A crise brasileira

Por Carlos Vogt

Conversas na crise: depois do futuro foi uma iniciativa do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp (IdEA), da TV Cultura e, posteriormente, do UOL. Nasceu, em 2019, como um ciclo de conferências sobre a crise brasileira, organizado pela reitoria da Unicamp e pelo IdEA, com convidados de destaque que refletiram e expuseram seus comentários, análises e interpretações da gravidade da situação econômica, ambiental, política, social e cultural vivida no país, antes mesmo de seu agravamento, em 2020 pela pandemia da Covid-19.

Com as medidas necessárias de restrição e de isolamento, o projeto, procurando adaptar-se às novas circunstâncias de comunicação e de convivência social e incorporando a reflexão sobre o mundo depois da pandemia, o futuro do mundo, o mundo depois do futuro, juntamente com o jornalista Paulo Markun, o IdEA realizou uma longa série de lives, com convidados nacionais e internacionais que apresentaram e discutiram suas visões críticas dos cenários projetados na pós-pandemia.

Motivados pela leitura do livro Depois do futuro, de Franco Berardi, tomamos dele emprestado o título e a inspiração para organizar o ciclo de entrevistas com o nome Conversas na crise: depois do futuro.

Das 33 entrevistas realizadas, selecionamos 7 para compor este número da revista ComCiência.

O diplomata e ex-ministro chanceler Rubens Ricupero discutiu o cenário internacional pós-pandemia e apontou a diferença extraordinária que faz a qualidade da liderança de um país. Ricupero rememorou uma conferência na Academia Brasileira de Letras que nomeou justamente “Brasil, um futuro pior que o passado?”. Inspirava-se num artigo dos anos 1990, escrito por um jornalista e pensador americano radicado em Paris, Wiliam Pfaff, que deu origem a um grande debate no jornal Le Monde. Nesse debate, lembrava-se que desde o Iluminismo, no século XVIII, havia uma tendência no Ocidente de tomar como garantido que o futuro sempre seria melhor que o presente e muito melhor que o passado. 

“Agora começávamos a ter dúvidas fundadas se, de fato, o futuro seria melhor que o presente ou pior ainda, se não seria inferior até ao passado. Hoje em dia estamos vendo como esse exercício de tentar antecipar o futuro é cheio de riscos, porque estamos no meio de uma pandemia que é um “cisne negro”, isto é um acontecimento absolutamente imprevisível, desses que só ocorrem de longe em longe. São acontecimentos que não podem ser antecipados na base do cálculo de probabilidades baseados em estatísticas, porque as variáveis são muito grandes, são eventos altamente improváveis”. 

Ricupero reitera que é preciso não esquecer jamais – por mais forte, por mais potente que seja -, que a pandemia é um acontecimento limitado no tempo.

“Em história, a escola dos historiadores franceses, de Fernand Braudel, da Revue des annales, nos ensinou que nunca se deve perder de vista a dimensão do tempo. É o tempo curto, é o tempo médio ou é o tempo longo? O tempo curto, é o tempo da conjuntura, do acontecimento; o tempo médio e, sobretudo, o tempo longo é o tempo da estrutura, das mudanças mais profundas. Normalmente um acontecimento por mais espetacular que seja não muda as tendências profundas da história, as tendências demográficas, as tendências culturais, tecnológicas. No caso da atual pandemia ainda não sabemos quanto vai durar, mas certamente será limitada no tempo. Tudo o que é limitado a alguns poucos anos dificilmente será capaz de mudar as estruturas. O que a pandemia pode fazer e provavelmente vai fazer será acentuar certas tendências que já vinham de antes, que obedecem a muitas causas e vão ficar mais fortes enquanto outras serão inibidas”. 

O economista Luiz Gonzaga Belluzzo destacou características inéditas desta crise se comparada a outros momentos difíceis da história, mostrando preocupação sobre sua profundidade e prolongamento caso não seja enfrentada de maneira adequada. E, assim, como Ricupero, destacou a importância de uma liderança condizente com o momento.

“Para falar do futuro próximo você vai ter que ter o mínimo de coordenação, e vou dizer o porquê. Por exemplo, os mercados de trabalho estão totalmente transformados; vai prosseguir esse avanço tecnológico. Precisaremos de um Estado muito bem constituído e muito bem fortalecido do ponto de vista da sua eficiência”.

Pensando em caminhos e soluções para o pós-crise, o filósofo João Carlos Salles, por sua vez, enalteceu a importância da universidade como um espaço fundamental de aposta da geração no futuro, complementada pelo educador Mozart Ramos, que assinalou os esforços e limitações de todos os sistemas e redes de ensino no Brasil.

“A pandemia trouxe uma aflição enorme, nós estamos vivendo uma situação de calamidade pública muito grave. Então, nesse sentido é muito importante que primeiro a gente tenha essa consciência do presente, dessa dimensão presente na qual a vida tem prioridade. E pensar como sairemos disso. Pensar cenários futuros se coloca como um desafio também para o tempo da universidade. A universidade é uma instância, é um animal mitológico muito curioso porque nele convivem tempos distintos; nós temos o tempo do ensino, o tempo da pesquisa, o tempo da extensão, da relação com a sociedade. E agora nós estamos sendo desafiados a fazer com que esses tempos distintos tenham uma organização harmônica para que as respostas não comprometam nossa natureza”, destacou Salles.

Para Salles, o tempo da universidade presencial e o tempo das ações remotas precisarão conviver.

Será impossível não utilizar mais e mais ações remotas. Mas temos que fazer isso garantindo a qualidade da universidade. A universidade não é um repositório de conteúdos disparados para as pessoas, é um lugar de formação, não é de informação simplesmente, é de formação, um espaço de convívio de gerações, de confrontação de ideia e de saberes.  Temos um desafio de como conciliar essas duas tecnologias. Existem procedimentos que devem ser atendidos para saber se está se garantindo a qualidade do ensino e de um ensino que, na origem, deve ter vínculo com a pesquisa e com a extensão. Lembre-se o princípio fundamental da autonomia das universidades: a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Será que nós podemos garantir isso no espaço remoto, no espaço virtual? Temos que sempre pensar como associado, ligado; o tempo desse espaço ágil que se estende além fronteiras deve estar bem alinhado, no âmbito da universidade, como um espaço fundamental de aposta da geração nossa no futuro.

Ainda no âmbito do sistema educacional como fundamental para lidar com a crise, Mozart Ramos destacou que alguns sistemas já tentavam trabalhar o chamando ensino híbrido, aplicando tecnologias diversas para mediar diferentes formas de ensino.

“A covid, de alguma maneira, acelerou isso. Estamos diante de uma realidade que está exigindo de nossa parte criatividade, abertura ao novo, capacidade de comunicação, mas ao mesmo tempo trouxe para a gente uma triste realidade que de certa maneira nós já sabíamos, mas que escancarou de vez a situação da desigualdade educacional no Brasil. Essa foi a parte mais cruel e triste porque estamos vendo, duramente, a desigualdade de capacidade de reação, de oferta educacional e como as nossas redes de ensino são desiguais e os nosso próprios sistemas de ensino. E qual é a sala de aula do século XXI? E nós acabamos de descobrir que não há uma única sala de aula do século XXI; teremos várias salas de aula, vários ambientes de aprendizagens e estarão à nossa disposição de acordo com a nossa capacidade de promover o desenvolvimento pleno de nossos alunos”.

O debate, em sua diversidade não poderia deixar de lado o viés cultural. Assim, iluminando a questão da arte em um momento tão delicado, o ator e diretor Sérgio Mamberti enfatizou a possibilidade geradora de reinvenção inerente à cultura, sendo mobilizadora do ideal de luta para construir, no plano real, a utopia da felicidade.

“Não me lembro uma crise tão aguda como a que estamos vivendo; é uma crise profunda e é mundial. É claro que aqui adquire uma dimensão extraordinária pelo tamanho da tragédia que estamos vivendo. Mas eu acho que o ser humano tem essa capacidade de se reinventar, vamos nos reinventar. Nesse sentido, é uma oportunidade para reconstruir um processo de um convívio do ponto de vista social político ou da cultura, que terá um papel marcante. O universo da ciência e todas as relações com cultura, educação e comunicação certamente terão papel preponderante nessa nova construção”.

 Os ex-ministros Ciro Gomes e Marina Silva abordaram, em suas respectivas participações, o momento crítico vivido pelo país  numa perspectiva mais política, como observadores privilegiados do campo democrático. Para Marina, apesar da dificuldade extrema em superar uma crise civilizatória, esse é o momento de buscarmos um novo modelo de desenvolvimento. Ciro, como sempre bastante crítico e enfático,  mas também apostando em uma melhoria futura, adiantou que seu novo livro tem o título de Projeto nacional e subtítulo O dever da esperança, ressaltando que a melhor forma de condicionar o futuro, ou seja, de ter esperança, é tomá-lo nas mãos agora e construí-lo.

Eu luto, e para lutar a gente acredita na possibilidade de virar o jogo, não é? Pessimismo é uma energia negativa que atrapalha a gente lutar. Mas otimismo às vezes é uma espécie de alienação. Eu sou realista, o Brasil tem tudo que é importante: território, base física, base humana, riquezas minerais, petróleo, base energética, biodiversidade, enfim, temos gente, temos tudo. O nosso problema é o fracasso explosivo da política, mas se a gente preservar a linguagem da democracia que é a política, uma hora dessas o povo vai achar o caminho. E eu vou lutar no meu limite para ajudar a acontecer”, ressalta Ciro.

Marina Silva discutiu quais seriam as vantagens humanitárias e civilizatórias que seremos capazes de produzir com toda essa avassaladora crise.

“Com certeza já esta colocado como um imperativo ético a necessidade de que os novos investimentos sejam feitos em bases sustentáveis; sustentáveis do ponto de vista ambiental, mas não só, também do ponto de vista econômico. Esses novos investimentos precisam ser feitos numa nova direção, que é a direção da sustentabilidade econômica, social, ambiental, política. Ética e eu diria que até mesmo estética e cultural. Se não formos capazes de mudar o modelo insustentável de desenvolvimento na forma de produzir e consumir, de fazer uso dos recursos naturais, de distribuir a riqueza, de nos relacionar uns com os outros, com a natureza e com a gente mesmo, nós vamos entrar em um colapso civilizatório - se é que já não entramos - no ponto de não retorno”.

Com a publicação dessas entrevistas na ComCiência, o leitor que não as acompanhou, anteriormente, terá motivações para, depois de lê-las, consultar no canal do IdEA no Youtube as demais palestras e entrevistas; os que já as leram ou assistiram, fica a proposta de leitura renovada e de renovação do contato com este ciclo de análise e de reflexão sobre o país e a grave crise que se abate sobre o Brasil.

Ilustração de Cris Vector