Traduzir Wole Soyinka

Por Karen de Andrade

Soyinka é iorubá. É um dos escritores mais importantes de todo o continente africano, produzindo suas obras literárias e de crítica desde antes da independência nigeriana, em 1960. O fato d’ele ser conhecido mundialmente e desconhecido no Brasil é bastante intrigante e diz muito sobre o abismo que nos separa da África, de nossa memória enquanto povo e de que forma encaramos  o nosso passado.

Durante os últimos quatro anos, o texto que mais li foi o livro Myth, Literature and the African World (Mito, Literatura e o Mundo Africano), publicado em 1976 pelo escritor nigeriano Wole Soyinka. É um livro de conferências, que mais tarde foram transformadas em ensaios e o principal trabalho de crítica literária realizado pelo autor, que também é poeta, ator e dramaturgo. Eu o conheci por acaso. Passei anos pesquisando e traduzindo teatro europeu, até me deparar com o livro, e me dar conta de que não conhecia nada sobre teatro africano.

Não era óbvio. Wole Soyinka, ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1986, em grande parte devido a sua vasta produção teatral. Porém, ele não tem sido traduzido no Brasil, exceto por uma de suas primeiras peças, “O Leão e a Jóia”. Sem traduções em português, seus trabalhos ficavam restritos a um pequeno público que conseguia ler em inglês. 

Vale lembrar que o Brasil é o país com a maior população negra fora do continente africano. Dentre ela, uma parte é formada por descendentes dos povos iorubás, que chegaram aqui em sua maioria no século XIX, no contexto da tragédia da escravidão. A presença iorubá na nossa cultura é tão forte, que a Bahia foi declarada como capital iorubá fora da África[1], pelo rei Ooni Adeyeye Enitan Babatunde Ogunwusi, de Ilê-Ifé, cidade mais importante desse povo, localizada no sudoeste da Nigéria.

Soyinka é iorubá. É um dos escritores mais importantes de todo o continente africano, produzindo suas obras literárias e de crítica desde antes da independência nigeriana, em 1960.

O fato d’ele ser conhecido mundialmente e desconhecido no Brasil é bastante intrigante e diz muito sobre o abismo que nos separa da África, de nossa memória enquanto povo e de que forma encaramos  o nosso passado.

Lembro-me bem da primeira leitura: em inglês, cheia de termos complicados sobre teatro grego, mitos iorubás e referências a muitos autores africanos. Parecia que para entrar no texto fosse necessário ser, de alguma forma, iniciada nos rituais que Soyinka estava tentando nos contar. Apesar das dificuldades linguísticas, o que me fez querer continuar foi a irreverência do autor, que perpassa o texto desde o Prefácio.

Soyinka é um erudito, no melhor sentido que esta palavra pode ter. Ele fala sobre muitos assuntos de maneira articulada (afinal, é também professor universitário), compra brigas com intelectuais, políticos e outros críticos, sem deixar de lado o humor e as tiradas sarcásticas. Ao final da leitura eu me perguntava: “Como pode um texto dessa importância ainda não ter sido traduzido para o português?”. Mesmo hoje, depois do trabalho feito, continuo me surpreendendo com a lacuna que o pensamento contido naquelas páginas deixou na própria formação epistemológica do povo negro brasileiro.

Interessado no resultado do encontro entre o teatro Ocidental e as tradições cênicas africanas, Soyinka escreveu Myth, Literature and African World, propondo uma nova teoria para o teatro, onde o orixá Ogum viesse a ser o modelo para o ator trágico, para que seu povo pudesse pensar sobre as artes cênicas (e artes africanas em geral) a partir de seus próprios deuses, rituais, mitos e línguas.

Segundo o mito, Ogum, deus da metalurgia e do ferro, foi o primeiro a transpor o abismo de transição, abrindo caminho para o reencontro das três dimensões que compõem a cosmopercepção de seu povo: o mundo dos antepassados, o dos vivos e o dos ainda não-nascidos. Ao cruzar o abismo, Ogum se desintegrou em mil pedaços e depois se reintegrou. Para Soyinka, a passagem de Ogum é a metáfora da África após as independências.  Assim, a arte acabaria possuindo uma função importante na formação de um povo, na construção de sua identidade política e na regeneração cultural, sendo um dos caminhos para uma realidade africana própria e singular, onde cada povo estabelece a sua cultura como centro.

Comecei a traduzir o Myth, Literature and the African World no início de 2020, como parte do meu projeto de doutorado. Mesmo sendo uma leitora de Kafka, eu não poderia imaginar o que nos aguardava naquele ano: uma pandemia mundial de covid-19, quarentena e isolamento. As universidades continuaram funcionando parcialmente de maneira remota, portanto, impossibilitada de frequentá-las fisicamente, segui meus estudos de casa.

Nessa mesma época, enquanto traduzia, dei preferência para a leitura de textos de autoras negras, e alguns dos livros que mais me marcaram foram “Memórias da Plantação”, de Grada Kilomba; “A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura” de Toni Morrison; e “O Caminho de Casa”, de Yaa Gyasi. Nesses textos, de mulheres negras e intelectuais, encontrei possibilidades teóricas que me acompanhariam durante toda a jornada da tradução.

No primeiro ano da pandemia foi quando também li “Torto Arado”, e essa leitura teve um grande impacto em meu trabalho, pois foi quando percebi que as ideias de Soyinka, aquelas sobre usarmos nossas próprias histórias, mitologias e línguas para nos reconstruirmos enquanto povo, estavam sendo colocadas em prática, pois o autor do romance parte de um material local, genuinamente brasileiro, e escreve de forma que faça sentido para a comunidade que recebe e se sente representada pelo texto. Dito isto, esse período foi crucial para poder organizar as ideias e também conhecer outras formas de se pensar sobre literaturas africanas.

Com o tempo suspenso e com as ferramentas adequadas, assim como Ogum no mito descrito por Soyinka, pude mergulhar no abismo da leitura do texto. Perdi a conta de quantas vezes li e reli os capítulos, linha-a-linha. Este é o tipo de material que, quanto mais você se aproxima, mais detalhes consegue perceber e a leitura se transforma a cada vez.

Traduzir Myth, Literature and the African World  foi um processo longo, detalhado, de muita pesquisa e que exigiu que eu entrasse em um ritmo que é próprio do texto. Soyinka escreve em inglês, porém seu pensamento é em iorubá, sua forma de ver o mundo surge das forjas de Ogum. Portanto, quem se aproxima de sua obra, precisa também se aproximar de sua cultura, suas múltiplas referências aos mitos e aos rituais iorubanos.

Ao mesmo tempo, é preciso dominar algumas referências ao teatro grego, à teologia cristã e à filosofia alemã, áreas com as quais o autor dialoga frequentemente. Contudo, não devemos considerar isso uma contradição com seu paradigma iorubá. Ao contrário de outros escritores africanos de sua geração, Soyinka não rejeita ou ignora a influência europeia em sua cultura e formação, uma vez que a Nigéria esteve sob domínio inglês durante um tempo considerável. Soyinka rejeita o eurocentrismo. De acordo com ele, o “Mundo Africano” contido no título de seu livro não pode ser visto como isolado. Pois antes do colonialismo, o continente africano já mantinha conexões com outras culturas; depois dele, ficaram marcas profundas em todo o seu território e na afrodiáspora.

Outra parte que considero importante é o uso criativo que ele faz da palavra. Soyinka utiliza provérbios das mais diversas fontes (iorubás, bíblicos etc.) e cria diversos neologismos, que dificultam (e muito!) a tarefa tradutória. Seu vocabulário é extenso, as palavras têm a sonoridade poética de um texto feito para ser lido em voz alta. Não é à toa que Soyinka é apelidado carinhosamente em seu país como W.S, o William Shakespeare nigeriano. Outra fonte de preocupações foi manter a já citada ironia e o humor do escritor, presentes no livro todo. Mesmo quando denuncia o eurocentrismo e o racismo dentro das instituições acadêmicas, ele não deixa de trazer alguns elementos cômicos ao texto,  que desarmam o leitor para aceitar melhor seus argumentos.

Além do trabalho de crítica e pesquisa que envolve uma tradução, considero que um dos grandes desafios foi pensar que este é um trabalho também de reescrita, pois ele implica lidarmos com ruas sem saídas, com impossibilidades e mesmo com a criação, uma vez que, muitas palavras, conceitos e ideias não existem na língua de chegada, e é preciso um esforço criativo para contornar esses percalços. Tudo isso me levou à seguinte pergunta: como traduzir este texto, que é uma espécie de manifesto anticolonial, de maneira não colonizadora? Para tentar responder minimamente, gostaria de levantar algumas ideias que surgiram com as leituras e o próprio fazer tradutório.

Em primeiro lugar, concebo a tradução como um modo de refletir sobre culturas. Refletir não como espelhamento, mas no sentido de meditar, realizar escolhas e considerar o contexto, pois os lugares de onde eu falo deixam marcas no pensamento. A língua literária é simbolicamente a de quem detém o poder. Por isso é importante que eu pense minuciosamente em como vou usá-la. Não traduzimos apenas palavras, mas também ideias, conceitos e maneiras de ser no mundo.

Logo, a tradução deveria buscar modos de traduzir que não sejam opressores. Por isso a importância da subjetividade e do lugar de fala[2] dentro da tradução. Traduzir um texto africano, nesse lado do Atlântico, é abordar questões importantes para pessoas negras, além de ajudar a fortalecer nossos estudos literários. Considero isso uma grande responsabilidade.

O escritor argentino Júlio Cortázar disse uma vez que “escrever é desenhar minha mandala e ao mesmo tempo percorrê-la”[3]. Parafraseando-o, eu acredito que traduzir é algo semelhante, uma vez que é também uma reescrita. É um processo no qual você não apenas delineia caminhos e possibilidades para os leitores, mas também percorre sua própria gramática cultural[4], suas experiências e faz um sem-número de escolhas, que te levarão de volta ao ponto de partida: o texto escrito, a sua mandala.

Tenho a plena consciência de que ser uma mulher negra, intelectual e tradutora é um grande ato político no país em que vivemos. Por isso eu quero que esta tradução seja, ao mesmo tempo, uma experiência subjetiva (que carregue muito de minhas experiências pessoais e intelectuais) e comunitária (que faça sentido para o meu povo). Que leve em consideração os conceitos de outras mulheres negras, que permeiam minhas pesquisas, como o pretuguês e a amefricanidade de Lélia González, a escrevivência de Conceição Evaristo e a espiralidade do tempo e a oralitura de Leda Maria Martins.

Ao compartilhar meu percurso de tradução, gostaria de que cada pessoa que dela se aproximasse, que percorresse o caminho da busca por nosso passado, valorizando a memória e nossos saberes ancestrais. Assim, como povo, teremos menos chances de ser enganados por visões de mundo onde não cabemos. Isto posto, não podemos esquecer que ainda temos um longo caminho a percorrer em vida, e um (afro)futuro a ser realizado.

Karen de Andrade é doutoranda em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp com o projeto “Tradução comentada de Myth, Literature and the African World de Wole Soyinka” (CNPq). Atua nos campos das Literaturas Africanas e Estudos de Tradução (Translation Studies), com ênfase na Teoria Pós-colonial, pesquisando como se dá a relação entre formas dramáticas africanas e afrodiaspóricas com a mitologia ritual Yorubá. Tem experiência em Tradução Teatral. Outras áreas de interesse são: Literatura Comparada, Teoria Literária, Literatura Nigeriana e Tradições Cênicas Orientais. https://www2.iel.unicamp.br/kaliban/pesquisadores/

Referências bibliográficas

CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Madrid: Alfaguara, 1996.

EVARISTO, Conceição. “Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face”. Seminário Nacional X Mulher e Literatura – I Seminário Internacional Mulher e Literatura/ UFPB – 2003.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82.

________________. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.

GYASI, Yaa. O Caminho de Casa. Tradução Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2017.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

MARTINS, Leda Maria. “Performances da Oralitura: Corpo, Lugar da Memória”. In: Letras, (26), 2003, 63–81. https://doi.org/10.5902/2176148511881

____________________. Performances do Tempo Espiralar: Poéticas do Corpo-Tela. Rio de

Janeiro: Cobogó, 2021.

MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

SOUZA, Marina de Mello. Reis negros no Brasil escravista: História da festa de coroação de Rei Congo. Belo horizonte: Editora UFMG (Humanitas), 2014.

SOYINKA, Wole. Myth, Literature and the African World. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado, São Paulo: Todavia, 2020.

Site

http://www.sepromi.ba.gov.br/2018/06/1958/Bahia-e-declarada-como-Capital-Iorubana-das-Americas.html

[1] Ver mais em: http://www.sepromi.ba.gov.br/2018/06/1958/Bahia-e-declarada-como-Capital-Iorubana-das-Americas.html

 

[2] Sobre este tema, vale olhar o livro de Djamila Ribeiro, que aborda as origens e usos do conceito:
RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

[3] No original: “Escribir es dibujar mi mandala y a la vez recorrerlo”, em: CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Madrid: Alfaguara, 1996, p. 432.

[4] Sobre “gramática cultural”, ver mais em: SOUZA, Marina de Mello. Reis negros no Brasil escravista: História da festa de coroação de Rei Congo. Belo horizonte: Editora UFMG (Humanitas), 2014. Neste texto, a autora parte do choque entre culturas africanas e do colonizador no Brasil, geralmente interpretados como sincretismo, aculturação, transculturação, entre outros. No entanto, tais conceitos seriam insuficientes para compreender tais processos, uma vez que a cultura é vista como linguagem, podendo ser, portanto, traduzida, recriada e transcrita.