Conflitos históricos existentes nas zonas costeiras dificultam a gestão destas áreas ao redor do mundo

Por Monique Rached

O problema agrava-se ao considerar que as mudanças climáticas causarão consequências negativas para essas áreas, impactando a vida de milhões de pessoas

Aproximadamente 40% da população mundial vive a menos de 100km da costa. As zonas costeiras representam um local estratégico para o tráfego global de mercadorias, além de fornecer recursos como pesca, turismo e esportes. Historicamente são cenários de conflitos de interesses, e tudo indica que, com as mudanças climáticas, a situação vá se agravar.

Para exemplificar um efeito negativo das mudanças climáticas, um estudo publicado na Global and Planetary Change estimou que entre 1,6 e 5,3 milhões de pessoas devem ser forçadas a migrar, durante o século 21, por consequência do processo de erosão nas praias e o aumento do nível do mar. Além de impactar diretamente a vida de milhões de pessoas, esses dois fenômenos vão reduzir parte significativa do ecossistema praial, reduzindo o número de organismos que habitam essas áreas.

Conflitos no Brasil

A pesquisadora de pós-doutorado em oceanografia Carla Elliff, que trabalha no desenvolvimento do Plano Estadual de Monitoramento e Avaliação do Lixo no Mar em São Paulo explica que o litoral sempre foi um espaço estratégico para a economia e a defesa do território, por isso densamente – e desorganizadamente – ocupado. “As populações tradicionais do litoral foram expulsas desse espaço, assim como pessoas de mais baixa renda. Essas, muitas vezes, acabam por ocupar áreas desfavoráveis, criando assentamentos informais vulneráveis em termos sociais e ambientais, como palafitas em áreas de estuário ou encostas de morros. Além disso, temos pesca e o turismo, e os modelos atuais de ambas as atividades, em geral, trazem muitos impactos negativos e geram conflitos”, diz.

No caso da pesca, o coordenador Regional da Fundação Projeto Tamar do Rio Grande do Norte, Eduardo Lima, afirma que é historicamente um grande problema. “Cada vez mais é necessário aumentar a produção pesqueira para atender a um mercado ávido por consumir. Assim, a pesca vem destruindo habitats, capturando organismos que não fazem parte da pescaria alvo e, principalmente, não permitindo o tempo necessário para recompor uma determinada espécie, daí o rápido declínio de muitas delas”, explica.

Lima também aponta o descarte irregular de resíduos sólidos como outro problema e relata que “o número de animais encalhados vivos e mortos, com destaque para a tartaruga-verde, Chelonia mydas, vem aumentando ano após ano, ao longo de todo o litoral brasileiro”. Essa espécie ingere o plástico que fica flutuando juntamente com as algas das quais se alimenta.

Cadeia impactada

“Pensando no continuum das bacias hidrográficas, que conectam o continente com o oceano, percebe-se que atividades que acontecem ao longo dessa bacia – como descarga de efluentes domésticos e industriais, agrotóxicos, lixo – se somam à medida em que se aproximam da foz, trazendo uma série de consequências. Os setores econômicos, agricultura, indústria, turismo, pesca, vão impactar e serão impactados por essas atividades”, detalha Gerson Fernandino, oceanógrafo e professor do Departamento Interdisciplinar da UFRGS Litoral. 

A necessidade de colocar em prática planos de manejo mais eficientes e integrados é destaque em vários estudos. O professor do Instituto Oceanográfico da USP, Alexander Turra, destaca que o desenvolvimento da ciência oceânica é o primeiro passo para conhecer melhor a diversidade de efeitos dos fenômenos ao longo da costa e em regiões específicas. “Com isso em mãos, é fundamental que sejam feitas discussões bastante aprofundadas com a sociedade, considerando os diferentes grupos de interesse, e em especial os mais vulneráveis, dentre eles pescadores artesanais, para que se identifique de que forma eles serão afetados”. Na opinião do professor, a melhor estratégia seria o processo de co-construção envolvendo esses atores, que se tornariam agentes da transformação. 

Para Gerson, será necessário que cientistas, população e gestores estejam em contato mais próximo. Algumas ferramentas e políticas já auxiliam o gerenciamento desse tipo de relação com múltiplos interessados, como o Projeto Orla, no qual municípios desenvolvem de forma participativa com a população um plano com diretrizes sobre como melhor ocupar e gerir esse território.

O Projeto Orla é conduzido pelo Ministério do Meio Ambiente, por meio de sua Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos, e pela Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Do Projeto Orla originaram-se dois documentos importantes: Fundamentos para gestão integrada, que apresenta a estrutura conceitual e os arranjos político-institucionais, como base para orientar e avançar na descentralização da gestão da orla para a esfera municipal, e o Manual de gestão, que orienta, por meio de linguagem técnica simplificada, o diagnóstico, a classificação e a caracterização da situação atual, a composição de cenários de usos desejados e respectivas ações de intervenção para alcançá-los.

Uma entidade que também se preocupa em oferecer informações científicas em formato acessível para gestores do mundo todo, orientando que medidas podem ser tomadas é o IPCC   Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Criado em 1988 pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), o IPCC possui atualmente 195 países membros. O IPCC trabalha no sentido de revelar o estado do conhecimento sobre mudanças climáticas, identificar onde há consenso na comunidade científica e em quais áreas ainda há necessidade de pesquisa.

Mais recentemente, a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), que segue um formato semelhante ao IPCC, também tem buscado informar sobre como as mudanças climáticas afetam outras questões de interesse para a sociedade e governos. “Essas abordagens inter e multidisciplinares estão crescendo e são um ponto chave para melhor compreender e responder a uma crise que é transversal a tantos aspectos do nosso planeta”, pondera Carla.

Todos esses esforços mundiais têm como meta explicitar que é fundamental a otimização do manejo das áreas costeiras, além do investimento de recursos na previsão de cenários futuros, a fim de evitar o desencadeamento de grandes catástrofes, como seria a realocação de milhões de pessoas devido à elevação do nível do mar como efeito das mudanças climáticas.

Monique Rached é bióloga pela Universidade de São Paulo e especialista em jornalismo científico pelo Labjor-Unicamp. Bolsista do programa Mídia Ciência da Fapesp.