Contradições nas raízes dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável

Por Paula Drummond de Castro

Para Fabio Scarano, professor da UFRJ, é mandatório repensar o paradigma econômico para construir um futuro viável para o planeta.

Cunhados ao longo de 3 anos, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram concebidos com ampla consulta pública e posteriormente aprovados por 193 países, sob a égide das Nações Unidas, que se comprometeram a perseguir esses objetivos para construir um futuro planetário mais equilibrado até 2030.

Tudo parece perfeito, exceto por um único objetivo: crescimento econômico, o ODS 8. Aos olhos de Fabio Scarano, o professor de ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ao menos até hoje, esse objetivo não tem demonstrado sinergia com alguns dos demais – pelo contrário. Para Scarano, é justamente a busca pelo crescimento econômico que tem comprometido o meio ambiente e gerado injustiças sociais.

Scarano carrega uma trajetória institucional pouco convencional para o mundo acadêmico. Já passou por órgãos de governo (Capes), institutos de pesquisa (Jardim Botânico do Rio de Janeiro), ONGs (Fundação Brasileira Desenvolvimento Sustentável e Conservação Internacional) e pelo setor privado. Foi também autor em relatórios da ONU sobre mudanças climáticas e biodiversidade.

Essa formação trouxe ao engenheiro florestal, formado pela UnB, uma bagagem que ampliou seu olhar sobre as instituições e, sobretudo, sobre o papel da ciência na elaboração de políticas públicas e práticas do setor privado. Atualmente, Scarano é coordenador da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e atua em diferentes frentes no campo da sustentabilidade.

Durante seu período na ONG Conservação International (CI), onde foi diretor executivo para o Brasil (2009 – 2011) e vice-presidente sênior para as Américas (2011 – 2015), Scarano participou do Sustainable Development Solutions Network no Brasil, grupo que ajudou a elaboração e construção dos ODS. Atualmente interessa-se pelos ODS como objeto científico, investigando trade-offs e sinergias entre eles.

Em entrevista para a ComCiência, Scarano fala sobre os 17 ODS, utopias, pós-normalidade, novos paradigmas e oportunidades para o Brasil.

Como interpretar a lista dos 17 ODS que se sobrepõem, se complementam e se contradizem simultaneamente?

Se você olhar bem o desenho dos ODS, há quatro de biosfera que estão na base da pirâmide: vida na água, vida na terra, água e saneamento e ação climática. Acima desses, encontramos oito sociais: educação, saúde, redução de pobreza, fome zero, igualdade de gênero, cidades sustentáveis, energia limpa, paz e justiça social. Mais acima, cabem outros quatro de economia: crescimento econômico e emprego digno, infraestrutura, consumo e produção sustentáveis e redução das desigualdades. Por fim, na última esfera, o objetivo de parcerias para a cooperação entre todas as partes. Forma-se uma pirâmide de 17 ODS, como se fosse um bolo de noiva, e o que está na base, é a biosfera.

Fonte: Stockholm Resilience Centre

Parece-me mais interessante a relação entre os objetivos do que tratar de cada um pontualmente. Por exemplo, cabe entender como o objetivo de vida na terra (ODS 15), pode contribuir para o objetivo de erradicação da pobreza (ODS 1) e o de fome zero (ODS 2), que por sua vez contribuem para os objetivos de redução das desigualdades sociais (ODS 10) e o de paz e justiça (ODS 16).

Quais as oportunidades que os ODS trazem para o Brasil?

O Brasil é um país com vasta riqueza natural. O desafio – e simultaneamente oportunidade – está em fazer com que a conservação e a recuperação da natureza sejam a mola propulsora da melhoria da qualidade de vida dos brasileiros. A inovação, portanto, me parece estar em encontrar caminhos para melhorar a situação socioeconômica e humana do povo brasileiro a partir da biodiversidade em pé e viva. Assim, mais importante do que os objetivos pontualmente, seria trabalhar o que é conhecido como feixes de ODS, conjuntos de ODS que interagem em sinergia.

Diante de tantas contradições que presenciamos no planeta atualmente, os ODS surgem como uma idealização de um mundo justo e em consonância com o meio ambiente. Esse quadro projetado para 2030 já parece improvável. Neste contexto, por que os ODS ainda são importantes?

Uma coisa oportuna dos ODS é que eles funcionam como uma utopia programada, uma “blueprint” utopia. É uma utopia que tem um mapa de caminhos. E o mapa se resume a esses 17 objetivos e suas 169 metas. Não há um caminho único para alcançar esses objetivos. Entretanto, há um conjunto de metas e indicadores que, de certa maneira, aponta o que deve ser feito.

Vivemos uma fase de transição, crise e transformação, um período pós-normal, que é caracterizado por caos, contradição e complexidade, marcado por incertezas, imprevisibilidades, inseguranças. Será que a ciência “normal” vai ser capaz de auxiliar no tratamento dos desafios impostos por um período pós-normal? A ciência e o conhecimento são hoje estruturados em rígidas caixas disciplinares, o que cria uma dificuldade prática em construir ferramentas capazes de lidar com problemas complexos.

Pós-normal não é sinônimo de anormal. É um período que separa duas normais. Estamos saindo de uma normal – a tradição capitalista – e a caminho de outra, que será definida pela eficiência com a qual perseguimos objetivos comuns no período pós-normal. Os ODS seriam os objetivos comuns, que precisam percolar das salas de negociação da ONU para a sociedade em geral. E é nessa hora que eles precisam ser ainda mais negociados, para que, de fato, venham a ser inclusivos das diferentes visões de mundo existentes.

O mundo já passou por outras utopias. O que seria diferente desta vez?

Ao longo do século XX houve várias utopias. Algumas não vingaram: a utopia do sonho americano, a utopia do movimento hippie, a utopia do movimento marxista. Outras se provaram distópicas. Para o bem ou para o mal, não foram alcançadas mas, ainda assim, carregamos aprendizados e aspirações dessas diferentes tendências.

Um dos sintomas da crise atual é justamente o do ceticismo e de certa fadiga social acerca de novos projetos de futuro. Assim, como dizia o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, vivemos a sensação de “fim de futuro” – eu diria, própria de tempos pós-normais. É a morte da utopia, dizem alguns. Eu acho que essa sensação decorre do longo processo de afastamento do ser humano do que chamarei de “mistérios”, ligados à natureza e ao sagrado. Vivemos separados da natureza e vivemos o mundo newtoniano, onde tudo se explica e nada é mistério. Perdemos a multidimensionalidade humana em nome da racionalidade.

Não vejo essa multidimensão nos ODS. Mas, ainda assim, são um passo importante no sentido de propor uma projeção de futuro comum e desejado.

Qual a explicação de muitos dos ODS provavelmente não serem atingidos até 2030 pela maioria dos países, sobretudo os periféricos?

A meu ver, muitos não serão atingidos por serem contraditórios. Eu não creio que o capitalismo e seu mais novo filhote, o desenvolvimento sustentável, possam conciliar nos próximos 11 anos o crescimento econômico (ODS 8) com um bom estado de conservação na Terra, na água, na mudança do clima. O paradigma teria que mudar muito radicalmente em tempo curto. Um remendo no capitalismo não me parece que causará essa ruptura necessária.

Então a ideia de sustentabilidade é inconciliável com crescimento econômico?

Eu diria que até hoje não temos evidências que seja conciliável. Eu acho que a visão do desenvolvimento sustentável precisa dialogar com as visões do chamado pós-desenvolvimento. Isso mesmo, mais um “pós”. Este engloba visões como a do “decrescimento” (degrowth) e também algumas novas propostas que vêm da re-emergência de princípios de povos ancestrais, especialmente do sul global.

O degrowth propõe que a distribuição justa dos recursos econômicos já existentes, e hoje grandemente concentrada em poucos países e poucas pessoas, é um caminho mais sustentável que o de seguir crescendo desigualmente e às custas da natureza. Princípios como o do buen vivir, em países andinos, do ubuntu em países do sul da África, do swaraj, na Índia – pautados em linhas gerais pelo bem-estar consigo mesmo, com o próximo e com a natureza – hoje já são incorporados a leis nacionais e trazem “voz” à natureza. É o surgimento do que se chama de jurisprudência da Terra, reflexo de uma nova ética que emerge: é o que Hans Jonas, filósofo alemão, chamava, nos anos 1970, de ética da responsabilidade. Responsabilidade para com os que não tem voz: os seres não humanos, os seres humanos que ainda não nasceram, ou que não são escutados por serem minoritários de uma ou outra forma.

Então precisamos reinventar o tripé social-econômico-ambiental da sustentabilidade?

O paradigma no qual os ODS foram construídos é o paradigma do capitalismo, que é pautado pelo crescimento econômico. Veja, se considerarmos o volume de recursos financeiros que temos no planeta, veremos que estão concentrados na mão de poucos. Segundo o relatório de Oxfam, de 2019, o patrimônio dos 26 bilionários mais ricos do mundo corresponde ao dos 3,8 bilhões mais pobres. É uma concentração de recursos absurda. A questão é crescimento ou distribuição?

Mas os objetivos de erradicação da pobreza (ODS1) e redução das desigualdades (ODS 10) não dariam conta desse aspecto?

É interessante notar que em muitos países, inclusive no Brasil nos últimos anos, a pobreza reduziu, mas a desigualdade aumentou, assim como em outros países em desenvolvimento. É uma evidência inequívoca de que temos um problema com o modelo de desenvolvimento. E acho que os ODS, desenhados dentro do paradigma capitalista, não propõem uma agenda para suplantar essa lógica. A longo prazo, talvez o objetivo 17 – parceria entre todos os atores – poderia dar conta desse desafio. Mas só se for parceria verdadeira, global, equilibrada, que co-produz ideias, objetivos e soluções, e que admita como resultado do diálogo até uma mudança radical, de ruptura com o sistema vigente. Não é a parceria no sentido de filantropia ou assistencialismo. Essa grande parceria vai exigir amor a si mesmo, amor ao próximo e amor à natureza. E para o clima e a degradação da natureza não sufocarem essa utopia em 2050, temos que trabalhar rápido até 2030 no sentido de realizar todas essas mudanças.