Bumba meu boi de Pindaré: patrimônio vivo e a luta pela preservação cultural no Maranhão

Diferentemente da imagem que a elite e a imprensa daquela época reproduziu, ao analisar as fontes disponíveis referentes às festividades populares, constata-se que os cordões de bumba meu boi eram constituídos, em grande parte, pelos trabalhadores da cidade. Operários, estivadores, carregadores, catraieiros e pescadores viam nesses grupos a possibilidade de se organizar no associativismo e compartilharem experiências e opções de lazer.

Por Carolina Martins e Fabiana Batista 

São João mandou
Que é pra mim fazer
É de minha obrigação
Eu amostrar meu saber
(Urrou do Boi – Bumba meu boi de Pindaré)

O bumba meu boi é uma das maiores celebrações festivas que existe no estado do Maranhão. Representado por cerca de 400 grupos espalhados pelo território maranhense, desde 2011, o “boi” é considerado Patrimônio Imaterial Brasileiro, pelo Iphan e, há seis anos, Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. Ambos os títulos mostram a representatividade e a importância desta manifestação para a cultura e a identidade brasileira. Neste artigo, pretendemos fazer breves considerações sobre a história dos bois no Maranhão e a relação dos cordões com o mundo do trabalho a partir da trajetória de um grupo específico, o Boi de Pindaré. Também discutiremos suas estratégias e negociações realizadas atualmente pelos integrantes para garantir a sua continuidade.

Por meio de documentos policiais e notícias da imprensa maranhense, têm-se registros dos bumbas desde, pelo menos, as primeiras décadas do século XIX. Em São Luís, por exemplo, observa-se nestas documentações a tentativa de controlar, por parte das elites, a presença dos cordões no perímetro urbano, com leis e decretos que tornava obrigatória a expedição de uma licença policial para autorizar a realização dos bumbas na parte urbana e nas zonas rurais. Por parte da imprensa, as notícias construíram uma imagem negativa dos cordões. Os integrantes eram representados constantemente como selvagens e bárbaros. À polícia, essas notícias exigiam a imposição de medidas enérgicas para proibir a presença dos bois nas ruas, sob a justificativa dos constantes “barulhos” e “vozerias”. Os jornais relacionavam as pessoas que faziam parte dos cordões à vadiagem e a existência das brincadeiras populares como um suposto empecilho à civilização, relacionando-as a uma imagem pejorativa e preconceituosa da África, como observa-se na publicação do jornal A Cruzada, em 1891:

[…] Não consegui dormir o mais leve sono, não só porque me sentia com disposição à insônia, como por causa de uma berraria infernal que percorria as ruas próximas à residência minha, chegando a passar em frente à casa. Foram motivo desta algazarra os tais brinquedos de caipora e Bumba meu boi, que com suas danças selvagens, andaram percorrendo as ruas mais populosas. […] Por uma concessão singular do chefe de polícia permitiu-se esse ano que semelhantes folguedos se realizassem a portas à dentro da cidade, o que foi um verdadeiro desuso da autoridade que apareceu esquecer o que dela exige a civilização. […] Se alguém visse esta cidade nas noites destes últimos dias, faria uma ideia tristíssima da nossa civilização, julgar-nos ia um povo bárbaro a folgar com danças próprias das solidões selvagens da África. […] (Jornal A Cruzada. 30/06/1891)

Diferentemente da imagem que a elite e a imprensa daquela época reproduziu, ao analisar as fontes disponíveis referentes às festividades populares, constata-se que os cordões de bumba meu boi eram constituídos, em grande parte, pelos trabalhadores da cidade. Operários, estivadores, carregadores, catraieiros e pescadores viam nesses grupos a possibilidade de se organizar no associativismo e compartilharem experiências e opções de lazer.

Mesmo considerando as transformações pelas quais o bumba meu boi passou ao longo do tempo, é possível afirmar que esta configuração dos cordões como espaços de sociabilidade e possibilidade de construção de laços associativos atravessou o século XIX, permanecendo assim até os dias atuais. O exemplo que trazemos neste artigo é o Boi de Pindaré. Criado em 1960, está localizado no bairro de Fátima, periferia de São Luís.

Boi de Pindaré – boi de estivadores

Em São Luís, até meados da primeira metade do século XX era marcante a movimentação dos trabalhadores no porto, antes localizado nas margens do atual centro histórico.  Estivadores, marítimos e terrestres, passavam o dia entre as embarcações e os armazéns carregando mercadorias que abasteciam a cidade. Era no porto, local de trabalho, que também confraternizavam e realizavam suas brincadeiras, como o boi. Nas últimas décadas do século XIX, por exemplo, era o “Boi da Rampa dos estivadores” que fazia a alegria da rapaziada que utilizava o local de embarque e desembarque (a rampa) para ensaiar e apresentar o grupo nas noites juninas. Este grupo era conhecido em São Luís como “afamado” e temido, já que, vez ou outra, seus brincantes demonstravam valentia ao encontrar cordões contrários pelas ruas e vielas.

A presença do folguedo como diversão dos trabalhadores do porto é uma característica que vai se estender até as primeiras décadas do século XX e coincidir com o surgimento dos primeiros grupos de bumba que, mais tarde, serão considerados como representantes do sotaque da Baixada ou Pindaré (vale adiantar que é a partir do Boi de Pindaré que se consolida o sotaque, e por isso tornou-se habitual o uso do “apelido”).

A relação entre os estivadores da capital, o bumba e a chegada de novos trabalhadores de outras regiões do Maranhão, sobretudo no pós-abolição, trouxe uma nova configuração à brincadeira, que já era realizada em São Luís. Estas pessoas que chegavam em busca de trabalho traziam consigo seus costumes, suas crenças e seus modos de fazer o bumba meu boi de suas regiões de origem. Essas diferentes formas, tanto no estilo das indumentárias, quanto no ritmo e nos instrumentos, deu origem ao que hoje convencionou-se chamar de sotaques, que corresponde à diversidade de estilos encontrada em São Luís.

É justamente através desse movimento que, em 1940, estivadores naturais da região da Baixada Maranhense fundaram o Boi de Viana, primeiro grupo da capital a reunir recém-chegados dessa região. Deste grupo, fazia parte o estivador João Câncio dos Santos, natural da cidade de Pindaré-Mirim, que chegou a São Luís em 1940. Devido a uma desavença com o então dono do Boi de Viana, ele sai do grupo e cria a “Turma do Pindaré”. Dada a sua posição de destaque e dono de genialidade artística, consegue levar boa parte dos membros com ele.

Sugere-se também que a sua inserção no Sindicato dos Arrumadores o tenha ajudado a agregar estivadores e arrumadores na Turma do Pindaré, tornando, com o tempo, este grupo bastante conhecido. A implementação de novidades às indumentárias, cadência do ritmo, mais lento em comparação com o antecessor, também é um marco da genialidade artística de João Câncio. Enquanto seu boi anterior reafirmava os personagens de animais, características do interior do estado, o Boi de Pindaré praticamente os extinguiu.

Através das relações que João Câncio mantinha com pessoas influentes da capital, o Boi de Pindaré conseguiu alcançar um status que, naquele período, poucos grupos de boi conseguiam. Um dos principais marcos foi a viagem realizada, em 1972, para o Rio de Janeiro para a gravação do LP “Sotaque de Pindaré”. O disco teve repercussão nacional e foi o segundo de bumba meu boi gravado na época. Apesar de se distinguir dos outros grupos de boi da região da baixada maranhense, pelos motivos já apresentados, é a partir da Turma do Pindaré que se consolida o”sotaque da baixada”, em São Luís.

A compreensão da grandiosidade deste feito pode ser vista através da mobilização desses sujeitos. Como já afirmado, grande parte dos que compunham o Boi de Pindaré eram estivadores negros e com poucos recursos materiais, além de serem migrantes de municípios do interior do estado. Pressupõe-se, portanto, que barreiras de classe social e de cor foram quebradas.

Através da história do Boi de Pindaré nota-se como fazer parte de um grupo de bumba meu boi que possuía prestígio permitia a estes sujeitos se movimentarem e se expressarem numa São Luís que se apresentava bastante desigual. As conquistas de espaços e distinção resultará, neste caso específico, em ascensão artística que marcará a história do bumba meu boi.

É preciso considerar também que, apesar de pouco escolarizados, suas composições eram destaque no meio. Um exemplo sempre citado é de Coxinho, autor de uma das toadas de Bumba meu boi mais famosas do Brasil, o Urrou do boi (Meu novilho brasileiro). Cantador do Boi de Pindaré, compôs toadas históricas e inovou no modo de cantar.

Boi de Pindaré hoje

Após a morte de João Câncio, em 1972, o Boi de Pindaré passou pela liderança de mestres como Maurício Fonseca e Sebastião Arouche, ambos também estivadores. Em 2002, depois do falecimento do último, o grupo passa a ser comandado por sua filha, Benedita Arouche. Historicamente, os bois maranhenses foram sendo constituídos como espaços masculinos e sua liderança era quase sempre de homens. Às mulheres eram destinados os papéis de cozinheiras, costureiras e organizadoras, fundamentais para a existência dos grupos, mas invisibilizados. Dessa forma, pode-se imaginar os desafios enfrentados por ela. Um dos principais desafios era exatamente o de ser aceita como liderança em um espaço masculinizado.

Em contrapartida, apesar dos obstáculos, a ainda dona do boi afirma que estar à frente trouxe liberdade que assegura nunca ter possuído. Ou seja, da mesma forma que o Boi possibilitou aos primeiros integrantes se movimentarem e se expressarem em uma sociedade profundamente desigual, galgando distinção e respeitabilidade, foi possível à Benedita se movimentar, conquistar sua independência e, com o tempo, sua autoridade perante os integrantes do boi.

Atualmente, uma de suas principais preocupações é a salvaguarda do bumba meu boi e a continuidade das atividades no futuro. Através da sua sensibilidade e em conjunto com outros parceiros, vem sendo realizado na sede do boi um trabalho educativo voltado às crianças. É importante destacar que a sede do boi está localizada no bairro de Fátima. Endereçado na periferia de São Luís, é marcada pela violência urbana e pela vulnerabilidade social.

A sede funciona durante todo o ano e serve como ponto de apoio à comunidade. Muitos moradores e integrantes vão até lá em busca de alimentação, remédios e ajuda financeira. É neste espaço que as pessoas se encontram e continuam a construir laços de solidariedade, tornando o boi um espaço de sociabilidade das camadas populares. E é ali também que, além das aulas de educação musical, as crianças do grupo e moradoras do entorno recebem aula de inglês e acompanhamento psicológico através de um projeto iniciado em 2023 por professores voluntários e pela diretoria do boi – atualmente reunidos no Instituto Iebabá.[1]

Desde o início das atividades do instituto é possível perceber uma transformação significativa na forma como as crianças se relacionam com o Boi de Pindaré. Progressivamente, elas vêm desenvolvendo compreensão mais profunda sobre o significado do grupo em suas vidas, reconhecendo o valor da tradição e o espaço de pertencimento proporcionado pelo boi. Esse envolvimento crescente reflete não apenas a transmissão de saberes culturais, mas também o fortalecimento dos laços comunitários. O Instituto, ao promover a participação ativa das crianças, contribui para a valorização da identidade cultural e para a perpetuação dos elementos essenciais do bumba meu boi na comunidade.

Além das iniciativas educativas com as crianças, a preocupação de manter a cultura do bumba meu boi está no dia a dia dos integrantes. Com o objetivo de perpetuar e salvaguardar a cultura, Benedita faz questão de se aproximar cada vez mais dos pesquisadores. Em outubro de 2025, em companhia do cantador e mestre da cultura popular Hermínio Castro, participou do XXV Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. Na mesa Patrimônio Cultural e Salvaguardas: Desafios e Possibilidades na construção de políticas efetivas, reafirma:

“Eu gostaria de deixar o boi para a eternidade, se fosse possível. Por isso eu me agarrei nos pesquisadores e nas crianças. Os historiadores para contarem a nossa história e as crianças para fazerem o futuro do nosso boi. Antes de morrer vou pedir para que elas façam o mesmo que eu: pensem na salvaguarda do nosso boi”. 

Ao envolver as crianças nas atividades do boi e aproximar os pesquisadores, o Boi de Pindaré garante a perpetuação do grupo às próximas gerações e contribui para o processo de salvaguarda da manifestação que é patrimonializada. Mais do que isso, continua afirmando a cultura do bumba meu boi como patrimônio vivo enraizado nas experiências das classes populares. Desta forma, segue como testemunha da permanência da cultura popular, mas também possibilita que ela não se cristalize, ao contrário, se reinvente no presente e renove vínculos sociais que possam sustentar a brincadeira sempre na atualidade possível.

Carolina Martins é doutora em história social (UFF) e professora adjunta da UFMA.
Fabiana Batista é pós-graduada em jornalismo cultural (UERJ).

NOTA
[1] O Instituto Iebabá foi idealizado e organizado pelos professores Marcos Lamy e Camila Marques e realiza suas atividades na sede do Boi de Pindaré.

Referências
Batista, F. Cores da Festa: Boi de Pindaré (MA). Monografia (Especialização em Jornalismo Cultural). UERJ, 2025
Martins, C. Bumba meu boi e festas populares na ilha do Maranhão: entre negociação e conflito. Tese (Doutorado em História), Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2020.
_________________. Política e Cultura nas histórias do Bumba meu boi do Maranhão. Teresina, PI: Ed. Cancioneiro, 2021
Jornal A Cruzada. 30/06/1891