primeira vez na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, esta área disciplinar foi designada na época “Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa”. Num esforço concertado entre a prática editorial, a prática docente e a investigação universitária vão surgir, assim, entre a década de 1980 e 1990, alguns dos elementos bibliográficos fundamentais para o atual ensino das literaturas africanas em língua portuguesa. Com efeito, após as independências houve um esforço significativo no sentido de dar a conhecer, via edição, essas novas literaturas. Coube-nos a partilha, e a dificuldade, em conjunto com outros colegas, portugueses, moçambicanos, santomenses e brasileiros, e de outras nacionalidades, de fazermos as primeiras dissertações, as pesquisas, de lecionar e de participar em projetos editoriais, desenvolvendo simultaneamente atividade crítica, conscientes de que da seriedade do nosso trabalho resultaria uma parte da seriedade e da dignificação de uma área de estudos literários, a das literaturas africanas de língua portuguesa.

As literaturas africanas de língua portuguesa encenam a criação de novos campos literários, fazendo coexistir na maleabilidade da língua, a escrita com a oralidade, numa harmonia híbrida, mais ou menos imparável, que os textos literários nos deixam fruir.

Penso que uma das dificuldades maiores, enquanto estudiosa das literaturas africanas em Portugal, foi o confronto com o questionamento vindo de outras áreas literárias, canônicas, acerca da qualidade literária, da precariedade institucional, ou do valor acrescentado, pretensamente atribuído, com que a ideologia interferia nessas literaturas.

Pesava na memória portuguesa com alguma violência, particularmente experimentada nos anos em que a guerra colonial antecedeu as independências. Parecia haver quase uma necessidade de esquecimento da carga demasiado pesada que o processo imperial arrastou consigo.

Confrontei-me assim, enquanto investigadora e leitora crítica, com muitas atitudes subjacentes nas formações discursivas em relação à África, como por exemplo a paternal (talvez com resquícios coloniais, se bem que latentes), que encara o outro com distância e tolerância, mas não lhe reconhecendo, de fato, maturidade e autonomia. Ou, a atitude fraterna e solidária, do “somos todos inocentes dessas páginas da história passada, somos até parecidos, partilhamos muitos séculos de trocas culturais, somos lusófonos”. E outras posturas ainda, a de curiosidade e de deslumbramento pela diferença, a de adesão incondicional e, por vezes, quase acrítica.

No campo dos estudos e da instituição literários foram, e ainda são por vezes, visíveis posturas mais ou menos paternalistas, que por vezes escondem sérios preconceitos de visão ainda imperial (e racial), e que condescendiam no reconhecimento minoritário e periférico dessas novas escritas (a área das artes plásticas e cinema também pode ser aqui incluídas), geradas numa relação comparativa com as outras literaturas lusófonas, mais “velhas” e “exemplares”.

A instituição curricular da área das literaturas africanas causou, por vezes, alguma suscetibilidade no enquadramento com disciplinas com outra antiguidade e tradição, obrigando a alguma reflexão, mais séria, sobre a questão do conceito de literatura e de cânone, de valor e de sentido, reflexão justamente desenvolvida progressivamente nos anos seguintes pela teoria pós‑colonial, no cruzamento com o desenvolvimento dos estudos culturais e as consequentes reformulações na área literária e comparatista.

Confrontamo-nos com esse debate sobre de que lugar teórico escrevia a prática crítica e como se julgava o processo de atribuição de mérito ou de estranheza e ou desadequação canónica do corpo literário das literaturas pós-europeias.

A perspectiva criativa das literaturas africanas que cruzam territórios culturais diversos, confirmava a percepção de que os gêneros não podem ser descritos por características essencialistas, mas pela abertura de meios descritivos, pelo recurso às poéticas locais, ainda que incipientes.

Enquanto estudiosos, fomos adquirindo a percepção de que qualquer escritor, em qualquer literatura, pode contribuir para a reformulação de um gênero, mas o escritor que incorpora formas de outras tradições culturais obriga-nos a articular ajustes teóricos e críticos diferenciais nas nossas concepções do conceito de literatura.

Boa parte de sua produção se voltou à forma da poesia. Como essa forma de expressão dialoga com a redação mais dura, dissertativa e rigorosa requerida pela academia, na validação da produção científica?

A ideia de nação e de filiação nacional tem orientado desde o romantismo o estudo da literatura. Com efeito, os estudos literários tradicionalmente têm adotado divisões disciplinares fundamentadas em critérios nacionais, literatura moçambicana, literatura portuguesa, literatura congolesa, literatura italiana.

No limiar do século XXI assistimos à emergência e consolidação de blocos regionais e continentais econômicos, transnacionais, mais ou menos formalizados, que dão um novo sentido às trocas e transferências literárias e culturais. As novas tecnologias, por seu turno, amplificaram as trocas entre os diferentes, países, continentes, amplificando as redes de cultura transnacionais. Os movimentos contínuos de diásporas e deslocações populacionais, exílios, resultantes de guerras, conflitos e outros acontecimentos, levaram também a zonas de indefinição do “nacional” e à partilha de identidades linguísticas e culturais.

Passando para o campo literário, e em especial para o das literaturas, antigamente ditas emergentes, e situando-me no quadro das histórias literárias dos países africanos de língua portuguesa, referindo-me aqui em especial à moçambicana, julgo que essas têm necessariamente de aceitar as partilhas identitárias de alguns dos seus escritores e agentes culturais, resultantes da complexidade dos contextos históricos e épocas de transição, bem como de outras situações de deslocamentos e trânsitos.

É exemplo desta situação a minha partilha emocional com a literatura moçambicana, por ter crescido e estudado em Moçambique, onde me formei enquanto sujeito, embora tendo nascido em Portugal, onde vivo, mas afetiva e literariamente ligada a Moçambique, e me identificar com uma pertença à literatura moçambicana.

Tentando pela escrita problematizar criativamente esta partilha identitária, tenho escrito vários poemas e livros e destaco em especial três: Outras fronteiras fragmentos de narrativas (2017), Livro das encantações (2005) e Passaporte do coração (2001). Muitos dos meus textos questionam e reclamam esta dupla pertença identitária, da qual não me é possível abdicar, por ela fazer parte da minha constituição enquanto sujeito criador, e a minha situação enquanto sujeito histórico, na fronteira de transição entre o período colonial e pós‑colonial.

Assim, na senda de escritores como Doris Lessing, Salman Rushdie (pesem‑se com muita humildade as diferenças…!), o meu território (nação) literário passou a ser predominantemente o da língua, que circula e transita por dois estados‑nação. Os temas de trânsito, viagem, visitação dos lugares da infância moçambicana (e recordo a frase do escritor Saint- Exupéry quando afirma que a sua pátria é a sua infância) percorrem muitos poemas meus.

“Tenho o nome de um barco”, por exemplo, é um poema incluído em Livro das encantações e nasce de uma pergunta que fiz a minha mãe (devo-lhe o poema) sobre a razão do meu nome, Ana Mafalda, que sempre apreciei (pleno da vogal a, do ritmo ondulante do n e do m e a vela do l) ao que ela me respondeu, tens um nome de um barco. Após alguma pesquisa descobri que assim era, um barco que fazia ligação entre Portugal e as então colônias. Achei a escolha espantosamente adequada ao meu percurso pessoal e daí ter escrito aquele poema de cariz autobiográfico e de reflexão de partilhas identitárias e de pertenças:

“ana mafalda um barco do império em travessia entre dois/ oceanos me fez nascer. foi esse o nome que me deram ao/ levar-me transplantada de um hemisfério para o outro./ nasci entre fronteiras líquidas entre ondas inventei um/ berço. foi um nome que me nasceu, foi um barco, um/ deslizar de marés no final da década de cinquenta.”(...)

Com efeito, a minha poesia tem barcos, ilhas, viagens, uma relação intensa com o Índico, e por exemplo no livro Passaporte do Coração, que se centra na Ilha de Moçambique, procuro desvelar uma memória histórica e cultural do norte de Moçambique, que se adequa aos meus trânsitos pessoais e aos trânsitos da história literária do país.

Sou dessa ambivalência ao nascer-me nela, a criação de um lugar de travessia e de tapeçaria cultural. No fundo há sempre uma articulação indireta e simultaneamente intencional entre a minha investigação na área da literatura moçambicana e a área da criação poética.

Estudar a literatura moçambicana, no quadro das literaturas africanas, foi também uma forma de me pensar e articular as minhas origens. Tendo vindo para Portugal finalizar os meus estudos universitários, foram as formas afetivas de conhecimento literário e cultural, de desvendamento do país recém-independente, que encontrei na poesia e no ensaio, para nunca deixar Moçambique, e de nele me encontrar, tatuadamente inscrita, pela escrita do ensaio e da poesia.

Revisitando um artista estudado: o que a obra de José Craveirinha hoje ainda lhe revela sobre Moçambique e sobre a África?

No meu percurso de pesquisa sobre a poesia de Craveirinha, quando fazia o mestrado, estudei com profundidade a questão da representação da oralidade na escrita poética do autor, além da caracterização das suas principais vertentes temáticas. Verifiquei que os escritores moçambicanos, e de uma forma geral africanos, executam nos seus textos formas de incorporar e negociar o legado das culturas orais com o registo da escrita.

Tenho vários artigos sobre este tópico e um livro, publicado no Brasil, na UERJ, Oralidades & escritas nas literaturas africanas (2021) que revela uma pesquisa teórica desenvolvida sobre este projeto de representações da oralidade.

O título do segundo livro de José Craveirinha e do primeiro poema é Karingana ua Karingana, fórmula inicial usada pelo contador de histórias, que significa “era uma vez”. Dissemos fórmula inicial, atribuindo-lhe um sentido de abertura, mas podemos acrescentar, também, iniciática, porque ensina e introduz o leitor no universo do livro, isto é, o sujeito poético não enuncia apenas a frase “era uma vez”, como também implicitamente explica que a sua mensagem se organiza de forma narrativa.

Funcionando como incipit, este poema obedece à modernidade poética ocidental, uma vez que utiliza como tema o próprio assunto da poesia e descreve as linhas com que o poeta organizará a tessitura dos seus poemas. Por outro lado, segue ainda uma outra tradição, visto que retoma uma das formas discursivas da literatura oral moçambicana, porque faz uso de uma fórmula fixa, que abre e fecha o poema, enunciada em língua ronga. Donde se deduz que o que neste livro o que se vai “contar” é fundamentalmente a forma como se conta, modo de representar uma reivindicação que ultrapassa o nível temático de superfície e reclama uma mundividência estética como direito à diferença.

Ora, José Craveirinha ao utilizar como título do livro a fórmula introdutória de um conto, remete-nos de imediato para o domínio da oralidade, realizando uma efetiva teatralização e dramatização das linguagens. A reelaboração e reescrita da literatura oral, entre outros aspectos, é uma das facetas de maior importância na poética de José Craveirinha.

Ainda hoje a poesia de José Craveirinha pode ser considerada como um modelo de versatilidade temática e estilística. O corpus da sua poesia vai representar a denúncia crítica do tempo colonial e pós-colonial, nomeadamente com as últimas publicações em vida do poeta, refiro-me a Maria (1988/98) e Balalaze das Hienas (1997), em que a dimensão elegíaca e trágica vai denunciar as atrocidades da guerra civil no país.

As colocações críticas da poesia de Craveirinha deslocam-se do tempo colonial para o pós-colonial e continuam muito atuais. Saliente-se, por exemplo, as denúncias sobre a exploração mineral do país, bem como da sua mão de obra. A prática de extrativismo no quadro das crises ecológicas globais enquadra as pequenas epopeias dos magaízas, trabalhadores moçambicanos em trânsito para as minas sul-africanas de ouro e de diamantes. Ou ainda o trânsito da prostituição feminina do subúrbio para a cidade, denunciadora da condição de gênero, significando a exploração do sujeito feminino como forma de sobrevivência familiar.

Em sua opinião, quais são os rumos para os quais deveriam caminhar os estudos sobre literatura africana?

Os estudos das literaturas africanas de língua portuguesa deveriam amplificar a sua área de análise crítica e teórica num quadro comparado. A filiação linguística, embora importante, é também limitativa, e não permite a prospecção comparada ou uma intervenção mais teórica, que desenvolva questões afins às literaturas africanas no quadro continental, regional ou global.

O desenvolvimento de uma abordagem comparativa de caráter translinguístico e transnacional, poderá contribuir para repensar o vínculo linguístico estabelecido no quadro da lusofonia, bem como os tradicionais tópicos histórico-críticos de análise das literaturas africanas, necessários num primeiro momento de estudo destas literaturas. Com efeito categorias temáticas como “identidade”, “nação”, “nacionalidade literária”, acabaram por se tornar, ao fim de quase meio século de estudo desta área, um pouco redundantes.

Passado meio século de consolidação da área de literaturas africanas de língua portuguesa, há condições para que os estudos acadêmicos ultrapassem as fronteiras da língua portuguesa e criem diálogos locais, regionais, entre as várias literaturas africanas, bem como com outras formas de produção artística como o cinema, as artes plásticas e outras práticas culturais.

A dimensão comparada no estudo das literaturas africanas pode abrir fronteiras e espaços de diálogo, criando pontes de interlocução investigativa, ultrapassando as separações linguísticas herdadas pelos estudos das literaturas africanas contemporâneos, agregados nos seus espaços de lusofonia, francofonia e anglofonia.

Com efeito uma perspectiva de estudo baseada na ideia de nação pode tornar-se redutora, embora tenha sido esse o modelo vigente da historiografia literária, e que ainda de certo modo perdura.

A literatura não conhece fronteiras nacionais, e repare-se na importância crescente dos conceitos de literatura mundo/mundial, nem nunca se cingiu a elas, porque mesmo quando estabelecidas há séculos, por vezes não deixam de representar contingências históricas. Ora se isso é evidente em relação à maioria das literaturas de qualquer parte do mundo, mais aplicável ainda se torna no caso de África, onde grande parte das fronteiras nacionais de hoje refletem os conflitos e sonhos imperiais europeus dos séculos XIX e XX.

Ou seja, insistir numa especificidade rígida do romance angolano ou de qualquer outra nação seria cingir o romance angolano ou moçambicano, ou de qualquer outra designação nacional, aos parâmetros estabelecidos na época colonial.

Cristina P. Uchôa é mestre em estudo dos meios e da produção mediática (USP) e cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp