Luiz Gonzaga Belluzo: ‘Austeridade, agora, significa prolongar a crise’

Por Paulo Markun, 8 de maio de 2020

“Crise será muito profunda e, se não for enfrentada de maneira adequada, prolongada. Digo sempre que as crises são diferentes, porém iguais. Porque, na verdade, você está operando na mesma estrutura de produção, emprego e de convivência social.”

Carlos Vogt: Olá, Luiz Gonzaga. Bem-vindo. Nos encontramos novamente no contexto das conferências sobre a crise brasileira, agora nas circunstâncias da pandemia. Nos nos levou a essa ideia de promovermos essas conversas na crise uma reflexão sobre “depois do futuro”. Queria antes de mais nada agradecer a sua presença. Luiz Gonzaga Belluzzo, que todos conhecemos bem, é um militante da vida intelectual, da inteligência, da reflexão sobre a dinâmica econômica, política e social das nossas sociedades.

É formado em Direito pela Universidade de São Paulo e Ciências Sociais pela antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. e é professor do Instituto de Economia do qual é um dos fundadores, da Unicamp. Professor e fundador da Facamp, as Faculdades de Campinas. E na década de 1980 foi secretário especial do Ministério da Fazenda, secretário estadual de Ciência, Tecnologia  e Desenvolvimento Econômico de São Paulo. Tivemos a oportunidade durante esses anos de trabalhar juntos em diversas ocasiões. E Luiz Gonzaga Belluzzo é autor de vários livros sobre economia, alguns com títulos cativantes e motivadores como, por exemplo, Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo; e o livro mais recente A escassez na abundância capitalista.

Muito bem, Luiz Gonzaga. Bem-vindo!

Paulo Markun: Obrigado, Carlos Vogt. Eu queria lembrar a todos que nos acompanham que é possível fazer perguntas pelo Facebook da TV Cultura e pelo Youtube da TV Cultura. Nós temos aqui uma pequena equipe – cada um no seu canto – para encaminhar essas perguntas até mim e eu encaminhá-las ao Belluzzo. Queria começar, Belluzzo, com uma informação que li hoje, é um dado do Banco da Inglaterra, de que a expectativa deles lá no Reino Unido é o encolhimento da economia de 30% na primeira metade do ano [2020], significaria rescisão mais profunda e rápida em mais de 300 anos. É nesse grau que nós estamos falando ou é algo menos grave e algo que muda em cada país? Como é que você imagina que vai ser, digamos assim, a volta, eu nem vou falar da “normalidade”, mas a volta das atividades econômicas no momento em que essa pandemia estiver relativamente controlada?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Markun, essas projeções dos bancos centrais e mesmo das consultorias econômicas estão sempre sujeitas a chuvas e trovoadas, a erros, uma medição imprópria etc. Mas o que nós podemos afirmar com segurança e com muita modéstia é que essa crise vai ser muito profunda e se não for enfrentada de maneira adequada vai ser muito prolongada, porque o que nós estamos observando é uma ruptura pelas exigências do isolamento com a ruptura do circuito de informação, da renda, do emprego e da formação de riqueza nessa sociedade. Eu diria que ela é tão grave que o próprio princípio da propriedade privada e da legitimação que essa propriedade confere à apropriação da riqueza pelos protagonistas do sistema econômico legitimidade está comprometida.

Paulo Markun: Como assim?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Porque o circuito simplesmente se rompeu. Se rompeu, e quando digo que o circuito se rompeu é a impossibilidade de você realizar esse processo pela venda dos seus produtos para os outros e também a impossibilidade d’os empregados que recebem salário continuarem recebendo para comprar essa produção que foi gerada.

Paulo Markun: Quer dizer, a cadeia de consumo está comprometida pela impossibilidade de contato físico?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Isso, de contato físico. Na verdade, contato dentro do circuito dentro do emprego.

Paulo Markun: Contato físico, quer dizer, você não pode ir em uma loja comprar ou você não pode ir na tua empresa trabalhar e produzir aquilo que será vendido, não é?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Isso, exatamente. Perfeito. Então, isso é uma característica inédita dessa crise porque em todas as outras depressões você teve isso, por exemplo, depressão de 1929 você teve essa ruptura, porém não teve o afastamento físico. As pessoas… na verdade, o desemprego na recessão de 1929 nos Estados Unidos chegou a 24% da força de trabalho. Porém as pessoas foram expulsas do circuito pela contração violenta provocada pela crise. Quer dizer, ocorreu o colapso, aliás foi no dia 29 de outubro, no dia do meu aniversário, a queda definitiva  da Bolsa de Valores de Nova York. mas, isso demorou três anos, demorou de 1929 a 1933 para você chegar ao fundo do poço. Nesse período as percepções ficaram um pouco escurecidas, porque parecia que a coisa ia retornar ao normal e na verdade afundou. Afundou, sobretudo, porque chegou um ponto em que um dos elementos cruciais do sistema, que é o crédito, desapareceu.

Paulo Markun: E foi uma crise que começou no campo financeiro, né, e não no campo da saúde.

Luiz Gonzaga Belluzzo: Por isso eu digo sempre que as crises são diferentes, porém iguais. Porque, na verdade, você está operando na mesma estrutura de produção, emprego e de convivência social. É a mesma, só que dessa vez veio para um fator, digamos (não gosto dessa expressão mas…) para um fator externo, para um choque externo. E esse choque externo que provocou essa ruptura do circuito.  Mas, na verdade, no seu processo  de produção essa ruptura provocou o quê? Como eu disse, as pessoas não podem nem comprar, nem vender. Então, tem uma restrição muito forte nesse movimento de compra e venda. E uma das dimensões mais importante é que a desconfiança contaminou todo o sistema, os bancos não emprestam. Qual a queixa que os empresários foram levar ontem ao presidente Bolsonaro? Eles não queriam fazer abrir…

Paulo Markun: A economia… quer dizer, as lojas…

Luiz Gonzaga Belluzzo: Queriam, na verdade, pedir a ele que tomasse providências para restaurar o crédito porque não conseguem sobreviver sem o crédito. Certo? Então, essa circunstância faz com que o Estado seja obrigado a interferir, porque aí se revelam as entranhas do funcionamento desse sistema. Quando está funcionando normalmente, a presença do Estado é percebida apenas pela ação do Banco Central, de regular, digamos, o crédito, as condições de liquidez, manejando  a taxa de juros, para controlar a remuneração das reservas bancárias etc., para tornar mais difícil ou mais fácil dependendo da atuação do ciclo econômico. Se o ciclo está exacerbadamente acelerado, eles têm que manejar a taxa de juros para rebaixar um pouco  esse entusiasmo, ao passo que quando entra em uma fase de baixo dinamismo você tem que manejar a taxa de juros… ou seja, o que a taxa de juros diz? E o acesso dos bancos às reservas bancárias. Tá certo? É isso, é uma regulação do sistema monetário.

O que acontece agora é que esse tipo de gestão… vou tentar apresentar isso de uma outra forma. Na crise 2008, que foi quando ocorreu – aí sim você apresentou muito bem –, como ocorreu uma crise endógena do sistema financeiro, teve um colapso no valor dos ativos imobiliários ou daqueles que foram criados em cima dos empréstimos imobiliários, que eles criaram uma pirâmide, alavancaram isso com crédito, então aquilo criou uma pirâmide que desmontou. E isso bateu… por exemplo, Lehman Brothers, os ativos do Lehman Brothers não valiam nada. Eu estava lendo um livro interessante, escrito pelo Bernanke e pelo Paulson – Bernanke é [era] o presidente do Banco Central americano e o  Paulson, secretário do Tesouro – e nesse livro, eles com muito realismo e com muita modéstia vão montando a história, eles falam “Nós não tínhamos entendido o que tinha acontecido, nós achávamos que era uma flutuação normal da economia. Mas, quando chegou no Lehman Brothers nós percebemos, olhando o funcionamento do mercado, que era uma espécie de pandemia econômica que estava contaminando todo o resto do sistema”. Então, eles foram aprendendo que tinham de fazer uma intervenção um pouco mais aguda, mais dura.

O que eles fizeram? Primeiro eram os 700 bilhões, mas no final das contas, para evitar que a pandemia se espalhasse eles na verdade compraram e botaram pra dentro do balanço do Banco Central cerca de 4 trilhões de dólares que eram ativos privados, apodrecidos…

Paulo Markun: Que eles compraram, digamos assim?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Eles compraram e botaram no balanço do Banco Central. Aí um amigo meu, que felizmente não é economista, mas fez a pergunta crucial: “Mas, aí o Banco Central não vai ter prejuízo?” Falei: “Meu amigo, você vai vender o Banco Central?”, né? Você não vai vender o Banco Central.

Paulo Markun: Só o Estado pode fazer isso.

Luiz Gonzaga Belluzzo: Isso, isso. Eu estou dando um exemplo, claramente. Só o Estado pode fazer isso.

Paulo Markun: Mas a pergunta, desculpa interromper, a pergunta é a seguinte: no caso da pandemia, agora, não é apenas a injeção de dinheiro que vai resolver o problema, imagino eu. Porque amanhã, por exemplo, vamos pegar um exemplo meu, que eu estou aqui em Lisboa e o debate é muito intenso sobre a TAP, todos os aviões praticamente da TAP, com exceção daqueles que fazem a rota Brasil e outros países de língua portuguesa estão parados, os funcionários estão em casa. Agora, se o governo for lá e injetar dinheiro na TAP e botar os aviões para voar, não vai ter passageiros que queiram voar nos aviões da TAP e nem nenhuma outra companhia aérea.  Então, é aquela coisa que você estava dizendo de que não se fecha o ciclo de consumo e de produção da economia, não é isso?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Mas, aí é o seguinte… Muito bem, você colocou muito bem a questão. Então, vamos pegar a TAP: é uma empresa de aviação, mas ao mesmo tempo é uma empresa que opera nesse circuito monetário de compra e venda. Os passageiros compram a passagem, eles vendem a passagem, tem uma receita, eles compram os aviões da Boeing, compram as peças, compram o combustível etc. Então, você está dando um exemplo. Antes de mais nada são operações quase que simultâneas – ou sucessivas. Antes, de mais nada, você tem que preservar essa condição de “agente monetário” da empresa, ou seja, você tem que limpar… Como ela na verdade operou o tempo inteiro tomando dívida e, na verdade, dando crédito comercial aos seus fornecedores, você tem que recompor isso em primeiro lugar. E quase que simultaneamente você tem que fazer uma ação – no caso da TAP, por exemplo, é mais complicada –, uma ação para manter ela funcionando. Você tem que limpar o passado e garantir o futuro dela. E como é que você vai garantir?

Você vai garantir fingindo que você vai comprar passagem da TAP, você vai inventar o “passageiro ideal” para manter a empresa sobrevivendo. E assim com as outras empresas. Não é por acaso que as intervenções nessa crise foram brutais. Por exemplo, o total da intervenção nos Estados Unidos está na ordem de 9 trilhões de dólares. Nove trilhões de dólares é uma proporção altíssima do PIB americano que está em 18, 19 trilhões, certo? É 50% do PIB.

Paulo Markun: E isso debaixo da administração do Trump, que supostamente não faria isso…

Luiz Gonzaga Belluzzo: Sim, ele não sabe… Ele na verdade é um empresário falido. Então, Trump na verdade seria socorrido pelo Banco Central americano. O fato é que o Powell, presidente do Banco Central, imediatamente se deu conta da necessidade; fizeram também uma transferência brutal para aqueles que foram…

Você viu como está o desemprego nos Estados Unidos? São mais de 20 milhões de pessoas que correm para o seguro desemprego. E isso só pode ser feito com o aporte do Estado. Quem é que vai fazer? As empresas vão fazer, vão pagar os empregados? Não vão. Então, eles estão tentando sustentar a renda minimamente e socorrer os desempregados, porque o desemprego foi maciço.

E a mesma coisa está ocorrendo aqui. Aí quando eu vejo o governo brasileiro trepidando e hesitando em tomar essas providências eu fico preocupado, porque aí a saída vai ser mais difícil.

São duas coisas. Primeiro é preservar, primeiro é limpar o passado. Eu diria que vai ter que fazer no caso não só do Brasil, mas do Brasil em especial, vai ter que fazer uma moratória do endividamento, porque eu conheço várias  empresas e escuto, falo com elas, várias empresas que estão com grave dificuldade de pagar suas dívidas. Mas, você não pode na verdade fazer isso sem socorrer a carteira dos bancos para preservar o sistema bancário. Se você deixar tudo desmoronar, você só agrava o problema.

Eu vejo frequentemente gente dizendo “precisamos fazer uma auditoria da dívida, porque não sei o quê”. Nessa hora, aliás, já é uma impropriedade das condições normais, porque a dívida pública é um instrumento de gestão financeira e monetária do Estado. Se você olhar, pegar uma trajetória, um gráfico com uma trajetória da dívida privada e da dívida pública e coloca as duas evoluindo juntas, quando você está em um período de expansão da economia o que cresce é a dívida privada, porque essa é uma economia em que a dívida tem um papel importante para criação monetária, a moeda é criada através do endividamento – os bancos emprestam, geram depósitos à vista, que são manejados pelos clientes como meio de pagamento. Mas, vamos dizer que a trajetória da dívida portanto explica qual é a dinâmica dessa economia.

Então, em um período de tranquilidade, até de euforia, a dívida privada cresce acima da dívida pública. A dívida pública pode crescer mais devagar porque o Estado não precisa emitir dívida pública, porque não precisa gerar gasto para financiar demanda.no caso do período que pintamos de favorável a dívida pública cai e a dívida privada cresce.

Quando você tem a recessão, essa trajetória se inverte: a dívida pública cresce e a dívida privada começa a cair proporcionalmente, porque quando tem a recessão o que acontece com as famílias, as empresas? Começam a se desalavancar, quando elas se desalavancam os bancos perdem ativos nos seus balanços e eles preenchem esses ativos com dívida pública. Então, há uma relação nessa economia de mercado capitalista, há uma relação entre endividamento público e endividamento privado que poucas vezes é levado em conta.

Aí as pessoas perguntam “E aí, como faz se a dívida pública crescer muito?” Faz o seguinte: você tem que preparar a saída. Eu vou dar um exemplo da 2ª Guerra, talvez esclareça.

No New Deal a dívida americana, em 1938, chegou a 50% do PIB. E o Roosevelt dizia assim: “Meus filhos, a dívida que vocês têm com o Estado é dívida de nós com nós mesmos”, mas não tinha muita gente que se convencia com isso não. Aí quando veio a guerra, acho que ele precisava fazer financiamento da guerra, ou seja, converter as indústrias todas para a produção dos instrumentos de guerra – avião, canhão etc. –, isso tudo financiado pelo Estado, reconverteu as empresas e tinha um compromisso muito sério de financiar corretamente as empresas  para que elas cumprissem as ordens que eram emanadas do comitê de gestão da guerra. E ao mesmo tempo o que que fez? Vou explicar porque acho que vale a pena.

O que que fez o Roosevelt? Emitiu dívida pública. A dívida saiu de 50, chegou em 1945 em 112% do PIB. foi uma trajetória assim… E aí é o seguinte, como é que ele explicou? Ele falou “Olha, nós vamos subir a dívida de qualquer maneira, até onde der, para  a gente poder vencer a guerra” e emitiu três tipos de títulos. Um tipo de título era mais ou menos 20% do total, que ficou entregue às camadas mais pobres da população; outro tipo de título foi entregue à camada intermediária. Qual era o compromisso? Quando sair, quando terminar a guerra, logo depois do armistício, o que fez o governo americano? Ele começou a monetizar esses…

Paulo Markun: Esses títulos…

Luiz Gonzaga Belluzzo: Essa dívida. Então, veja bem como é inteligente. Como a economia estava toda convertida para produzir tanques, avião, canhão e barcaça de desembarque como aquelas do dia D, que a gente viu, né, você não podia produzir carro, não podia produzir máquina de lavar roupa, não podia produzir geladeira. Então, estava acumulando, por uma lado, riqueza potencial na mão das famílias e das empresas e ao mesmo tempo você estava produzindo… Quando voltou, quando houve o armistício você reconverteu – e essa reconversão foi feita com muita inteligência –, reconverteu , começou a monetizar esse papel. E isso deu um impulso grande na demanda de automóveis, de bens duráveis no geral. E não tô inventando isso, isso eu li dos grandes historiadores da guerra.

Paulo Markun: Mas, nós não temos reconversão possível nesse momento, nem para produzir equipamento, por exemplo, é  muito pouco o que está acontecendo. E em segundo lugar, quer dizer, ainda tem um risco. Sabemos que essa comparação com a guerra é sempre complicada, porque a pandemia pode ter uma segunda volta. Até surgir uma vacina, nós, os caras pálidas aqui, estamos correndo o risco de sermos infectados. E por isso que as quarentenas estão sendo esticadas. Como é que se enfrenta isso?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Lembre-se que a guerra durou – no caso dos Estados Unidos – de 1941 a 1945, também durou um bom tempo.

Paulo Markun: Entendi.

Luiz Gonzaga Belluzzo: E isso significa o seguinte: o abastecimento na verdade nos Estados Unidos ficou restrito, muito restrito ao vestuário e à comida. Muito restrito ao vestuário e à comida. Então, nós estamos vivendo aqui um momento em que o problema é o lockdown das cadeias de produção, as cadeias de produção estão paralisadas. É muito parecido com a guerra. Então, o que eu estou dizendo é que as pessoas ficam perguntando o que vai acontecer.

O que vai acontecer é que você tem que impedir que o colapso seja total nesse momento. Impedindo que o colapso seja total e administrando corretamente a economia… Por exemplo, há uma bobagem que é essa história de “então vamos fazer com que as pessoas recebam menos, com que seu salário seja cortado”; isso é bobagem, eles não fizeram isso lá. Eles mantiveram os salários. Como não havia possibilidade de compra, eles venderam os títulos para a população, que é um problema de interesse público, eles explicaram “olha, esse é um problema de interesse público”.

Mas, na verdade nós temos o problema da volta. Como é que tem que ser a volta. A volta tem que ser assim, você vai voltar a produzir as coisas que ficaram reduzidas, a produção ficou reduzida durante a pandemia. Você vai ter o mesmo problema da volta. Então, a preocupação é assim: “Mas, quando voltar, nós temos que voltar à austeridade”. Bobagem! Quando voltar, você tem que voltar sustentando os gastos das famílias e empresas  para poder comprar de volta aquilo que vai ser produzido. Se você fizer austeridade, você vai prolongar a crise. Isso exige planejamento.

Eu conversava sobre a facilidade com que os alemães estão saindo do meio, porque eles têm um sistema de relação entre empresários e trabalhadores do Estado em que a economia social de mercado lhes dá uma vantagem enorme.

Paulo Markun: A China também faz isso num outro modelo, centralizado…

Luiz Gonzaga Belluzzo: Exatamente, a China faz a mesma coisa num outro modelo. Perfeitamente. Você está certíssimo.

Paulo Markun: Agora, a União Europeia está se complicando porque fica essa coisa do Clube Med de um lado – Portugal, Espanha, Itália, França e Grécia –, e do outro lado os países ricos. E não se entendem no sentido de buscar um suporte coletivo para essa crise da economia. Não é isso?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Você levantou uma questão muito importante porque a Corte Suprema alemã acabou de questionar o projeto da Lagarde do Banco Central Europeu de comprar os títulos dos países membros. Eu acho que isso não terminou ainda. O que a Corte perguntou é se isso não  estava violando as regras da – uma outra questão que eu quero falar –, se não estava violando as regras da união monetária. E, de fato, como a união monetária é uma espécie de monstrengo, porque você tem a emissão de título, você tem uma moeda única com emissão de título por cada  instância política, jurídica, nacional. Você tem títulos nacionais que têm diversas cotações no mercado . Os italianos estão bem mal, aliás pensando até em emitir uma moeda fiscal que seria aí um rompimento completo com a União Europeia. Mas, os alemães têm que criar juízo, porque de fato eles têm um sistema econômico monetário financeiro muito apropriado para os propósitos deles, mas no fundo eles estão vivendo um pouco à custa, ou viveram muito à custa da demanda nascida dos outros países que eles financiavam e que compravam os carros deles, as máquinas deles. Eles são muito bons nessas coisas. Mas, isso gerou um desequilíbrio entre Alemanha e os outros países que precisa ser sanado de alguma maneira, porque senão o que está ameaçado é a União Europeia.

Paulo Markun: Em que medida, Belluzzo, o cenário pós pandemia preserva esses modelo de produção que é globalizado, quer dizer, um equipamento da época, por exemplo, ter 42 fornecedores em vários países, ou essas trocas que tem, ou o próprio comércio internacional, né… Alguns economistas levantam a hipótese de que cada país vai olhar mais para dentro, no sentido de tentar ser mais autônomo. Você  acredita nisso ou o capitalismo é global, não tem papo?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Os instintos do capitalismo são para que seja global, mas ao mesmo tempo esses processos de globalização, sobretudo esse recente, mas no final do século XIX também foi parecido, esses movimentos de constituição das cadeias produtivas globais e da globalização financeira – eu vou tentar resumir isso de uma maneira muito clara – eles na verdade aceleraram, isso foi uma aceleração muito grande no tempo de produção, nos tempos de produção e circulação do capital… Vou falar o português claro, os tempos de produção e de circulação, e essa aceleração veio acompanhada de um menosprezo absoluto pelos espaços políticos jurídicos nacionais. Ou seja, o Trump foi eleito prometendo o quê? A América vai ser grande outra vez. Vamos falar de um episódio engraçado: na produção de máscaras, os Estados Unidos tiveram que comprar da China e na China quem estava produzindo era a 3M, que é uma empresa americana. Então, isso explicita aquilo que você falou que hoje as redes de produção estão todas  espalhadas por vários espaços nacionais.

E isso mostrou os seus inconvenientes no momento da crise. Por quê? Porque, por exemplo, o Brasil tem necessidade de produzir respiradores. Anos atrás ele teria capacidade – há 40 anos – para fazer. Hoje não tem mais.

Paulo Markun: A desindustrialização foi brutal, não é?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Foi brutal, exatamente. E os dois movimentos são concomitantes. Por exemplo, o Brasil começou o seu processo de desindustrialização, depois da dívida externa, nos anos 90. E a presença, a participação no final de 80 da indústria de transformação no PIB era de 29%. Hoje está em torno de 11% – dependendo de como você faça a conta, do setor que você exclui ou inclui, está em 11%. Essa queda… O Brasil era o país mais industrializado dos chamados países em desenvolvimento; não eram chamados de emergentes ainda. Muito bem. O Brasil tinha todos os setores aqui, a indústria brasileira era completa, estava no estado da arte e foi perdendo no mesmo momento em que a China começou a ascender. A China começou as reformas em 1978 e foi uma escalada impressionante. Então, quando eu digo no mesmo momento é porque o Brasil era a China dos anos 50, 60; por exemplo, nós atraímos capital estrangeiro maciçamente para compor o nosso parque industrial junto com as empresas estatais e as empresas privadas brasileiras.

Quem na verdade tem o mínimo de noção de como foi feita a divisão de trabalho pelo grupo executivo da indústria automobilística do Juscelino, entre os fornecedores e as montadoras, poderia, na verdade, aprender como isso foi constituído. Os fornecedores eram brasileiros e as montadoras eram estrangeiras. Nós devíamos ter avançado para as montadoras, mas não fizemos. Mas, enfim, só para dar exemplo. A China fez a mesma coisa, a China atraiu investimento estrangeiro e começou a fazer joint venture com as empresas estrangeiras para capacitar as suas empresas nacionais. Hoje, a China já é um país cujas empresas são capazes de se expandir para fora, elas estão expandindo agora. Tanto que os alemães acabaram de proibir que as empresas chinesas comprassem as alemãs, empresas de alta tecnologia. Então, essa vocação, esse instinto do capitalismo é um instinto realmente internacionalista. Globalista. Agora, isso não quer dizer que o globalismo é bom e o nacionalismo é ruim. Não é assim. Você não pode eliminar o fato de que as pessoas vivem nos seus espaços políticos, jurídicos nacionais. Ganham dinheiro ali etc.

Paulo Markun: Faço a pergunta aqui de Rogério Gutiele ainda sobre esse tema: há alguma possibilidade de países adotarem saídas nacionalistas como aconteceu no pós-guerra?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Good question.

Paulo Markun: Quer dizer, existe esse espaço de ação dentro de um mundo capitalista?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Sempre há, né, porque o que aconteceu no pós-guerra? Muito boa a pergunta. Porque no pós-guerra isso aconteceu no âmbito das instituições de Bretton Woods. Bretton Woods foi pensado exatamente para que você pudesse ter uma economia internacional, ou seja, uma economia em que as relações de comércio se desenvolvessem amplamente, mas que fosse reservado um espaço – como foi – para o desenvolvimento das políticas econômicas nacionais. É um movimento que é complicado na sua execução, mas que é necessário, porque aí você teve na verdade dentro das regras de Bretton Woods, coordenadas por um país hegemônico, os Estados Unidos… todo mundo falava “o Plano Marshall”, sim o Plano Marshall foi fundamental para quê? Para permitir que a Europa pudesse se reconstruir, recuperar sua capacidade produtiva e houve o milagre alemão, o milagre japonês, o milagre italiano… É que eu sou mais velho e eu sei dessas coisas, as pessoas às vezes não sabem, é a vantagem de ser mais velho.

Então, os sistemas econômicos nacionais, a subida dos salários, o aumento do emprego, o avanço tecnológico que eles começaram a tirar muitas vezes de si mesmos ou dos Estados Unidos… Vamos lembrar uma coisa, Markun, em 1956, 57, a Volkswagen veio para o Brasil. E a Volkswagen era uma empresa da Alemanha, que foi a derrotada na guerra, que sofreu bombardeios terríveis, mas na verdade essa  cooperação – e como no Japão igualmente; como a Coreia, a Coreia ainda estava nos primórdios, mas como o Japão – se criou um sistema internacional que permitiu as políticas econômicas nacionais, dadas as individualidades de cada país.

Vou lembrar mais, a industrialização brasileira dos anos 50 e 60 e mesmo no período militar, porque os militares não abandonaram esse projeto, se fez já dentro das regras de Bretton Wood, nos anos 50, e nós recebemos com uma economia, com um mercado bem razoável, recebemos como programa de expansão do Juscelino, por exemplo, uma invasão de empresas estrangeiras que investiram aqui. No setor de bens de capital tinha mais empresas estrangeiras do que na economia americana. Certo? Então, é possível sim, mas isso é uma construção institucional.

Paulo Markun: Mas você enxerga lideranças e disposição nesse sentido? Porque, mais uma vez voltando à questão da Europa, que eu por circunstância acompanho mais de perto agora, e o que acontece e que há declarações de intenções muito entusiasmadas da parte do pessoal da União Europeia, basicamente dos gestores, mas na verdade é aquela história de cada um por si, todo mundo preocupado  com o seu problema específico e não há uma aliança. De outro lado, na questão da relação das duas maiores potências, Estados Unidos e China, não se sabe… Um dia é de um jeito e no outro dia é de outro jeito, até porque temos no Estados Unidos um presidente que muda de ideia como quem muda de gravata. Você imagina que surjam ou que haja lideranças para levar esse entendimento e abrir espaço para as iniciativas nacionais num âmbito internacional?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Acho que você colocou muito bem a questão, porque nessas lideranças que estão aí eu não tô vendo exatamente a possibilidade de você chegar a um outro Bretton Woods, por exemplo. Teria que envolver os dois países mais poderosos do ponto de vista econômico, né. Porque o nacionalismo do Trump é um nacionalismo muito negativo, porque na verdade ele é excludente e decorre, ironicamente, de que esse movimento de globalização de começo dos 80 pra cá foi gerado pelo impulso de internacionalização das empresas americanas, para ser muito simples.

Eu vou contar uma pequena história pessoal. Eu estava em Belgrado em 1979, pela Gazeta Mercantil, para eu observar o que estava sendo discutido e foi uma discussão exatamente sobre a substituição do dólar por uma cesta de moedas. Surgiram com esse projeto, porque estava em um momento de desgaste daquele sistema que havia sido tão bem sucedido. E os Estado Unidos já tinham desvinculado o dólar do ouro. Você lembra bem em 71, né? E começou a haver uma corrida do dólar, não para o dólar como está acontecendo sucessivamente nos anos recentes. O dólar começou a se desvalorizar, tanto que a inflação americana acho que chegou a 13% em 1978, mas não importa.

Nessa reunião de Bretton Woods os europeus chegaram babando ali, falando vamos substituir o dólar com o ouro, porque as reservas deles estavam.. eles estavam trocando o dólar pelo marco e até pelo iene nas suas reservas etc. E estava lá o Volcker, presidente do Banco Central americano, do Federal Reserve, e eu conversando com muitos americanos e mesmo com os brasileiros mais influentes, que estavam há mais tempo no FMI, nossos representantes, que era o Alexandre Kafka – que virou meu amigo e infelizmente morreu –, mas nós conversamos e chegamos à conclusão que os americanos iam tomar uma atitude, subir a taxa de juros.

O Volcker voltou para os Estados Unidos antes do fim da reunião, subiu a taxa de juros de 6 para 8, 8 para 12, 12 para 14, 14 para 21. Nós quebramos, aí foi a hora que o Brasil quebrou e começou o seu endividamento externo.

Então, o que aconteceu ali? Os Estados Unidos reafirmaram o poder do dólar como moeda reserva e valorizaram… o dólar se valorizou uma barbaridade no mundo inteiro. Os europeus ficaram. Os países da periferia quebraram quase todos que estavam endividados.

E o capital americano produtivo, com a valorização do dólar, se sentiu desconfortável porque eles, na verdade estavam perdendo competitividade, porque o dólar ficou muito valorizado e eles perderam… os produtos americanos… Começaram a sair para onde? Começaram a sair para os países asiáticos, para a China especialmente.

Então, eles produziram esse deslocamento, essa deslocalização – perdão da palavra – da indústria, da manufatura para a China. A China tinha quanto? Qual era o peso da indústria chinesa na economia mundial? Era o mesmo da brasileira, estava em torno da brasileira. Hoje a China tem praticamente 14% da produção manufatureira, que é maior que dos Estados Unidos. Então, o que acontece é que você está em uma situação em que a China está ficando realmente um país que disputa a hegemonia americana e esse é um dos problemas, porque você não vai ter uma reordenação das regras da economia internacional, do sistema internacional financeiro monetário sem uma colaboração da China com os Estados Unidos.

Paulo Markun: E a China fala, inclusive, na cena com a possibilidade de uma moeda digital própria, né? Quer dizer, grande parte dos meios de pagamentos na China hoje já são digitais, eles operam de uma maneira que é… Eu passei 20 dias na China, no ano passado, por conta do meu filho que estava morando lá, e fiquei em crise, quer dizer, não usei uma única vez uma nota de dinheiro…

Luiz Gonzaga Belluzzo: Lá não usa.

Paulo Markun: … Porque faz pelo celular. Agora, isso só uma economia centralizada como a China é capaz de aplicar da noite para o dia. E eles estão fazendo isso, né. Isso também ameaça, num certo sentido, esse entendimento.

Luiz Gonzaga Belluzzo: É, isso dá uma grande vantagem a eles, porque isso na verdade facilita a operação da moeda como meio de pagamento. Por que as pessoas estão confundindo as coisas. Essa moeda digital é só como meio de pagamento. 

Paulo Markun: Meio de pagamento. Não é reserva, né?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Não, reserva é a moeda abstrata. Você faz uma aplicação em yuan, está denominado yuan sua aplicação, né, que na verdade garante o fato de que você pode fazer… você ter aplicações em yuan garante que você pode fazer a moeda digital em yuan. Por que o pessoal está achando que é uma criptomoeda. Não é uma criptomoeda! Não é como bitcoin. Bitcoin não é moeda, bitcoin é um ativo financeiro que baixa, sobe, cai, desce; não pode ser moeda, não tem estabilidade para ser moeda.

Então, mas eu acho que essa negociação, talvez, se o Trump perder a eleição, se surge um comando político mais bem organizado, mais civilizado nos Estados Unidos… O que  nós estamos observando também é que alguns valores da civilização ocidental criadas no Iluminismo estão sendo ameaçadas por essa…

Paulo Markun: Mais de um lugar, né?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Mais de um lugar, exatamente. Estão sendo ameaçados em mais de um lugar. Isso também é preocupante, muito preocupante.

Paulo Markun: Pergunta de Antonio S. Neto: “Como conciliar  projeto de longo prazo com a pauta democrática se os governos se alternam?”. Pergunta de difícil resposta, imagino eu.

Luiz Gonzaga Belluzzo: É. Então, na verdade é o seguinte, você tem convicções, formações de consensos… Como é que os governos se alternaram durante o imediato pós-guerra e os projetos continuaram? Até porque você criou… por exemplo, na França você criou o Comissariado Geral do Plano; em vários países você teve planejamento indicativo. Ou seja, foram criadas instâncias que na verdade resistiram à mudança dos governos.

Paulo Markun: Quer dizer, o Estado tinha um corpo próprio que de alguma forma sobrevivia à mudanças.

Luiz Gonzaga Belluzzo: Isso. Vamos lembrar o seguinte: uma das grandes contribuições do Max Weber é que você para administrar uma economia na democracia, na economia de mercado capitalista, você precisa ter uma burocracia independente muito qualificada, porque ela dá estabilidade e as pessoas imaginam que a democracia não dá – mas, é preciso construir. E isso durou muito tempo no pós-guerra, porque você tinha nessas instituições uma burocracia legitimada, convencido das  suas atribuições na democracia. Isso vale não só para as burocracias econômicas, vale para todas, para a judiciária, vale para as Forças Armadas, vale muito para as Forças Armadas… Quer dizer, elas na verdade têm atribuições no regime democrático que são de garantir a estabilidade social  e econômica do país.

Então, eu acho que isso tem uma solução sim, desde que você redesenhe as funções e mude os projetos de desenvolvimento, porque eu acho que para falar do futuro, no futuro próximo você vai ter que ter o mínimo de coordenação. Vou dizer por quê. Por exemplo, os mercados de trabalho estão totalmente transformados; hoje em dia você tem, vai ter se prosseguir esse  avanço tecnológico que nós estamos observando, vai ter certamente um problema muito sério de trabalho precário. Eu estava vendo agora nos Estados Unidos, eles se deram conta de que aquela taxa de desemprego deles de 3,5 era mentirosa, porque você tinha um percentual muito grande de gente na informalidade, de trabalho precário. E eles “não! a taxa de desemprego é 3,5”. Não era não. A taxa de desemprego dava 12%.

Paulo Markun: Ou seja, mais Estado? Mais a presença do Estado, pelo menos.

Luiz Gonzaga Belluzzo: Mais Estado. Um Estado muito bem constituído e muito bem fortalecido do ponto de vista da sua eficiência. Não é só ter mais Estado ou menos Estado.

Paulo Markun: Não é receita.

Luiz Gonzaga Belluzzo: O Estado é inseparável da economia de mercado capitalista.

Paulo Markun: Não, mas é que nos últimos tempos, parecia, o discurso predominante era o seguinte: “O Estado tem que se retirar de todos os setores em que ele não é indispensável”. E naqueles onde era indispensável, o que aconteceu foram cortes dramáticos que levaram à essa deterioração, por exemplo, do Sistema Único de Saúde. Certo?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Perfeito, perfeito.

Paulo Markun: Agora, uma questão: há quem diga – e é um grupo, na minha bolha, muito frequente – que o mundo não será mais o mesmo e a sociedade será melhor, mais humanista, mais preocupada com a vida das pessoas, menos consumista, enfim tudo será diferente. Como é que você encara esse cenário? É por aí ou o capitalismo vem, troca o fusível e o barco segue em frente? Tô sendo um pouco caricatural, evidentemente.

Luiz Gonzaga Belluzzo: Vamos tomar a experiência da… eu sempre costumo me guiar pelo que a humanidade já passou, já fez etc. Vamos olhar o pós Segunda Guerra. Aliás, eu estou estudando, tem uma comparação entre o pós Primeira Guerra e pós Segunda Guerra… pós Segunda Guerra veio depois da grande depressão, de uma tragédia de 80 milhões de mortes. Ai você vai olhar e ver como é que foi a construção dessa arquitetura que presidiu a vida social e econômica do pós guerra e quem é que as produziu, né? Foram lideranças do Estado. Roosevelt era um homem da alta classe americana, sobrinho do Theodore Roosevelt; o Marshall, general Marshall era do Estado americano. Mas, o choque foi tão grande, eu acho que o choque dessa pandemia é tão grande que vai mobilizar as pessoas numa direção menos tosca e menos egoísta do que isso que estava acontecendo lá atrás, porque esse egoísmo foi na verdade também fomentado pela forma como funcionava o capitalismo.

Você estava na verdade aumentando brutalmente a desigualdade – eu já mencionei essa história, mentira, do desemprego de 3,5; cheio de gente pedalando na rua para entregar comida; um ou outro de Uber, né. O sistema na verdade diz “não, você é um empresário de você mesmo”. Empresário nada! Ele era dependente da plataforma. Não tem empresário coisa nenhuma. Então, é possível que nasça daí, e eu vou voltar ao pós guerra, quem é que reconstituiu, que rearrumou o sistema do pós-guerra?  Eu vou citar os nomes: De Gasperi, que era da Democracia Cristã; De Gaulle, que era um republicano francês; Adenauer, que era da democracia cristã alemã; e tantos outros que eram conservadores junto com os partidos socialistas e comunistas, que defendiam a constituição de seus países. Então, foi um bloco político e social que empurrou essas sociedades para frente. E isso, eu não sei se vocês se lembram – como eu me lembro muito bem –  de alguns filmes, sobretudo, “Ladrão de Bicicleta”… se lembra?

Paulo Markun: Sim, claro.

Luiz Gonzaga Belluzzo: Lembra de “Rocco e Seus Irmãos”? Foi no ambiente do pós-guerra. Outro dia eu estava revendo um filme, “A Classe Operária vai ao Paraíso”, do Elio Petri. Lembra? Isso tudo exprime esse estado de espírito dessa sociedade que queria que todos tivessem as mesmas oportunidades.

Paulo Markun: Havia mais solidariedade.

Luiz Gonzaga Belluzzo: Muita. Era uma situação de solidariedade, é isso mesmo.

Paulo Markun: Para resumir, Belluzzo, nosso tempo está acabando aqui, você é moderadamente otimista em relação ao que vai acontecer depois da pandemia?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Eu vou responder como o Adorno respondeu numa ocasião, perguntaram a ele se ele era otimista, ele disse “eu não sou otimista, eu tenho esperança”. Eu tenho esperança.