Desafios da educação profissional e tecnológica: novas faces dos mesmos problemas

Por Anthone Mateus Magalhães Afonso e Wania Regina Coutinho Gonzalez

Este artigo apresenta e discute alguns desafios da educação profissional e tecnológica (EPT) na atualidade. A partir de uma análise documental que compreendeu políticas públicas educacionais desenvolvidas desde o início de sua oferta no Brasil e algumas mudanças recentes, constatamos que os novos rumos sinalizados se aproximam de antigas apostas que já tinham sido superadas, o que nos conclama a redobrar a atenção e aprofundar as discussões quanto ao direcionamento da EPT no Brasil.

Breve histórico sobre a EPT e alguns desafios cumpridos

A EPT compreende, de acordo com o parágrafo 2º[1] do artigo 39 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei 9.394/1996, um amplo leque de atuação abrangendo os seguintes cursos:

Art. 39. [...]

2o [...] 

I – de formação inicial e continuada ou qualificação profissional;

II – de educação profissional técnica de nível médio;

III – de educação profissional tecnológica de graduação e pós-graduação (Brasil, 1996).

Observa-se uma grande complexidade nesse segmento da educação brasileira que oferta desde a educação básica, com cursos de formação inicial e continuada ou de qualificação profissional, passando pelo nível médio, com cursos de educação profissional técnica, até o nível superior com a educação profissional tecnológica de graduação e pós-graduação.

Enquanto política pública nacional, a educação profissional começou a ser ofertada no Brasil em 1909, quando a União criou as 19 escolas de aprendizes e artífices, uma em cada estado, através do Decreto 7.566, de 23 de setembro de 1909 (Brasil, 1909). Essas 19 escolas vinculadas ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio deveriam estar localizadas em cada uma das capitais dos estados da República, mas excepcionalmente a do estado do Rio de Janeiro foi instalada na cidade de Campos dos Goytacazes, berço do então presidente Nilo Peçanha.

Cabe o registro de que inicialmente a oferta nessas escolas era de ensino profissional primário e gratuito, com cursos para formar operários e contramestres. Destaca-se ainda que a criação dessa rede de escolas era voltada especificamente para a parcela mais desfavorecida da sociedade, conforme pode ser observado já nas considerações iniciais do decreto em tela:

Que o aumento constante da população das cidades exige que se facilite ás classes proletarias os meios de vencer as difficuldades sempre crescentes da lucta pela existencia;

Que para isso se torna necessario, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensavel preparo technico e intellectual, como fazel-os adquirir habitos de trabalho proficuo, que os afastará da ociosidade ignorante, escola do vicio e do crime (Brasil, 1909).

A criação de uma rede de escolas voltada especificamente para os menos favorecidos, com uma educação profissional, manual e prática, em oposição a uma rede de escolas voltada para a educação propedêutica, intelectual, destinada aos mais ricos, é criticada por diversos pesquisadores no campo da educação. Destacamos os estudos contemporâneos de Kuenzer (2007), Ciavatta (2013) e Brandão (2013) que identificam a dualidade educacional no Brasil, em diferentes níveis de ensino, e se contrapõem às propostas de criação de sistemas de ensino diferenciados para a classe dirigente e a classe trabalhadora.

Esse modelo de educação dual também é identificado em vários países capitalistas em todo o mundo. Na Itália, Gramsci já denunciara a dualidade educacional no século XX e defendia a escola unitária que deveria ser um tipo único de escola preparatória (elementar-média) que conduziria os jovens para a escola profissional, evitando a multiplicação e graduação dos tipos de escolas profissionais (Gramsci, 1978).

Destaca-se então um primeiro desafio para a EPT, que transcende desde a criação das primeiras escolas enquanto política educacional nacional: a superação dessa dualidade escolar.

Mais adiante, em 1942, as escolas de aprendizes e artífices foram transformadas por meio do Decreto 4.127, de 25 de fevereiro, em escolas industriais e técnicas, passando a oferecer a formação profissional em nível equivalente ao secundário (como era chamado à época o ensino médio). Ficava vinculado a partir desse momento o ensino industrial à estrutura do ensino do país como um todo, uma vez que os alunos formados nos cursos técnicos seriam autorizados a ingressar no ensino superior em área equivalente à da sua formação. A transformação em escolas técnicas federais (ETFs) veio apenas no ano de 1959, momento em que essas instituições ganharam autonomia didática e de gestão.

Em 1978, com a criação de três centros federais de educação tecnológica (Cefets) a partir da transformação das escolas técnicas de Minas Gerais, do Paraná e Celso Suckow da Fonseca (Brasil, 1978), o Ministério da Educação (MEC) concretizou o previsto em um acordo com o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird)[2] e efetivou duas políticas de cursos superiores de curta duração na rede federal de educação profissional: os de engenharia operacional e os de tecnologia. A partir desse momento, se tornava possível a oferta de cursos superiores de curta duração na rede de escolas federais de educação profissional.

Para Brandão (2013), a oferta desses cursos superiores de curta duração seria uma forma de continuidade à dualidade presente na história da educação das sociedades de classe, garantindo uma pequena elevação da educação para os mais pobres, em especial pela educação profissional. Seria uma forma de conter as pressões sobre o ensino superior no país: dos trabalhadores que concluem o ensino médio e da burguesia que necessita de trabalhadores com qualificação um pouco mais elevada, e atender aos interesses privatistas da nova burguesia de serviços educacionais com cursos superiores mais rápidos e mais baratos, sem se dedicar à produção de conhecimento.

Já na década de 1990, aliado ao modelo de desenvolvimento econômico emergente, o governo Itamar Franco promoveu a transformação das ETFs em Cefets através da Lei 8.948, de 8 de dezembro de 1994 (Brasil, 1994), instituindo o Sistema Nacional de Educação Tecnológica. A partir dessa transformação seria possível a oferta de cursos de nível superior nessas novas instituições.

Apesar de a Lei 8.948/1994 determinar que os novos Cefets deveriam ter a mesma regulamentação dos mais antigos, ou seja, Cefet BA, Cefet MA, Cefet MG, Cefet PR e Cefet RJ[3], definia também que as providências necessárias para a execução da lei se daria mediante decreto de regulamentação a ser publicado em até 60 dias. No entanto, o decreto foi assinado e publicado apenas três anos após a publicação dessa lei, em 1997 – Decreto 2.406, de 27 de novembro de 1997 (Brasil, 1997) – no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), “no contexto de uma série de decretos na área educacional que vieram antes e após a promulgação de nossa nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996” (Brandão, 2013). Dessa forma, apesar da transformação das ETFs em Cefets desde 1994, suas prerrogativas de atuação a partir da nova formatação (dentre elas a oferta de alguns cursos superiores) só foi possível no ano de 1997, após um conjunto de reformas executadas pelo governo FHC em toda educação, incluindo profundas mudanças no campo da EPT.

Esse movimento de mudanças na EPT, iniciado no governo Collor, passando por Itamar Franco e depois por FHC, redefiniu a oferta da educação técnica de nível médio e retomou a oferta da graduação tecnológica de curta duração no Brasil. Essas ações fizeram parte de uma grande reforma da educação profissional baseada em um discurso global patrocinado por agências internacionais e voltada para o desenvolvimento econômico do país. Estavam em jogo a necessidade de atendimento rápido às demandas do mercado por mão de obra bem como a urgência de expansão do ensino superior, com forte adesão e participação das instituições de ensino privadas, inclusive em outros níveis de ensino da educação profissional.

Como resultado dessas alterações na EPT, boa parte implementada no governo FHC através de decretos, portarias e resoluções utilizados como atalhos para implementação de políticas de governo de forma imediata, sem grandes discussões com a sociedade e suas representações, a educação profissional técnica foi separada do ensino médio, devendo ser desenvolvida de forma concomitante ou sequencial a ele, com certificações independentes. Ficava proibida a oferta de cursos técnicos integrados ao ensino médio, demonstrando um grande alinhamento do governo com o mercado de trabalho para a oferta de uma formação técnica rápida e sem grande aprofundamento, sepultando os anseios de uma formação profissional mais ampla, omnilateral ou politécnica tal como defendida por educadores brasileiros apoiados em propostas de Gramsci e Marx, dentre outros.

Também nesse período dos governos FHC foi retomada a oferta dos cursos superiores de tecnologia (CSTs), sem a devida regulamentação da profissão dos tecnólogos e a alteração da legislação de modo a garantir o reconhecimento dessa formação como de graduação para atuação profissional e para o prosseguimento dos estudos.

O desafio nos anos seguintes aos governos FHC foi o reestabelecimento da possibilidade de oferta de cursos técnicos integrados ao ensino médio, em um modelo de formação mais ampla e integral, e a regulamentação para reconhecimento dos CSTs como cursos de graduação, incluindo ações para melhor divulgação dessa formação e valorização dos profissionais formados.

Tais desafios só puderam ser superados ao longo dos governos do presidente Lula a partir de várias ações articuladas pelo MEC com outros ministérios.[4]

Também nos governos do presidente Lula é que observamos outro grande desafio lançado para a EPT: a ampliação da rede federal de escolas voltadas para a educação profissional. E essa ampliação se deu pela instituição da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica que criou os institutos federais de educação, ciência e tecnologia (IFs), através da Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008 (Brasil, 2008). A partir dessa lei, a rede federal foi reformulada, transformando ou integrando as ETFs e/ou Cefets em IFs, conforme definido na seção I do capítulo II. Em meio a um processo intenso de expansão da rede que previa a construção de centenas de novas unidades federais de EPT, esse ato garantiu maior organicidade e outorgou aos IFs criados, bem como à Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e aos Cefets Celso Suckow da Fonseca e de Minas Gerais (que optaram pela não transformação em IFs), maior autonomia administrativa, patrimonial, financeira, didático-pedagógica e disciplinar.

Essa Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica hoje é composta por 38 IFs e por instituições que não aderiram à mudança para IFs: dois Cefets, 25 escolas vinculadas a universidades, o Colégio Pedro II e uma universidade tecnológica (Brasil, 2016).

A Rede Federal conta com 644 campi em funcionamento. Segundo o MEC, de 1909 a 2002 foram construídas 140 escolas técnicas no país e entre 2003 e 2016 mais de 500 novas unidades referentes ao plano de expansão da educação profissional, totalizando 644 campi em funcionamento (Brasil, 2016).

No Gráfico 1 é apresentada a quantidade de municípios atendidos pela Rede, uma informação importante que demonstra o crescimento da capilaridade da EPT ao longo dos anos. Até 2002, apenas 119 municípios eram atendidos. Em 2010 esse número já tinha mais que dobrado, chegando a 321 municípios. Depois chegou a 511 municípios em 2014 e alcançou a marca de 568 em 2016, interiorizando a Rede e fazendo a EPT chegar a municípios que até então não contavam com qualquer iniciativa federal na educação. Considerando que o Brasil contabiliza o número de 5.570 municípios de acordo com o IBGE (Brasil, 2014), o governo federal alcançou uma importante marca: para cada 10 municípios do país, um possui campus da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.

Gráfico 1 – Quantidade de municípios atendidos com a expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica

Fonte: Adaptado de Brasil (2016)

Com esses desafios superados, a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica ampliou o número de vagas para a EPT, ofertando uma educação pública de qualidade desde o ensino básico até a pós-graduação, uma mudança de paradigma no Brasil. A rede de educação profissional para os “desfavorecidos da fortuna” se transformou em rede de excelência e referência, sendo o seu acesso também disputado por alunos das classes mais altas da sociedade, um dos fatores que levou à publicação da Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012 (Brasil, 2012), que definiu o estabelecimento de cotas para ingresso nas universidades federais e nas instituições de ensino técnico de nível médio.

Ainda por conta dessa forte capilaridade em todo o país, por chegar até o interior dos estados, a rede federal passa a atender as parcelas mais pobres que dificilmente teriam condições financeiras para se deslocar e permanecer em outras cidades que já ofertavam EPT ou ensino superior público de graduação.

Ao longo do primeiro centenário da EPT verificamos diferentes concepções de educação sendo defendidas e implementadas, com muitas idas e vindas, o que evidencia a dificuldade de um planejamento de médio e longo prazo com políticas duradouras e a favor de toda a sociedade. Isso fica ainda mais evidente quando verificamos os processos de construção e acompanhamento dos planos nacionais de educação de 2001-2010 e 2014-2024[5].

Apesar de todos os avanços da EPT ao longo dos seus quase 110 anos, continuamos com incertezas e grandes possibilidades de rupturas de grandes proporções a cada mudança governamental, mesmo com a instituição desses planos decenais de educação. Recentemente, com o impedimento da então presidente Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016, através do processo de impeachment iniciado em 2 de dezembro de 2015 na Câmara dos Deputados, significativas mudanças foram observadas no escopo da EPT, o que nos remete a novos desafios em um cenário de incertezas que passam pelo mandato do seu vice-presidente que assumiu em seu lugar e do próximo presidente eleito que tomará posse em 1º de janeiro de 2019.

Novos desafios para a EPT em um cenário de incertezas: o futuro flertando com o passado
Após ter assumido a presidência da República Federativa do Brasil, em 31 de agosto de 2016, o presidente Michel Temer iniciou o desenvolvimento de propostas de grandes reformas no campo trabalhista, da previdência e da educação.

No campo educacional, foi publicada a Medida Provisória (MP) 746, de 22 de setembro de 2016, que estabelecia a chamada reforma do ensino médio.

Sem profícuas discussões com a sociedade, pesquisadores e instituições de ensino, a proposta de uma mudança estrutural de grandes proporções no ensino médio do país, feita por meio de medida provisória, foi alvo de críticas e ganhou muito espaço na mídia. Seja pela incerteza ligada ao fato do que realmente era proposto, já que o projeto não foi amplamente discutido, sendo descortinado nas vésperas da publicação; seja pelas mudanças estruturais que afetariam todo o ensino médio bem como a educação profissional, muitas foram as manifestações contrárias às mudanças que novamente apontam para o antigo e recorrente modelo de uma educação dual.

Mesmo sob pressão de alguns setores da sociedade, a medida provisória foi convertida na Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Michel Temer. Alguns pontos, no entanto, conseguiram ser revertidos após grande pressão durante a tramitação pelo legislativo:

  • As disciplinas de sociologia, filosofia, artes e educação física que deixariam de ser obrigatórias no novo ensino médio de acordo com a MP voltaram a ser obrigatórias a partir da publicação da Lei (conforme § 2º do artigo 3º).
  • A ajuda financeira do governo federal para implantação de escolas de tempo integral pelos estados, que seria de apenas quatro anos conforme previa a MP, passou para dez anos na lei aprovada (parágrafo único do artigo 13).

Essa lei traz novos desafios para a educação, sobretudo para a EPT. Desafios que pareciam ter sido superados, mas que ressurgem num movimento de flerte com o passado. A aproximação é grande com o modelo proposto nos anos 1990, principalmente nos governos FHC onde foram feitas grandes mudanças a partir de instrumentos jurídicos abreviados e sem grandes discussões com a sociedade, uma justaposição com o mercado que exigia uma formação mais rápida e curta, tecnicista e voltada para a polivalência. À época, através de decretos e pareceres, e agora recentemente através de medida provisória, posteriormente convertida em lei.

O chamado “novo ensino médio” propõe a flexibilização da matriz curricular a partir da definição de itinerários formativos e terá como referência a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A proposta é de implantação gradativa de um ensino em tempo integral, com sete horas de aula por dia e 1,4 mil horas por ano após cinco anos.

De acordo com os itinerários formativos disponíveis, os alunos poderão escolher já no início do ensino médio qual a área em que desejam se aprofundar. De acordo com o artigo 4º da Lei 13.415, o artigo 36 da Lei 9.394 (LDB), de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 4º. [...]

Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber:  

I - linguagens e suas tecnologias; 

II - matemática e suas tecnologias; 

III - ciências da natureza e suas tecnologias;  

IV - ciências humanas e sociais aplicadas; 

V - formação técnica e profissional (Brasil, 2017).

Apenas o ensino de língua portuguesa e de matemática será obrigatório nos três anos do ensino médio, conforme definição do § 3º  do artigo 3º.

No escopo dessa nova proposta se faz importante o destaque de alguns pontos. Primeiro, que o novo ensino médio remete a uma formação em tempo integral, mas não integrada: a formação profissional seria fragmentada e desenvolvida na etapa final do ensino médio, ou seja, como uma das possibilidades de itinerário formativo. Isso remete ao modelo de educação profissional proposto na década de 1990, que não permitia a oferta de cursos técnicos de nível médio na forma integrada. Agora, com essa nova proposta aprovada, apesar da possibilidade de desenvolvimento junto ao ensino médio, esse seria apenas na sua etapa final: tal como um apêndice, algo sobreposto, que não contribui para uma formação mais ampliada, omnilateral.

Um segundo aspecto a se destacar é a possibilidade de escolha por parte de cada aluno do seu itinerário formativo. De acordo com suas aspirações profissionais técnicas ou de prosseguimento de estudos em nível de graduação, poderá escolher em qual área de ensino concentrará maior carga horária, desde que cumprida a BNCC. Esse ponto é visto pelo governo como uma das principais vantagens da nova lei, pois possibilitaria ao aluno o enfoque na área de maior interesse, o que tornaria o curso mais atrativo e diminuiria os índices de evasão escolar. De fato, a possibilidade de escolha por parte do aluno do que ele pretende cursar, respeitado o mínimo definido pela BNCC, tende a tornar o ensino mais atrativo num primeiro momento. No entanto, considerando que essa escolha será feita no início do curso, momento em que os alunos ingressam geralmente aos 15 anos de idade, grandes são as chances de arrependimento do caminho escolhido, o que poderia levar a um efeito reverso: do abandono por se arrepender da escolha do itinerário formativo feita no início do ensino médio. A questão que emerge é o quanto o aluno está preparado e convicto de suas escolhas ao ingressar no ensino médio para fazer essa escolha.

Um aluno, ao terminar o ensino médio, tendo escolhido um itinerário formativo que propicie um maior aprofundamento em ciências humanas e sociais aplicadas, poderia ter grande dificuldade em seguir uma carreira, por exemplo, da área das engenharias, tal como a engenharia elétrica.

Um terceiro aspecto é a possibilidade de oferta de diferentes arranjos curriculares de acordo com a “possibilidade dos sistemas de ensino”, conforme o artigo 4º da Lei 13.415. Apesar do forte discurso de igual oportunidade para todos, uma grande preocupação é sobre a capacidade de oferta que a rede pública de ensino terá. O receio é de que as escolas da rede particular ofereçam itinerários mais diversificados e completos em todas as áreas do conhecimento e que as escolas da rede pública, que normalmente sofrem com a falta de professores em determinadas áreas de conhecimento e investimentos de infraestrutura e laboratórios, acabem oferecendo um número bem menor de possibilidades, reforçando a histórica dualidade escolar.

Como o calendário de implantação do novo ensino médio é gradual e depende ainda da aprovação da Base Nacional Comum Curricular pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), muitas incertezas pairam sobre o modelo que será adotado pelo novo governo a se iniciar em 1º de janeiro de 2019. Em um país com tanta dificuldade no planejamento de médio e longo prazo, não se tem a certeza de que esse modelo em implantação será levado adiante ou o que poderia vir a substituí-lo. E, neste caso, qual seria a estratégia de implantação: se através de discussão com a sociedade ou de imposição de uma proposta pronta e superficialmente discutida ou colocada para consulta pública em um curto período, por exemplo.

De qualquer forma, está posto o desafio de como fazer uma educação integrada (e não apenas em tempo integral), mais humana, teórica e prática, intelectual e manual, omnilateral e nos princípios da politecnia no escopo da educação profissional em face desse novo modelo de ensino médio vigente; uma formação que não seja voltada apenas para as especificidades e particularidades das funções ocupacionais nas indústrias ou empresas, sob os interesses do capital; uma formação que vá muito além disso, que proponha formar o homem em sua totalidade.

Na graduação tecnológica, se faz necessária a continuidade de políticas públicas para a valorização dos tecnólogos e ampliação da oferta de CSTs garantindo um padrão de qualidade. Tão importante quanto isso é a ampliação da oferta desses cursos na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, como parte das ações de oferta de cursos superiores de qualidade em turno noturno para alunos trabalhadores, uma outra possibilidade frente aos cursos de engenharia que geralmente são ofertados em período integral, conforme verificado em Afonso (2017). Verificou-se também, nesse estudo, que apesar de as universidades privadas ampliarem a oferta de CSTs, alguns IFs têm diminuído a oferta desses cursos, o que poderia indicar a necessidade de uma política pública educacional de incentivo a essa oferta na rede federal, ou de cursos de engenharia noturnos, privilegiando os alunos trabalhadores que historicamente são atendidos. Um desafio que pode ser encarado diretamente pelos IFs a partir da sensibilização de suas comunidades em favor dos alunos que laboram durante o dia.

Independente do futuro que está por vir, precisamos resguardar o cumprimento do Plano Nacional de Educação com a superação do passado na busca de uma educação mais justa, pluralista, pautada nos princípios democráticos e do Estado de Direito, que de fato seja para todos, pois somente garantindo um mesmo ponto de partida poderemos um dia almejar o mesmo local de chegada.

Anthone Mateus Magalhães Afonso é doutor em educação. Professor do ensino básico, técnico e tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ. Líder do Núcleo de Pesquisas em Telecomunicações (NPT) do IF Fluminense. amateus@iff.edu.br / anthone.mateus@gmail.com

Wania Regina Coutinho Gonzalez é doutora em educação. Professora do programa de pós-graduação em educação da Universidade Estácio de Sá; professora adjunta da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (UERJ). Líder do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas e Gestão da Universidade Estácio de Sá. waniagonzalez@gmail.com

Referências

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Afonso, A. M. M.; Gonzalez, W. R. C. “Educação profissional e tecnológica no PNE 2014-2024: questões para o debate”. EccoS, São Paulo, n. 36, p. 67-83, jan./abr. 2015. Disponível em: <http://periodicos.uninove.br/index.php?journal=eccos&page=article&op=view&path%5B%5D=5548>. Acesso em: 04 nov. 2018.

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Kuenzer, A. Z. Ensino médio e profissional: as políticas do Estado neoliberal. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.

[1] Incluído na LDB pela Lei 11.741 de 16 de julho de 2008.

[2] A partir de um acordo do MEC com o Bird em 1971, ocorreu empréstimo neste banco para financiamento de um programa de ensino médio profissional e ensino superior de curta duração, incluindo a construção de prédios, laboratórios e equipamentos para essa oferta, bem como a preparação de recursos humanos.

[3] Criados pela Lei 6.545/1978 (Brasil, 1978), o Decreto 87.310/1982 (Brasil, 1982) que a regulamenta e a Lei 8.711/1993 (Brasil, 1993) que cria o Cefet BA e modifica a própria Lei 6.545/1978, ampliando a possibilidade de ensino superior nessas instituições.

[4] Para maiores detalhes das políticas públicas implementadas nesse período para a superação dos desafios da EPT sugerimos a leitura de Afonso e Gonzalez (2018).

[5] A esse respeito, sugerimos a leitura de Afonso e Gonzalez (2015; 2016a; 2016b).