Análises toxicológicas em modelos in vitro e in vivo

Imagine a clássica cena de uma série policial: durante uma festa, alguém desmaia repentinamente, sem motivo aparente. O clima de suspense se instala, a perícia entra em ação e, após minuciosas análises, surge a suspeita de uma substância misteriosa — algo totalmente novo. É aqui que, fora das telas, entra em cena uma protagonista real e silenciosa: a ciência toxicológica. Enquanto o roteiro da ficção termina com a revelação do culpado, na vida real a história continua nos laboratórios. O desafio é complexo: descobrir não apenas o que foi consumido, mas como aquela substância age no organismo, quais os seus impactos e como o corpo reage à sua presença.

Por Alexandre Barcia de Godoi e Tássia Flávia Dias Castro

Na vida real, essa investigação começa  longe dos holofotes, nos laboratórios de pesquisa, guiada por uma pergunta essencial: como uma substância química se comporta dentro de um organismo vivo e quais efeitos ela provoca? Para respondê-las, cientistas lançam mão de modelos de estudo altamente eficientes: os modelos in vitro e in vivo

Os modelos in vitro envolvem experimentos realizados fora de organismos vivos – em superfícies contendo células ou tecidos específicos, ou em tubos de ensaio contendo frações celulares e enzimas. O nome, do latim in vitro (“dentro do vidro”), reflete essa simulação controlada de processos biológicos, essencial para entender reações em nível celular e molecular.

Já os modelos in vivo utilizam organismos vivos em experimentos que observam os efeitos de uma substância de forma integrada — tanto do ponto de vista comportamental quanto fisiológico e molecular. Na toxicologia, isso geralmente significa expor espécies específicas à substância de interesse e monitorar suas reações. Por envolver sistemas biológicos completos, esses modelos tendem a fornecer dados mais próximos da realidade humana.

Entre os protagonistas desses estudos estão os roedores, como ratos e camundongos, há décadas utilizados como modelos-padrão. Mas, recentemente, um novo personagem tem ganhado destaque: o zebrafish, um pequeno peixe que vem conquistando espaço na pesquisa científica graças à sua genética semelhante à humana, ao seu desenvolvimento rápido e à transparência do corpo, que permite observar processos biológicos em tempo real.

Do tubo de ensaio aos biotérios

A toxicologia experimental moderna se assemelha a uma investigação forense de alta precisão. Para compreender como uma droga de abuso, por exemplo, é transformada e processada pelo corpo — um processo chamado biotransformação — os pesquisadores frequentemente começam empregando métodos in vitro, misturando, por exemplo, a droga de interesse à enzimas presentes no fígado de diferentes animais (inclusive de humanos). 

Enzimas são proteínas presentes no nosso corpo com a função de facilitar reações químicas, e no caso das enzimas da família do citocromo P450, possuem uma função extremamente importante de ajudar o organismo a processar e eliminar substâncias advindas do meio externo. Esses testes in vitro podem utilizar diversas fontes para essas enzimas, tais como as próprias células isoladas do fígado, frações dessas células (microssomas hepáticos e fração s9), ou as próprias enzimas totalmente isoladas e purificadas. Nos últimos dois anos, o Laboratório de Toxicologia Analítica da UNICAMP (LTA-UNICAMP) publicou quatro estudos sobre o metabolismo de drogas de abuso (como N-etil pentedrona e eutilona) e potenciais fármacos (como violaceína e dapaconazol), descrevendo aspectos biológicos cruciais para o entendimento dos impactos dessas substâncias nos organismos. Esses experimentos in vitro são consideravelmente rápidos, fáceis, precisos, muito informativos, mas possuem a limitação importante: não refletirem, por completo, a complexidade de um organismo vivo como um todo.

É justamente aí que entram os estudos in vivo. 

Zebrafish: um aliado da ciência

Entre os modelos in vivo mais promissores para estudos de biotransformação está o zebrafish (Danio rerio), um pequeno peixe de água doce que tem conquistado espaços nos laboratórios de pesquisa. Com grande similaridade genética aos humanos, alto índice reprodutivo, fácil manejo e baixo custo de manutenção, o zebrafish tornou-se uma ferramenta poderosa para a toxicologia moderna.

No LTA-Unicamp, o zebrafish tem sido amplamente utilizado para estudar os mecanismos de biotransformação de novas substâncias psicoativas — incluindo catinonas sintéticas, canabinoides sintéticos e derivados da cetamina. Ao expor esses peixes a ambientes contendo essas substâncias, os pesquisadores conseguem observar a formação de metabólitos tanto na água do aquário quanto no cérebro dos animais. Isso permite inferir, por exemplo, se determinada droga é capaz de atravessar a barreira hematoencefálica e como ela se comporta no tecido cerebral.

Além disso, os estudos com zebrafish permitem investigar os efeitos comportamentais e a toxicidade comparativa dessas substâncias. Um exemplo disso é um estudo publicado em 2025 na revista Toxicology Reports, que avaliou o impacto de três drogas sintéticas em diferentes estágios do desenvolvimento embrionário do peixe.

Toxicometabolômica: mapeando as pegadas moleculares da toxicidade

Mas a toxicologia moderna vai além da biotransformação. Desde 2023, o grupo da Unicamp tem utilizado uma abordagem inovadora chamada toxicometabolômica, com o objetivo de compreender a “bagunça molecular” que ocorre no organismo após a exposição a substâncias tóxicas.

Mas o que exatamente é toxicometabolômica?

Vamos decifrar a palavra de trás para frente. As “ômicas” representam um conjunto de técnicas e estratégias voltadas para estudo de moléculas presentes no nosso organismo – como genes, proteínas ou lipídeos.  O termo central, “metabo”, indica que o foco está nos metabólitos: pequenas moléculas como açúcares, aminoácidos e vitaminas. E, finalmente, o prefixo “toxico” remete à exposição a agentes químicos nocivos.

Assim, a toxicometabolômica busca identificar alterações nos metabólitos desencadeadas por substâncias tóxicas. É como se o composto deixasse um rastro de pegadas bioquímicas que revela onde e como ele atuou no organismo.

Um estudo realizado pelo grupo (submetido para publicação em revista científica) investigou as alterações toxicometabolômicas nos cérebros de zebrafish expostos à catinona sintética N-etil pentedrona. Os resultados mostraram modificações associadas à produção de energia pelas células, aumento de processos inflamatórios e excitação excessiva no tecido neuronal — indícios que ajudam a elucidar os efeitos neurotóxicos dessa substância, além de fornecer marcadores biológicos de exposição que podem futuramente ser usados no diagnóstico clínico e potencialmente projetar novos antídotos.

A toxicologia ambiental: uma lente sobre os oceanos

O uso de modelos in vivo também se estende à toxicologia ambiental, área que investiga os efeitos de contaminantes no meio ambiente. Substâncias como microplásticos, medicamentos, metais pesados e os chamados PFAS (substâncias per e -polifluoroalquílicas) são alvos comuns de estudo por serem persistentes e se acumularem nos organismos. Esses estudos ajudam a entender não só os impactos sobre a saúde dos animais, mas também sobre os ecossistemas e, indiretamente, sobre os seres humanos.

Em parceria com o Laboratório de Ecotoxicologia e Ecotoxicidade (Laeg-Unicamp), o LTA-Unicamp tem utilizado  em seus estudos, um organismo que vem ganhando holofote na toxicologia ambiental: o Parhyale hawaiensis. Este pequeno crustáceo que se reproduz rapidamente, vive em diversas regiões do mundo, incluindo o litoral brasileiro, tem um papel ecológico importante por estar na base da cadeia alimentar marinha. Ele é usado em testes que avaliam sua taxa de sobrevivência após exposição a contaminantes, além de permitir a medição de quanto dessas substâncias ele consegue absorver com o passar do tempo – o que faz dele um excelente bioindicador para entender como poluentes afetam os ambientes costeiros.

Modelos animais no estudo da epilepsia

Além do interesse no estudo da toxicidade de substâncias químicas e seus impactos ambientais, o grupo também tem se aventurado pela avalição do potencial terapêutico de substâncias presentes na Cannabis sativa frente a doenças neurológicas. Dentre as principais doenças que afetam o sistema nervoso central, as epilepsias são caracterizadas por uma persistente e prolongada hiperatividade de grupos de neurônios. Apesar de ser uma doenças mais antigas da qual se tem registro, tratamentos para as epilepsias ainda são muito limitados no que tange ao controle da evolução. Diversas alternativas terapêuticas têm surgido nos últimos anos, com destaque para as moléculas presentes em uma planta repleta de estigma e preconceito: a Cannabis sativa.

Para essa finalidade, pesquisadores do LTA-Unicamp têm investigado os efeitos de canabinoides presentes na Cannabis sativa, como canabidiol (CBD) e canabigerol (CBG), em modelos animais de epilepsia com camundongos. Os estudos visam à entender não apenas a redução das crises convulsivas, mas também na elucidação dos mecanismos associados a este efeito protetor, e no modo como esses canabinoides atuam, tanto separados, quanto em conjunto. Além disso, os pesquisadores também buscam entender como estes canabinoides presentes na maconha se distribuem e se concentram no cérebro de camundongos.

Entre a bancada e a sociedade

Mais do que um centro acadêmico, o LTA-UNICAMP, em conjunto com o CIATox-Campinas (Centro de Informação e Assistência Toxicológica), atua como um importante polo de pesquisa aplicada e vigilância toxicológica no Brasil. O grupo identifica e monitora casos de intoxicação por drogas de abuso, medicamentos, pesticidas, metais pesados e outras substâncias emergentes. Complementarmente, hoje, o laboratório também investiga a biologia das intoxicações, buscando propor novos métodos de diagnóstico e tratamento, estuda o impacto ambiental de substâncias emergentes como os PFAS, e busca propor novas terapias para doenças neurológicas graves como as epilepsias.

Esses estudos não são apenas exercícios acadêmicos, mas também ajudam na formulação de políticas públicas de saúde e ambientais, na criação de métodos analíticos para laboratórios forenses, no atendimento de emergências médicas, e na proposição de novas terapias para doenças neurológicas. Como em qualquer boa investigação, cada peça importa — do interior de tubos de ensaio até organismos vivos complexos, o quebra-cabeça da toxicologia é montado diariamente, podendo nos contar grandes verdades sobre nossa interação cotidiana com as substâncias químicas que nos rodeiam.

Alexandre Barcia de Godoi é doutorando em farmacologia pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, na área de toxinologia e toxicologia

Tássia Flávia Dias Castro é doutora em ciências pela Universidade Federal de Lavras e aluna de pós-doutorado do Laboratório de Toxicologia Analítica da Unicamp