Desafios da Política Nacional para a População em Situação de Rua: contradições na realidade de São Paulo, reflexões sobre o papel da mídia e a voz da Pop Rua

Por Ana Clara Vogt-Sampaio, Jonathas Magalhães Pereira da Silva e Vera Santana Luz

O fenômeno da população em situação de rua no Brasil tem apresentado uma trajetória de crescimento preocupante ao longo dos anos, evidenciando não apenas a persistência de desafios socioeconômicos estruturais, mas também a necessidade de revisão e reforço das políticas públicas voltadas para esse segmento vulnerável da população. A definição adotada institucionalmente pelo país, para este grupo, conforme delineado no Artigo 1º pelo Decreto nº 7.053 de 2009, abrange “indivíduos que utilizam os espaços públicos e áreas degradadas como espaço de moradia e sustento, de forma temporária ou permanente, e que possuem vínculos familiares interrompidos ou fragilizados”[1].

Especificamente na cidade de São Paulo, os dados mais recentes disponibilizados pela prefeitura indicam uma ampliação significativa desse fenômeno. Segundo a última pesquisa censitária divulgada pela Prefeitura Municipal de São Paulo, em 2021, a população em situação de rua alcançou um total aproximado de 31.884 pessoas[2], marcando um aumento expressivo em comparação com os 24.344 indivíduos registrados no censo de 2019[3]. Esse aumento de aproximadamente 31% em dois anos destaca sua intensificação em um curto período de tempo, refletindo as múltiplas facetas de crise habitacional, desemprego, desigualdade social, entre outros fatores contribuintes.

Ao analisar este cenário à luz do Decreto nº 7.053, promulgado em 23 de dezembro de 2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua, e da nova Lei nº 14.821 de 16 de janeiro 2024[4], percebe-se uma evolução no reconhecimento legal e nas diretrizes para a atuação estatal junto a essa população. O decreto de 2009 representou um marco inicial importante, estabelecendo as bases para a elaboração de políticas públicas integradas e a garantia de direitos fundamentais a esses cidadãos. O decreto visa assegurar à população em situação de rua, de maneira geral, o acesso a direitos sociais, à participação cidadã, a criação de condições para a promoção da autonomia e a inserção social e comunitária. Para tanto, recomenda ações intersetoriais envolvendo saúde, educação, habitação, assistência social, trabalho, segurança e renda. Conforme estabelecido pelo referido decreto, as instituições e programas destinados à população em situação de rua devem garantir, de maneira resumida: acesso amplo, simplificado e seguro dos programas, acessibilidade, salubridade, regras de funcionamento e convivência, distribuição geográfica, limite de capacidade, segurança, atenção e respeito com as pessoas com deficiência, respeito às condições sociais e diferenças de origem, alimentação nutricional para todos, atendimento humanizado, boa infraestrutura, atendimento universal, direito a convivência familiar, qualificação profissional e educação (Brasil, 2009).

A Lei nº 14.821 (Brasil, 2024), por sua vez, visa ampliar e consolidar os direitos e mecanismos de proteção, reconhecendo as necessidades específicas dessa população e promovendo iniciativas para sua reinserção social e econômica.

No entanto, apesar dos avanços legislativos e das intenções declaradas nessas normativas, os dados evidenciam uma realidade ainda distante dos objetivos propostos. O aumento contínuo da população em situação de rua em São Paulo e em outras partes do país sinaliza lacunas na implementação e eficácia das políticas públicas desenhadas para enfrentar essa questão. As dificuldades incluem, mas não se limitam, à escassez de recursos financeiros, à falta de coordenação interinstitucional efetiva e à insuficiente oferta de serviços essenciais, como moradia, saúde, educação e oportunidades de trabalho.

A mídia jornalística

Nesse contexto, a mídia jornalística desempenha um papel crucial na formação da opinião pública e na visibilidade do tema da população em situação de rua. A seleção do que é abordado ou não pela mídia sobre essa questão pode influenciar diretamente na percepção e na consciência coletiva sobre o problema, destacando a importância de uma análise crítica das narrativas veiculadas e da cobertura jornalística sobre o assunto.

Os resultados apresentados na pesquisa de dissertação de Ana Clara Vogt-Sampaio (2023), intitulada “A população em situação de rua, a mídia e as gestões municipais na cidade de São Paulo (1992-2019)”[5], refletem os diferentes enfoques dados pela mídia a respeito dessa população ao longo dos anos, a relação entre os acontecimentos com as gestões municipais e as políticas públicas de assistência social da cidade de São Paulo. As fontes primárias utilizadas são matérias publicadas em dois jornais brasileiros de grande circulação: Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo. Ambos os jornais são reconhecidos por alcançarem público amplo, apesar de se caracterizarem por inclinação conservadora. O período temporal investigado abrange desde a primeira matéria encontrada sobre o tema, em 1992, até a penúltima Pesquisa Censitária da População de Rua realizada pela Prefeitura de São Paulo, em 2019.

Foi analisado um total de 350 notícias, selecionadas com base na relevância do tema em questão. A pesquisa foi conduzida utilizando o sistema digital das duas plataformas, por meio da função de “busca avançada”, empregando três termos de filtro: “Moradores de rua”, “População em situação de rua” e “mendigo”. No total, 129 matérias foram sistematizadas em quadros analíticos, sendo 61 provenientes do acervo do Estadão e 69 do acervo da Folha de S. Paulo.

A pesquisa destaca que durante a década de 1990, a violência contra a população em situação de rua era um fenômeno pouco comum, ocorrendo esporadicamente. No entanto, houve uma ampla divulgação sobre a presença de uma arquitetura hostil, destinada a dificultar a permanência dos moradores de rua nos espaços públicos. Este procedimento de repulsa tornou-se parte integrante da paisagem urbana dessa época.

Entre os anos de 2001 e 2006, houve uma crescente divulgação sobre o aumento da população em situação de rua, juntamente com um recrudescimento na violência contra essa parcela da sociedade. Foram identificadas ações que afetaram negativamente esses indivíduos. A descentralização urbana e a melhoria “estética” da cidade tornaram-se formas subjetivas de perpetuar a exclusão social, em um certo viés higienista.

Durante o mandato de Marta Suplicy (2001-2004), houve um aumento significativo na divulgação de casos de violência contra a população em situação de rua, culminando no trágico evento conhecido como “Massacre da Sé” em 2004, no qual uma série de crimes foi cometida contra esses indivíduos, resultando em mortes e agressões nas ruas de São Paulo.

A presença da arquitetura hostil continuou a ser relatada com frequência na mídia, até o ano de 2012, acompanhada pela persistência da violência contra essa população. Durante o período entre 2007 e 2012, sob a gestão de Gilberto Kassab, houve um aumento nas agressões contra a população em situação de rua, devido à adoção de uma nova política que permitia à Polícia Civil Metropolitana de São Paulo tomar decisões mais agressivas em relação a esses indivíduos.

Entre 2013 e 2016, durante a administração municipal de Fernando Haddad, houve uma discussão intensa sobre os desafios enfrentados pela população em situação de rua, incluindo a exposição ao frio extremo, a falta de medidas de assistência adequadas e as chamadas “ações de limpeza” da cidade.

Entre 2017 e 2019, a maioria das notícias relacionadas à população em situação de rua continuou a se concentrar nas dificuldades enfrentadas durante os meses de frio, no aumento expressivo dessa população e nas medidas que impactaram negativamente os moradores de rua. Observa-se uma diminuição na incidência de relatos sobre arquitetura hostil, porém persistem as discussões sobre a insuficiência de assistência social e a precariedade das estruturas de abrigo oferecidas pela prefeitura de São Paulo para essa população.

As medidas adotadas pela prefeitura, conforme evidenciado ao longo da pesquisa, tendem a ser temporárias, focadas principalmente em oferecer abrigo durante a noite. Não foram identificadas políticas eficazes de construção de moradias, oferta de empregos ou encaminhamentos que possibilitassem uma reintegração duradoura dessas pessoas à sociedade. O estudo demonstrou a prevalência de exclusões e agressões disfarçadas enfrentadas pela população em situação de rua, sobretudo no que diz a respeito a ações públicas e de determinados segmentos da sociedade, que desfavorecem o acesso universal dessa população a abrigos adequados, relevando o descumprimento do Decreto nº 7.053 de 2009 em múltiplos contextos.

A voz da Pop Rua

As perspectivas e a participação ativa da própria população em situação de rua no debate é fundamental, visto que são eles os principais protagonistas dessa discussão. O jornal O Trecheiro[6], Notícias do Povo de Rua, foi o primeiro projeto implementado pela Rede Rua e se dedicou a denunciar as diversas situações de exclusão e violência enfrentadas por essa população. As matérias e notícias do jornal são divulgadas mensalmente em sua plataforma online e englobam diversos temas importantes para essa população em extrema vulnerabilidade.

Em uma das matérias publicadas em agosto de 2023[7] pelo jornal, mostra uma ação judicial (ADPF 976) proposta para o Supremo Tribunal Federal (STF) movida pelos partidos Socialismo e Liberdade (PSOL), Rede de Sustentabilidade e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que tem por objetivo apurar a situação desumana vivida por esta população diante da omissão estatal. Em decisão provisória proferida em 25 de julho do mesmo ano, o Ministro Alexandre de Moraes reconhece a inobservância das diretrizes estabelecidas na Política Nacional para a População em Situação de Rua, prevista no Decreto Federal nº 7.053/2009, e destaca a necessidade de abordar a questão de forma ampla e conjugada, considerando moradia, saúde, trabalho, renda e educação. O prazo de 120 dias foi estabelecido para que o governo federal, estados e municípios apresentem planos de ação que garantam a segurança, a dignidade e os direitos das pessoas em situação de rua, envolvendo medidas como a proibição do recolhimento forçado de bens, enfrentamento à violência e disponibilização de abrigos e itens de higiene básica.

Além de ser uma vitória para as organizações e movimentos sociais que trabalham há décadas na luta pelo respeito e a efetivação dos direitos fundamentais das pessoas em situação de rua, a decisão é um exemplo de conquista para toda a sociedade brasileira.[8]

A política nacional destinada à população em situação de rua visa assegurar dignidade e segurança para esses cidadãos, contudo, a realidade por eles enfrentada continua a ser desafiadora e, em muitos aspectos, desoladora. Em meio ao crescimento alarmante da extrema pobreza e do contingente de pessoas vivendo nas ruas da cidade de São Paulo, a cada ano, a expectativa seria de que o município garantisse, no mínimo, o acolhimento e a proteção necessários a esses indivíduos, em consonância com os princípios fundamentais de direitos humanos e justiça social.

No entanto, dados censitários, análises de notícias veiculadas na imprensa e os relatos diretos da população em situação de rua, expressos através de organizações como a Rede Rua, revelam uma realidade dura e muitas vezes negligenciada. Esses indicadores destacam falhas significativas na implementação e execução das políticas públicas voltadas para essa parcela da sociedade, expondo a ineficácia das medidas adotadas até o momento.

Diante desse panorama preocupante, é urgente que as autoridades municipais, estaduais e federais assumam sua responsabilidade de forma efetiva e adotem medidas concretas para enfrentar essa questão complexa e multifacetada, convocando toda a sociedade. É imprescindível que se promovam políticas públicas inclusivas, programas e ações concretas, que não apenas ofereçam abrigo temporário, mas também busquem soluções includentes, de curto, médio e longo prazo, garantindo-lhes dignidade, autonomia e oportunidades para uma vida digna.

Ana Clara Vogt-Sampaio é arquiteta e urbanista, mestre e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Católica de Campinas.

Jonathas Magalhães Pereira da Silva é arquiteto e urbanista, professor, doutor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Vera Santana Luz é arquiteta e urbanista, professora, doutora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Notas e referências

[1] Brasil. Decreto nº 7.053 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu comitê intersetorial de acompanhamento e monitoramento, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm
[2] São Paulo [Cidade]. Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Pesquisa censitária da população em situação de rua: caracterização socioeconômica da população adulta em situação de rua e relatório temático de identificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo – 2021. São Paulo, Qualitest, 2021. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZWE4MTE5MGItZjRmMi00ZTc yLTgxOTMtMjc3MDAwMDM0NGI5IiwidCI6ImE0ZTA2MDVjLWUzOTUtNDZlYS1iMmE4LThlNjE1NGM5MGUwNyJ9 .
[3] São Paulo [Cidade]. Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Pesquisa Censitária da População em Situação de Rua. São Paulo, Qualitest, 2019. Disponível em:  https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYzM4MDJmNTAtNzhlMi00NzliLTk4MzYtY2MzN2U5ZDE1YzI3IiwidCI6ImE0ZTA2MDVjLWUzOTUtNDZlYS1iMmE4LThlNjE1NGM5MGUwNyJ9
[4] Brasil. Lei nº 14.821, de 16 de janeiro de 2024. Institui a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua). Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/38165569/publicacao/38169832
[5] Vogt, Sampaio, A. C. A população em situação de rua, a mídia e as gestões municipais na cidade de São Paulo (1992-2019). 2023. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, 2023. Orientação: Jonathas Magalhães Pereira da Silva. Disponível em: https://repositorio.sis.puc-campinas.edu.br/xmlui/handle/123456789/16906
[6] Rede Rua. O Trecheiro. Disponível em: https://www.rederua.org.br/
[7] Ribas, L. M.; Torres, M. “Nada para a rua sem a rua”. O Trecheiro, v. 32, n. 285, ago. 2023. ISSN: 2965-1379. Disponível em: https://www.rederua.org.br/acervo-2023
[8] Idem, ibidem, p. 1.