Reconhecida como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco, a capoeira guarda a herança e os saberes africanos reinventados por povos escravizados no Brasil, servindo como expressão viva contra o racismo.
Por Daniel Rangel
Imagem: Roda de Capoeira do Coletivo Cultural Capoeira de Valor, do Mestre Ferpa, em Campinas.
A roda de capoeira é um momento emblemático de manifestação cultural. No círculo, os participantes se reúnem em torno da música, do canto e do ritmo. O berimbau, construído com “um arame, uma cabaça e um pedaço de pau”, como lembram os versos entoados pelos capoeiristas, dita a cadência do jogo. O coro responde em cantiga de pergunta e resposta, palmas marcam o compasso, e ao “pé do berimbau” dois jogadores se cumprimentam antes de iniciar a dança-luta. O que se vê, então, é uma movimentação marcada por ginga, ataques, esquivas e acrobacias, onde o lúdico e o combativo se entrelaçam. Para quem observa de fora, pode ser difícil definir se aquilo é luta, dança ou brincadeira. A resposta é que é tudo isso ao mesmo tempo – e mais. Cada gesto, cada toque de berimbau, cada canto que ecoa numa roda é uma expressão viva contra o racismo e uma celebração da herança africana reinventada em terras brasileiras.
Essa multiplicidade de sentidos está no centro da reflexão do artigo científico “Cultural background and diversity: N’golo and capoeira in play”, publicado em maio de 2025 na revista Frontiers in Psychology. As autoras, Lívia Pasqua e Eliana de Toledo, analisam a capoeira como uma prática polissêmica: luta, dança, esporte, história, educação e jogo, capaz de unir diferenças de maneira harmoniosa. Para isso, recorrem a uma investigação documental e histórica, destacando as semelhanças e diferenças entre a capoeira e o N’golo (ou engolo), manifestação cultural angolana na qual homens se enfrentam em roda, ao som de palmas e cantoria, tentando atingir o adversário com os pés. Outras manifestações culturais de luta e dança também fazem parte do universo de práticas corporais africanas citadas no trabalho, como Bassúla, Cabangúla, Umudinhú e Cujuinha por exemplo, além de outras expressões encontradas na América Latina que tiveram origem na diáspora africana como o Maní ou Bambosá, em Cuba; a Luta de Bastão, no Haiti; e o Ladja, na Martinica.
Lívia Pasqua tem trajetória singular nesse campo. Professora adjunta do Departamento de Lutas e primeira mulher a ocupar a cadeira de Capoeira na Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, integra também o grupo Abadá-Capoeira, onde é professora. Seu percurso acadêmico e de capoeirista se entrelaçam em uma pesquisa que busca olhar para a arte em sua complexidade e ancestralidade.
Encantada desde o início pela magia da roda e pelos movimentos acrobáticos, Lívia dedicou seu mestrado e doutorado aos “floreios”, movimentos criativos e estilizados que traduzem a forma particular de cada capoeirista jogar. Essa sensibilidade aparece também no artigo publicado, cuja estrutura foi adaptada: a introdução tornou-se “abrindo a roda”, materiais e métodos viraram “como jogar na roda”, a discussão ficou “na roda: corpo-capoeira jogando com corpo-n’golo” e a conclusão, “terminando a roda ou talvez abrindo mais uma”. A ousadia quase esbarrou em resistências editoriais, mas acabou sendo aceita como expressão do estilo floreado da capoeira também na escrita acadêmica.
Comparar as semelhanças e diferenças da capoeira ao N’golo ajuda a compreender a amplitude de significados dessa expressão. Ambos compartilham elementos como a ginga, os floreios, as acrobacias e a variedade de golpes, cada uma com seu estilo próprio. Ao mesmo tempo, guardam diferenças importantes: o N’golo não utiliza berimbau, está ligado a ritos de passagem e, em sua origem, era restrito aos homens. A capoeira, por sua vez, incorporou música, filosofia e, ao longo do tempo, abriu espaço crescente para a participação feminina.
As raízes da capoeira também são exploradas no documentário Jogo de corpo: capoeira e ancestralidade, que acompanha a jornada do Mestre Cobra Mansa em Angola em busca de manifestações semelhantes à capoeira. O filme resgata a prática como elo entre corpo, memória e identidade afro-brasileira, destacando o N’golo como um de seus ancestrais. O trabalho traz imagens em que é possível observar semelhanças entre a capoeira e sua prima africana, mas também fica claro que são manifestações distintas, cada uma com suas características específicas.
A trajetória histórica da capoeira reforça sua potência como símbolo de resistência. Antes de receber da Unesco, em 2014, o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, a prática já havia sido reconhecida como patrimônio cultural brasileiro pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O ofício dos mestres de capoeira foi inscrito no Registro dos saberes, e a roda de capoeira no Livro de registro das formas de expressão.
Nascida da tragédia da escravidão, a capoeira foi moldada pela convivência forçada de diferentes povos africanos em senzalas. Ali, memórias corporais se entrelaçaram em movimentos que ganharam forma própria. Das senzalas, a prática se espalhou para os quilombos e depois para os centros urbanos, foi proibida e perseguida no Brasil e hoje circula pelo mundo em academias de variados países. A cada passo, permaneceu como gesto de resistência frente à opressão.
No campo educacional, a capoeira também se afirma como instrumento de transformação. Para Lívia Pasqua, seu potencial de formar cidadãos sensíveis e abertos à diversidade precisa ser cultivado. Na UFRJ, a disciplina de Fundamentos da Capoeira é obrigatória para todos os estudantes do curso de educação física. “Os alunos podem até não gostar da capoeira, mas é fundamental que conheçam as ferramentas que essa prática, que é tão importante na cultura brasileira, tem a oferecer”, explica a professora.
Outros pesquisadores também destacam esse papel formador. No artigo “Capoeira, herdeira da diáspora negra do Atlântico: de arte criminalizada a instrumento de educação e cidadania”, Mônica do Amaral e Valdenor dos Santos, da USP, discutem como a prática preserva e transmite conteúdos históricos e culturais negados ao povo negro. As músicas cantadas na roda expressam a luta pelo reconhecimento da cultura ancestral. Na Unicamp, uma pesquisa de doutorado em andamento também ressalta essa dimensão educativa. Conduzido por Luis Alberto de Souza, sob orientação de Norma Silvia Trindade de Lima, o estudo propõe a inclusão da capoeira nas aulas de arte do Ensino Fundamental II em uma escola pública do interior paulista. Diferentemente da abordagem esportiva comum nas aulas de Educação Física, o projeto integra a capoeira às linguagens artísticas como música, dança, teatro, artes visuais e artes integradas. O objetivo é desenvolver uma prática alinhada à Lei 10.639/03, que tornou obrigatória a inclusão da história e cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar.
As experiências pedagógicas realizadas com os estudantes exploraram múltiplas dimensões da capoeira. Em Artes Visuais, os alunos analisaram imagens históricas e produziram monotipias inspiradas nelas. Em uma campanha antirracista, criaram cartazes construtivistas com a capoeira como símbolo de luta. Em Música, conheceram instrumentos tradicionais e formaram “baterias” experimentais. Na Dança, exploraram improvisação e composição, transformando a sala de aula em roda criativa.
Para os autores, essas práticas evidenciaram a capoeira como abertura ao outro e celebração das diferenças, rompendo com paradigmas eurocêntricos e valorizando saberes afro-brasileiros. Ainda assim, os pesquisadores observam que, passados 20 anos da Lei 10.639/03, o tema segue pouco trabalhado nas escolas, muitas vezes restrito a datas comemorativas.
Para superar essa limitação no ensino, a capoeira aparece como ferramenta potente para tensionar currículos coloniais e eurocentrados, promover reflexão e estimular processos emancipatórios. Corpo que ginga, corpo que esquiva, corpo que canta: cada gesto carrega memórias e aponta para futuros possíveis. A roda de capoeira é, ao mesmo tempo, arquivo histórico e arma de resistência.
Daniel Rangel é formado e jornalismo e ciências, doutor em biotecnologia e monitoramento ambiental (UFSCar). Especialista em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.