Divulgadores de ciência são atacados por hackers e recebem ofensas após alertas sobre coronavírus

Por Mariana Hafiz, Matheus Vaz e Rafael Revadam

Jornalistas e cientistas viram alvo ao comunicar ciência e questionar posicionamento de Jair Bolsonaro durante a pandemia

O Brasil é um dos países latino-americanos mais hostis à imprensa, conforme indica o relatório do Repórteres sem Fronteiras "2019 World Press Freedom Index". Em março, essa hostilidade atingiu principalmente divulgadores de ciência. Ao utilizarem suas redes sociais para informar sobre o novo coronavírus e questionar algumas tomadas de decisão, como o próprio posicionamento do presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia da Covid-19, cientistas e jornalistas foram vítimas de ódio manifestado por injúrias, ofensas e tentativas de hackeamento das suas contas pessoais.

Os relatos são de jornalistas de ciência e cientistas divulgadores presentes em redes sociais e que atuam em plataformas como YouTube. Para especialistas ouvidos pelo projeto Lab-19, as agressões aos que informam sobre ciência em tempos de pandemia estão relacionadas a um movimento anti-ciência que vinha crescendo no país.

"Comecei a receber uns e-mails do Instagram solicitando resetar minha senha. Começou de manhã e quando foi à tarde já eram dezenas", relata o biólogo Hugo Fernandes. Membro do grupo ScienceVlogsBrasil, que reúne canais de ciência no YouTube, Hugo recebeu numerosos ataques após uma publicação na sua conta pessoal @hugofernandesbio — que tem dezenas de milhares de seguidores — na qual identificava falhas no pronunciamento do presidente Bolsonaro do dia 24 de março sobre política de isolamento. A partir da manhã do dia seguinte, foram 42 tentativas de hackeamento da sua conta no Instagram, 3 no Facebook, 2 no WhatsApp e, no último dia 02, na sua conta no Spotify.

Ele conta que frente aos ataques ele e seus colegas do ScienceVlogs protegeram suas contas com ajuda de profissionais de tecnologia e segurança da informação, mas o problema não afetou o ritmo do trabalho. "Cada pessoa que conseguirmos convencer de que não é um ‘resfriadinho’, que precisa ficar em casa e se cuidar, são potenciais vidas que estamos salvando. Não só daquela pessoa, mas de outras milhares que podem se contaminar porque uma pessoa resolveu sair de casa e menosprezar o problema", diz.

Ciência e política

Ataques voltados à ciência surgem a partir do momento em que pautas científicas viram assunto político, como é fundamental para determinar políticas públicas. Para Rafael Evangelista, pesquisador da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade ( Lavits ) ligada à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), parte do que movimenta essa violência está relacionada ao negacionismo, ou seja, movimento de negar fatos científicos a fim de confirmar uma crença pessoal.

"O grau de interseção entre os negacionistas climáticos e os negacionistas do novo coronavírus é enorme. Historicamente, esses grupos radicais, que normalmente vivem na margem, ganham força justamente no momento em que emerge uma parceria com os grandes negócios", afirma Rafael, que também integrou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das fake news no Senado.

Jornalista científica e pesquisadora, Sabine Righetti recebeu centenas de ofensas em momento semelhante, ao levar para sua conta pessoal no Twitter suas ressalvas quanto às manifestações de 15 de março incentivada pelo presidente Jair Bolsonaro em um momento em que a recomendação dos cientistas era que as pessoas permanecessem em casa para reduzir a velocidade de novos infectados.

Ela conta que há alguns anos é vítima de agressões online e que já teve reportagens sobre ciência para a Folha de S.Paulo atacadas antes da pandemia. Mas os tipos de ofensas mudaram. “A novidade neste momento são os ataques mais misóginos. Nunca tinha sido atacada com comentários sexuais, me mandaram até foto pornô pelo Twitter e pelo Facebook. Mensagens destacando muito o fato de eu ser mulher opinando”, detalha. As ofensas virtuais são de pessoas e de bots – abreviação de "robots" para se referir a perfis falsos comandados por softwares que simulam ações humanas na internet. “Não sei o que me decepciona mais, quando é um bot ou quando é uma pessoa", pondera Sabine.

Sabine ressalta que jornalistas mulheres sempre receberam mais ofensas que colegas homens, mas um diferencial é que agora esses ataques à imprensa e a jornalistas mulheres partem do próprio governo. "Alguns ataques vêm do próprio presidente, então é como se fosse uma legitimação", afirma. De acordo com o estudo da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o presidente Jair Bolsonaro foi responsável por 121 das 208 ocorrências registradas de ataques a jornalistas em 2019, feitos principalmente em declarações e entrevistas públicas do governo e em seu perfil no Twitter.

Cloroquina

Também alvo de ataques, a bióloga Natália Pasternak recebeu uma onda de ódio recente ao rebater declarações de Bolsonaro, nas quais apontava a droga cloroquina como uma possível cura ao novo coronavírus. “O problema não é o acesso à informação, é a compreensão da informação”, resume. Foi, aliás, a quantidade de ataques e informações errôneas na internet que motivou a criar, em 2018, o Instituto Questão de Ciência, uma entidade para combater a pseudociência e difundir o debate científico. Ela avalia que o caso da cloroquina – medicamento em fase inicial de testes divulgado como tratamento contra a Covid-19 – revelou que poucas pessoas têm um bom entendimento sobre como funciona um teste clínico.

Para Natália, a saída para a desinformação é o ensino, desde cedo, do pensamento crítico e racional para que as gerações aprendam sobre o processo da ciência. “Muito mais importante do que entender conceitos científicos, saber que a Terra é redonda, que fumar causa câncer de pulmão, é saber o porquê. Como os cientistas sabem disso? Quais são os processos da ciência?”, enfatiza.

Odiadores e o público

O fato da comunidade científica não ter o costume de falar com o público pode ser um importante fator para que as declarações de ódio intimidem os especialistas, avalia Natália. “Para os cientistas que estão fazendo este excelente trabalho, mas estão se sentindo intimidados e assustados com isso, se eu puder dar uma dica é: não leia os comentários. Eu só respondo comentários quando alguém me faz uma pergunta, quando alguém me xinga, eu vou responder o quê?”.

A bióloga também destaca que em casos de calúnia (acusar falsamente alguém de crime), injúria (xingamentos) e difamação (atribuir uma ofensa à reputação de alguém, mesmo que não envolva crimes), é importante a busca pelos meios jurídicos. "Procure um advogado e siga o caminho que ele indicar. Contrate um bom profissional porque vão hackear você”, sugere.

Os divulgadores ouvidos pela reportagem relataram que alguns colegas estão emocionalmente abalados diante dos ataques que vêm sofrendo. "Muita gente pode acabar desistindo de fazer divulgação e de se posicionar por causa disso", diz Sabine. Apesar do cenário negativo, Natália recomenda que cientistas valorizem o impacto para a sociedade sobre o trabalho de comunicar. ”Acho que a melhor maneira de lidar com esse ódio é realmente focar no seu trabalho, lembrar que o seu trabalho está levando informação de qualidade para as pessoas”, conclui.

Lab-19 é uma produção dos alunos e alunas da Oficina de Jornalismo  Científico II do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor-Nudecri/IEL/IA, da Unicamp, para cobrir a pandemia da Covid-19. Os textos desta série extraordinária são editados por Germana Barata e Sabine Righetti, professoras do curso.