As crises de energia no Brasil e os caminhos da transição para uma economia de baixo carbono

Por Cristiane Bergamini

Não é de hoje que o Brasil enfrenta problemas nas mais variadas áreas do setor elétrico. Falta de abastecimento, aumento nos preços das tarifas, aumento no uso de combustíveis fósseis em detrimento das fontes renováveis – elevando as emissões dos gases de efeito estufa e, consequentemente, contribuindo com o aquecimento global. Enquanto o mundo se preocupa com a crise climática, o Brasil vai na contramão. De protagonista nas decisões e reuniões mundiais sobre o clima, desempenha, hoje, um papel que não tem do que se orgulhar.

Por que um país com tanta diversidade de fontes limpas para geração de energia, como o sol e o vento, sofre com tantas crises? O que fez com que mudasse o seu papel na história climática e o que é preciso para que retome esse protagonismo?

A energia elétrica chegou ao Brasil em 1879 quando D. Pedro II concedeu a instalação de equipamentos a Thomas Edison, inventor da lâmpada. Apenas quatro anos depois é inaugurado o primeiro serviço de iluminação pública do Brasil (e da América do Sul) e, em 1883, a primeira central termelétrica, em Campos dos Goytacazes (RJ). Logo chegaram as empresas e recursos internacionais, que permitiram a construção dos primeiros empreendimentos, como a Light, em 1899. Com a expansão desse mercado, em 1934 foi promulgado o primeiro marco regulatório, o “Código das Águas, vigente até hoje, e em 1962 foi criada a Eletrobras.

O crescimento continuou e na década de 1970 o Brasil já estava com sua matriz energética delineada, baseada em hidrelétricas, mas muito dependente do petróleo externo. Com a crise mundial do petróleo naquela década, houve a criação de um programa de incentivo à produção do álcool combustível, o Proálcool, resolvendo o problema da gasolina, mas não do diesel – solução que chegaria somente em 2005 com a entrada do biodiesel.

A capacidade de geração de energia elétrica não acompanhou o ritmo da demanda crescente no país. Somado a isso, o setor elétrico foi fortemente afetado por algumas políticas adotadas, que agravaram ainda mais a crise. De 1993 a 2002 diversas ações foram realizadas para a recuperação do setor, como a criação da Agência Reguladora, a Aneel. Porém, não foram suficientes e, em 2001, o Brasil enfrentou a crise do apagão, marcada pela escassez de chuva e agravada pela falta de planejamento e de ações governamentais efetivas. Era preciso diversificar as fontes de energia e algumas ações foram realizadas nesse sentido, como a criação do Probiodiesel.

Com a descoberta do pré-sal, em 2007, o Brasil mudou a rota e se voltou para o investimento em combustíveis fósseis. Algumas hidrelétricas foram criadas, como a de Belo Monte, no Pará, que levou mais tempo e recursos do que o programado, e outros investimentos foram para as térmicas. Nesse tempo, as fontes renováveis eólica e solar ganharam espaço, em especial a eólica, que ficou mais barata do que as térmicas a gás – e que passaram a ser usadas com backup, ou seja, em situações de falta de energia.

Uma nova crise, porém, chegou em 2021, trazida pela escassez de chuvas aliada à falta de planejamento e reações do governo, tudo agravado pela pandemia de covid 19. De acordo com dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a falta de chuvas provocou uma redução do nível dos reservatórios das principais hidrelétricas do país e a consequente redução da oferta de eletricidade. Com isso, outras fontes ganharam destaque, com crescimento em relação ao ano anterior, como carvão vapor (+47%), gás natural (+46%), eólica (+26%) e solar fotovoltaica (+55%).

A crise climática das últimas décadas fez com que o mundo mudasse as matrizes energéticas, buscando cada vez mais as opções renováveis. Já o Brasil aumentou a participação das fósseis. Ainda assim, a matriz elétrica brasileira é composta, em sua maior parte (83%), por fontes renováveis, enquanto a média mundial é de 27%.

De acordo com Ennio Peres da Silva, coordenador do Laboratório de Hidrogênio da Unicamp, é preciso fazer uma transição energética dos fósseis para as renováveis. Essa transição significa diminuir a emissão dos gases de efeito estufa, como sinalizado no Acordo de Paris. A meta é, até 2050, zerar as emissões.

“Nosso maior problema está na queimada da Amazônia. Para diminuir as nossas emissões o carro elétrico, por exemplo, é uma ajuda, mas o que temos que fazer urgentemente é parar as queimadas. Esse é um problema que, aparentemente, tem uma solução mais fácil como legislação, contratação de policiais, fiscais de florestas, valorizar os sistemas de alerta como os feitos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Infelizmente, na atual gestão, esses alarmes têm sido desprezados. Fazendo isso diminuímos consideravelmente nossas emissões”, explica o professor.

Um estudo publicado pelo jornal The Lancet Planetary Health mostra que as mudanças climáticas foram responsáveis por 9,43% das mortes no mundo entre 2000 e 2019. Já o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), divulgado em fevereiro deste ano, aponta que cerca de 40 milhões de pessoas podem morrer até o fim do século, em 2100, em função das altas temperaturas causadas pelo aquecimento global.

“Os cálculos indicam que, com o aumento da temperatura da biosfera, não fecharemos o século sem uma tragédia. Teremos milhões de mortes por questões climáticas, como já estamos tendo, por fortes ondas de calor ou pelo frio exacerbado. São os extremos climáticos, e já estamos vendo isso. Temos que reduzir significativamente o uso dos fósseis e aumentar expressivamente as renováveis, diminuindo, assim, as emissões. Reduzir, porém, não significa que a atmosfera ficará limpa, apenas estamos deixando de aumentar as emissões”, esclarece Silva.

Crises históricas e novos esforços

As crises de energia no Brasil mostraram um grande descompasso entre o crescimento da demanda e a capacidade instalada. Entre 1990 e 2000, o consumo cresceu 49% e a capacidade foi expandida em apenas 35%.

Com imenso potencial de geração, as seguidas crises levantam o questionamento sobre os erros de tomada de decisão em relação a esse setor. “Todas as crises de energia que enfrentamos até hoje se devem à falta de planejamento. Temos muitos recursos, eólica, solar, hidráulica e até combustíveis fósseis, mas sempre enfrentamos crises de energia e altas nas tarifas pela falta de planejamento”, diz Silva.

Para Gilberto Jannuzzi, do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Unicamp, o Brasil, com sua megabiodiversidade, tem potencial para assumir papel de liderança global em energia eólica e solar, hidrogênio e biocombustíveis. “Temos condição, inclusive, de ser um grande exportador, e o grande desafio é mudar infraestrutura, modelos de negócios. Nossa potencial vantagem é ter recursos naturais não fósseis”.

Esse processo, no entanto, exige uma série de ações e esforços entre a União, os setores público, privados e universidades, pois requer grandes transformações no sistema social, nas questões territoriais e de uso do solo, energia, infraestrutura e política industrial.

De acordo com o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Thiago Barral, a transição para uma economia de baixo carbono está no centro do planejamento energético no mundo e, apesar dos enormes desafios, as oportunidades são excepcionais, ainda mais para o Brasil, um país rico, diverso e com grande capacidade de inovação. “Monumentais são os esforços de inovação que precisam ocorrer nessa década de 2020 para que se possa viabilizar novas tecnologias para a descarbonização da economia. Quero destacar a crescente preocupação que temos com a resiliência das novas cadeias de suprimentos de tecnologia de energias limpas. Muito esforço e coordenação são necessários para alavancar a inovação do setor energético”, analisa.

Em artigo publicado pelo Jornal da Unicamp Jannuzzi destaca que é imperativo, nesse momento, escolher os caminhos da transição energética tendo em conta o componente humano: uma transição socialmente inclusiva. ”Não é um problema tecnológico e sim uma re-orientação de planejamento buscando maior sustentabilidade econômica, social e ambiental tanto na oferta como na demanda de energia”. 

Metas e acordos

Para manter o aumento de temperatura no máximo em 1,5 a 2ºC ao longo do século, países signatários do Acordo de Paris realizam diversas reuniões para debate e estabelecimento de metas, como a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP26, que aconteceu em 2021, em Glasgow (Escócia). Houve algumas resoluções como a esperada regulamentação de mecanismos de mercado de carbono, desmatamento zero e redução de 30% nas emissões de metano, entre outras medidas. Em novembro de 2022, a próxima edição, no Egito, vai avaliar as metas estabelecidas e traçar novos caminhos.

De acordo com Paulo Artaxo, professor da USP e coordenador do Programa Mudanças Climáticas da Fapesp, a conferência não atendeu as expectativas no que se refere ao aumento das ambições de redução de emissões e na ajuda dos países desenvolvidos aos em desenvolvimento para a redução das suas emissões. “Espera-se que a COP 27, por ser realizada no Egito, faça com que esse aspecto da ajuda aos países em desenvolvimento, uma questão que há mais de 10 anos está em aberto em todas as reuniões da COP, seja finalmente resolvida”, ressalta.

De acordo com Artaxo, pelo fato de o ano de 2022 ter apresentado maior número de eventos climáticos extremos, particularmente na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia, “deve aumentar a ambição de redução de emissões, o que é absolutamente necessário, e que isso possa alavancar a transição energética para implementar ações contra as mudanças climáticas”.

Somente a ação conjunta e colaborativa terá o poder de mudar o clima da história, ressalta Rodolfo Gomes, diretor executivo da organização International Energy Initiative (IEI-Brasil). “É fundamental que a sociedade não apenas entenda que é possível fazer melhor uso dos recursos disponíveis, como também possa se beneficiar diretamente e indiretamente, como ter contas ou tarifas menores de energia, depender menos de importação de combustíveis, ter menos poluição nas cidades”.

Cristiane Bergamini é formada em comunicação social (PUC Campinas), com mestrado e doutorado em planejamento de sistemas energéticos (Unicamp). Foi aluna do curso de especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp). cristianepbergamini@gmail.com