Bumba meu boi é celebração maranhense que une dimensões religiosas, econômicas e identitárias

As singularidades dos grupos e a coexistência entre tradições locais/comunitárias e expressões mais comerciais/turísticas é evidência de que a negociação que se dá entre os brincantes e os agentes político-econômicos constitui-se estratégia de resistência do bumba meu boi enquanto expressão cultural periférica e marginal.

Por Anderson Lopes dos Santos

Um boi — o mais bonito da fazenda e muito querido por seu dono — é morto por um lavrador para atender sua esposa grávida, que deseja saborear a língua do animal. Depois, desesperado, busca uma forma de ressuscitá-lo. Esse mito é o fio condutor de uma das mais importantes expressões culturais brasileiras: o bumba meu boi.

Reconhecida como patrimônio cultural brasileiro e da humanidade, é uma celebração marcada pelo sincretismo entre tradições religiosas africanas, indígenas e portuguesas, que remonta ao século XVIII e que, segundo estudo, está presente em cerca de 450 comunidades em todo o estado do Maranhão — o que lhe confere o status de complexo cultural. As diferenças nos estilos de cada grupo em termos de instrumentos utilizados nas toadas (músicas), vestimentas e personagens são chamadas de sotaques.

O ciclo do bumba meu boi

Segundo Vitor Soares, pesquisador e doutorando em antropologia pela USP, o ciclo do bumba meu boi varia devido às particularidades de cada grupo. “Em geral é dividido em quatro etapas: os ensaios; as apresentações públicas ou brincadeiras, que acontecem em junho; o batismo; e, por fim, o ritual de morte”.

“Os ensaios são um momento de organização da festa. Há muito trabalho, como o das bordadeiras, envolvidas na feitura do couro do boi — que todo ano é diferente — além dos reparos nas fantasias dos brincantes. O rito batismal é uma bênção que pode ser feita por padre, rezadeira ou pai de santo. Há também uma bênção com água e folhas para que o corpo dos brincantes possa transitar entre diferentes arraiais e cidades com proteção. Já o ritual de morte acontece de forma dramática: o boi é preso ao pé de um morão e o miolo, a pessoa que fica debaixo dele, interpreta um definhamento, cospe vinho simbolizando o sangue, dando fim ao ciclo”, acrescenta Soares.

O pesquisador salienta que as dimensões religiosas, econômicas e identitárias se misturam na celebração, assim como festa e brincadeira. “Embora o bumba meu boi tenha uma dimensão religiosa — em devoção a santos e entidades, em alguns casos como pagamento de promessa — também há a dimensão econômica, já que afeta diferentes setores e está vinculado à identidade regional e ao calendário turístico e cultural do Maranhão. Apesar disso, a festa é uma brincadeira, com caráter de entretenimento e lazer muito forte. Essas dimensões não se sobrepõem, mas se articulam: religiosa, econômica, política e de lazer. É isso que dá cara a uma festa tão complexa”.

Emergência e tensões de um símbolo

A professora da UFMA Mônica Cruz adentrou o universo do bumba meu boi durante a graduação em Letras analisando as toadas, e aborda em sua pesquisa de doutorado a emergência do evento como celebração representativa do estado do Maranhão a partir de ideias propostas pelo filósofo francês Michel Foucault. “À medida em que eu lia A arqueologia do saber, percebia que as toadas eram só a ponta do iceberg. Havia uma questão midiática que me fazia questionar: se o Maranhão tem tantas manifestações populares, por que o bumba meu boi aparece como a grande marca local?”.

As respostas formam uma teia tão complexa e diversificada quanto a festa em si. Segundo Cruz, dentre os fatores estão o grande número de adeptos, as relações de poder no Brasil durante a ditadura militar, o surgimento de discursos nacionalistas e voltados para identidades regionais, associados à expansão da televisão nos anos 1980 e o investimento do governo local no setor cultural.

“Nos anos 1970 o discurso do turismo no Brasil ganhou grande repercussão, e a festa foi midiatizada, colocada como marca local — não apenas por ser bonita ou diferente, mas por haver interesses políticos e econômicos; foi um jogo de poderes. Na minha tese observei que, nesse processo, a festa perdeu algumas características singulares, como a apresentação do auto, que é a parte teatral da história do Pai Francisco e da Mãe Catirina. Hoje, poucos grupos apresentam essa dimensão”.

Para a pesquisadora, a dimensão crítica e política da festa — que demanda mais tempo e esforço por parte dos brincantes e que trata das relações laborais e da escravização no Brasil —, é pouco conveniente para os agentes da indústria cultural e pouco atrativa para o público mais jovem, que possui outro ritmo. Ela também reconhece haver maior valorização da musicalidade em detrimento da teatralidade. “Conversando com pessoas mais antigas elas dizem que antes gostavam de ver o Pai Francisco e a Catirina, mas hoje a festa é mais centrada na música, nas indígenas, com sensualidade e carnavalização. Esses apagamentos fazem parte da trama da indústria cultural. É paradoxal, pois a indústria mantém a prática, mas transforma o que é conveniente para si”.

Soares, por sua vez, questiona se existe, de fato, um apagamento. O que o pesquisador observa é a existência de um descompasso entre as políticas culturais e as demandas dos grupos de bumba meu boi, ao mesmo tempo em que “há um agenciamento que se dá por meio da troca” e por meio da qual “uma espécie de continuidade e resistência se tornam possíveis”.

As singularidades dos grupos e a coexistência entre tradições locais/comunitárias e expressões mais comerciais/turísticas, sugere o pesquisador, é evidência de que a negociação que se dá entre os brincantes e os agentes político-econômicos constitui-se estratégia de resistência do bumba meu boi enquanto expressão cultural periférica e marginal.

Outro ponto ressaltado pelo antropólogo é o olhar dos brincantes para o futuro, o que fundamenta estratégias de adaptação: “Eles estão o tempo todo investindo seus esforços para que a brincadeira aconteça. Se todo ano tem o bumba meu boi, é porque há uma perspectiva de vida futura muito pulsante na festa. Vejo uma resistência, não voltada apenas para o passado, mas com perspectiva de futuro pelos brincantes”.

A infância no bumba meu boi

Tais dinâmicas influenciam também a participação das crianças, como destaca Caroliny Lima, pesquisadora e doutoranda pela Faculdade de Educação da USP, que busca compreender as dimensões inter e intrageracional estabelecidas. “Há restrições, por meio de portarias estaduais, que objetivam disciplinar a entrada e permanência de crianças e adolescentes em locais de festas, arraiais e eventos juninos e a participação em danças, grupos folclóricos, grupos de bumba meu boi, entre outras manifestações artísticas e culturais, regulando o tempo de suas participações“.

Lima defende que o bumba meu boi é um espaço no qual as crianças podem ter vivências corporais e musicais de maneira lúdica, que as aproximam da comunidade e “possibilita viverem e conviverem com a cultura de seu povo, participarem da (re)construção e manutenção da herança cultural”. Além disso, considera essencial a “visibilização da participação das crianças na festa, como ocupantes desse espaço e como construtoras da cultura e de seus territórios”.

E complementa: “As crianças vivem a cultura ao mesmo tempo em que a reinventam, reelaboram e recriam seus elementos. Elas ao mesmo tempo sustentam uma tradição e as transgridem, pois (re)descobrem diferentes formas de (re)organizarem, (re)criarem e captarem os elementos da cultura. As crianças, ao mesmo tempo em que aprendem com os mais velhos, também produzem sentidos próprios para os elementos da festa, recriando o patrimônio cultural com suas lógicas, sensibilidades, corporeidades e performances”. 

Raízes, totalidade e perspectivas futuras

Para Mônica da Silva Cruz, é necessário resgatar as raízes do bumba meu boi. “A festa nasce de uma inquietação política, com parte dramática, dança e cantoria. Hoje, permanecem principalmente a dança e as toadas. Compreender as raízes teatrais explica a totalidade da manifestação. A manifestação também gera produtos culturais. Esse processo de visibilidade foi moldado pelas condições políticas, econômicas e culturais de cada época. Minha pesquisa mostra que a ascensão do bumba meu boi não foi natural, mas resultado de fatores históricos e midiáticos”.

Caroliny Lima concorda: “No contexto do bumba meu boi é indiscutível que a cultura se manifesta de forma densa e visível: nos códigos de conduta entre pares, nas formas de brincar e ocupar o espaço da sede onde os grupos se organizam, nas maneiras de se apropriar dos adereços e símbolos da tradição. Cada aspecto se une para se tornar um só, a toada, os instrumentos musicais, os adereços, os personagens, a fé, os ritos — tudo se junta em um ritmo só. Todos esses aspectos isolados não mostram a totalidade da brincadeira”.

E a celebração segue estimulando pesquisas. Soares tem investigado a relação entre o humano e não-humano a partir da relação entre o boi e o miolo. “Milhares de pessoas seguem um boi que não é um animal, mas um artefato conduzido por um humano, que chamamos de boi e não de miolo. O boi é uma entidade capaz de convocar pessoas e alterar a dinâmica da cidade. Esse acoplamento entre o boi e o miolo produz efeitos estéticos, visuais, políticos e sociais surpreendentes”. “O corpo do miolo é uma presença; quando há entidade incorporada, ela está em corpo, em presença física. A festa tem esse poder de agir não apenas sobre a identidade simbólica do ser maranhense, mas também sobre a materialidade capaz de transformar”, completa.

Anderson Lopes dos Santos cursa licenciatura em Letras (Unicamp) e estágiário no Labjor (Bas/Deape)