Democracia e cidadania na sala de aula

Por Cristiane Paião

Da ilha de Marajó à periferia de São Paulo, professores criam cursos para promover a reflexão e a importância da participação política na democracia com crianças e jovens

Falar de democracia é também falar de cidadania, isto é, da compreensão do que são direitos e deveres para compor a sociedade. Conceitos complexos e bastante caros à ciência política, mas que precisam ser discutidos de forma simples e objetiva com crianças e jovens, buscando a reflexão crítica sobre a vida pública. Pensando nisso, professores de diferentes regiões do Brasil vêm tentando trazer este debate, com todas as suas complexidades, para dentro das salas de aula.

Em Breves, na ilha de Marajó, no Pará, a importância do diálogo e da busca pelo equilíbrio para a construção de uma sociedade democrática começa no ensino fundamental. Desde 2014, os estudantes da rede pública cursam a disciplina “Educação cidadã”, obrigatória conforme a lei municipal.

Um dos professores que trabalha com este tema é Fábio Acioli. Ele explica que um dos pontos fundamentais deste projeto é mostrar para os alunos que o comportamento político vai muito além de apenas saber em quem votar na época de eleição, mas, sobretudo, tem a ver com a forma de reivindicar políticas públicas para os governos, sejam eles quais forem. “Buscamos mostrar, inclusive, como podemos nos organizar para alcançar objetivos garantidos pela legislação e, até mesmo, os que ainda precisam ser criados, por novos projetos de lei”, destaca Acioli.

Ele conta que a disciplina surgiu da necessidade de empoderar crianças e jovens para exercer plenamente a cidadania. “Conhecendo nossa realidade, conseguimos intervir e modificá-la. Buscamos, por exemplo, combater o baixo Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e o baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de nossa região, discutindo e refletindo sobre políticas públicas destinadas a quem vive em situação de vulnerabilidade social”, explica o professor.

Atualmente, Acioli trabalha com as turmas do sexto ao nono ano da Escola de Ensino Fundamental Bom Jesus, da rede municipal de Breves. Como estratégia pedagógica, ele explica que tenta ensinar de forma dinâmica, com músicas e vídeos, mas também desenvolvendo projetos em que possa envolver pais e familiares, sobretudo com relação ao meio ambiente e à busca do desenvolvimento sustentável.

“Eu creio que os conteúdos que são trabalhados na disciplina reforçam os conhecimentos sociais do educando, fortalecem sua cidadania, reconhecendo seus direitos e deveres para que se tornem um cidadão pleno, participativo na sociedade, e possa construir sua própria história na comunidade em que vive, conhecendo todos os valores que regem a nossa Constituição”, conclui Acioli.

Da periferia para o palco do debate sobre o que é público

Outro curso que trabalha a importância da construção de uma sociedade democrática é o Juventude e Cultura Periférica: Trabalho e Cidadania realizado pelo Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ), em parceria com a União de Negras e Negros Pela Igualdade (Unegro). O objetivo é atuar principalmente com jovens das regiões periféricas das cidades paulistas. O projeto é financiando pela Secretaria Estadual de Cultura e Economia Criativa de São Paulo e é oferecido na modalidade de Educação a Distância (EaD).

“É preciso explicar para o Brasil o que é o Brasil, o que é o povo brasileiro, como se constituiu e porque temas como racismo e desigualdade são estruturantes para o que somos. Explicar, por exemplo, porque, quando vem a indignação em relação à eleição, o maior ataque é ao nordestino. Porque o Sudeste aprendeu a receber o povo nordestino para ser trabalhador subalterno, e naturaliza isso. Nós temos muitas situações para trabalhar com os jovens e isso é importante porque ele tem uma capacidade muito interessante de empatia, de se preocupar com questões que não são só para si. E o que nós precisamos no Brasil hoje é tentar construir um ambiente em que as pessoas não olhem só para a esfera privada”, ressalta o professor Euzébio Silveira de Sousa, presidente do CEMJ.

Conforme explica Euzébio, o CEMJ foi criado em 1984 para ser uma das organizações que iriam colaborar com a reconstrução da democracia no Brasil, após o período da ditadura. Começou com a responsabilidade de guardar grande parte do acervo sobre organizações juvenis, em especial da UNE (União Nacional dos Estudantes). Nos anos 2000, se transformou em um centro de estudos, para ajudar a pensar em políticas públicas para a juventude e, recentemente, ampliou sua atuação como centro de formação, estabelecendo parcerias com governos municipais e estaduais, além de universidades e instituições de pesquisa.

“Um dos pontos principais para a gente é o combate ao racismo. Uma parte das disciplinas é pautada justamente com esse formato de conscientização da juventude periférica preta, pensando como agente político crítico e, consequentemente, entrando no combate ao racismo dentro da questão mais reflexiva, mais contextual”, explica o professor Fernando Simões de Paula.

Para ele, que é negro, é essencial que os jovens entendam quem são e de onde vêm para que possam, de fato, participar da democracia. “O nosso jovem, hoje, enxerga o mundo com a lente dominante, e essa lente faz com que ele não avance e tenha um outro formato de reflexão, de acordo com as necessidades da elite. Então, é muito importante que ele pense sobre quem ele é nesse universo, para que tenha mais instrumentos, mais subsídios para discutir e entrar nesse debate”, conclui.

O curso procura articular conhecimentos teóricos, críticos, políticos e práticos, para que a inserção no mercado de trabalho mobilize vários tipos de conhecimentos que tornem esse jovem em um agente político. Envolve desde a temática racial ligada às questões de gênero, assim como a complexidade da cultura brasileira, com sua permanência da cultura africana.

“Para que ele saiba o que significa estar trabalhando como entregador de aplicativo, como agente cultural nos bairros da periferia, enfim, para que entenda o que significa estar em contato com instituições públicas e privadas, e quais são os limites em que essas questões são atravessadas pela história do Brasil, e por inúmeras desigualdades que afetam o nosso acesso aos direitos básicos, como trabalho, educação e cultura”, enumera Larissa Fontana, responsável pela disciplina “Classe, raça e gênero: desigualdades estruturais no mercado de trabalho brasileiro”.

Educação versus polarização político partidária

Ao contrário do que defende a frase, tão citada em conversas do dia a dia, segundo a qual “política, religião e futebol não se discutem”, os cursos de São Paulo e de Breves, no Pará, organizados em parceria entre o poder público e a sociedade, trazem justamente a importância da construção de um debate crítico, consciente e equilibrado, que busque o bem comum a todos os cidadãos.

“Mesmo com todas as divergências partidárias e conveniências políticas, é preciso manter o equilíbrio racional em termos do que é o melhor para o Brasil, para a sociedade. Por isso mostramos que é essencial que na democracia tenhamos a alternância de poderes entre os governantes, porque quando achamos que um não está bom, podemos votar e tirá-lo. A nossa visão enquanto educadores é de que os nossos alunos se fortaleçam como cidadãos conscientes e críticos, e também participem do movimento de modificação da sociedade”, destaca Fábio Acioli.

Antes de assumir a disciplina, em 2014, o professor Acioli já atuava nesse sentido em outros projetos, trabalhando os conceitos de “aluno cidadão”. Em 2007, foi premiado pelo Ministério da Educação por lançar no Marajó, na escola Emerentina Moreira de Sousa, em Breves, um projeto de reforço em turnos alternados que também trazia importantes formas de desenvolvimento social, como dança e futebol.

Antes da pandemia, participou do projeto Cineastas 360º, em que junto com os alunos gravou vídeos e documentários sobre a realidade de Breves, que chegaram a ser exibidos em 2019 uma Conferência da ONU, em Nova York.

“Ainda não retornamos com as gravações, mas realizamos manifestações públicas todos os anos nas ruas da nossa cidade. E distribuímos mudas de plantas da região para a população. Na escola, plantamos ipês amarelos, cor de rosa, brancos, além de mudas de Pau Brasil, que hoje estão grandes e robustas. Nosso objetivo é conscientizar a comunidade”, ressalta Acioli.

É o que também destaca o professor Euzébio, presidente do CEMJ. “Nós temos um problema de perspectiva, atualmente, que está latente e só vamos resolver isso na esfera pública. A nossa função no curso é trazer elementos de reflexão. Porque só vamos conseguir discutir racismo na esfera pública, não existe essa discussão circunscrita exclusivamente na família, nem sobre sexualidade. Esse é um debate civilizacional de como a sociedade vai se enxergar, e de como a gente encara a desigualdade”, ressalta.

Para Larissa, outro ponto central é mostrar como as desigualdades e hierarquias que observamos na sociedade são estruturantes para a formação, e estão, segundo ela, mais evidentes hoje, talvez, exatamente por essa sensação de “polarização”, embora sempre tenham existido no país. A saída, segundo ela, é mostrar para os estudantes que tudo é uma questão de perspectiva.