‘Dizer o passado, conhecer o presente, prever o futuro: tal é a luta’: Nós e Maquiavel

Por Roberto Romano

Regis Debray escreveu para a revista Les temps modernes um artigo relevante, ainda para os nossos dias (1). Ele discute o tempo histórico , unido à ordem política, numa crítica severa e pouco exata de Antonio Gramsci. Segundo Debray quem acata o materialismo histórico se conforma diante das condições “objetivas” mundiais. Após o apocalipse revolucionário de 1917, os que desejavam acabar com a dominação capitalista sucumbiram às urnas, cujo perfume doutrinário exala o historicismo. Dado que o Final é definido –a sociedade sem alienações– o esforço reside em seguir as leis evolutivas obedecendo a aritmética do “mais” e do “menos”. Perder uma eleição afastaria o movimento do alvo, ganhar o aproximaria. Tudo é questão de tempo.

Contra semelhante aritmética eleitoral Debray recorda o kayrós, o tempo certo da ação. Não existe um processo garantido, cada ato em cada instante deve ser correto, ou surgem perdas políticas irreparáveis. Depois do foco guerrilheiro voltaram na esquerda as falas sobre as virtudes das eleições. No Brasil, a receita mostrou a que veio com a queda de uma presidente da república, a prisão de um líder popular. Após o soluço em favor dos “negativamente privilegiados”, o poder regrediu em todas as políticas sociais. Projetos para atenuar o combate ao escravismo existem no Congresso Nacional (eleito…). As urnas não mudaram o poder econômico e jurídico, nas mãos dos empresários e de juízes que não primam pela imparcialidade.

O imaginário do tempo vem de arcaicas formas culturais. Na Grécia surge Chronos, as horas diurnas e noturnas e a divisão em passado, presente, futuro e o Kayrós, átimo da decisão. O Aiôn envolve o Destino, o Eterno. Os humanos lutam nos três registros. Para sobreviver, elaboram técnicas que permitem captar as diferentes armadilhas temporais. Uma síntese do fato encontra-se no aforismo hipocrático: “Arte longa, vida breve”. A batalha pela vida exige saber e temporalidades (o Eterno figura a morte) (2).

Um símile usado por Maquiavel é a medicina. O exemplo está no Príncipe quando o assunto é o principado misto. O governante, nos embates cívicos, deve ser campeão dos fracos e diminuir os fortes. Os romanos “fizeram (…) o que os Príncipes sábios devem fazer, não apenas prestar atenção às desordens atuais mas às futuras, colocar sua habilidade para evitá-las; pois as prevendo de longe elas podem ser remediadas. Mas se esperarmos que elas se aproximem a medicina chega tarde, a doença se tornou incurável. E ocorre em tais casos como nos que têm febres permanentes que os consomem. Nelas, segundo os médicos, no começo o mal é fácil de curar e difícil de conhecer mas, não tendo sido reconhecido ou curado, torna-se fácil de conhecer, difícil de curar. O mesmo ocorre nos assuntos de Estado porque, prevendo de longe os males nascentes – algo possível apenas para o prudente – logo eles se remediam. Mas se, por não terem sido vistos, os deixamos crescer para que todos os vejam, não há mais remédio (…) o tempo expulsa tudo diante de si e pode trazer consigo o bem e o mal, o mal como o bem” (3).

Existem muitos comentários sobre os elos entre Maquiavel e a filosofia. As suas considerações sobre o tempo atraem acadêmicos rumo a Políbio e os ciclos sofridos pelas sociedades e poderes estatais, ἀνακύκλωσις (4). Gennaro Sasso aproxima Políbio e o Florentino, mas recebeu críticas porque no segundo há diferenças em relação à ἀνακύκλωσις. Em Maquiavel há uma liberação da fatalidade, salientando-se a intuição da “fundamental contrariedade das forças que agem na história” (5). Diz o Florentino: “Não ignoro que muitas pessoas pensaram e ainda pensam que Deus e a Fortuna regem o mundo de tal modo que toda prudência humana nada pode corrigir, donde se conclui que de nada vale tratar tais coisas, sendo preciso se submeter e deixar tudo governado pela sorte. (…) No entanto, não podendo admitir que o nosso livre arbítrio seja reduzido a nada, imagino verdadeiro que a Fortuna seja o árbitro da metade de nossas ações, mas ela deixa quase a metade sob nosso governo. (…) a Fortuna mostra potência onde não é ordenada uma virtude que a ela resista” (6). Maquiavel nomeia a Fortuna não como juiz que aplica a lei escrita, mas como um terceiro que profere sentenças sem leis grafadas. A noção de arbitragem tem longa história na política europeia, desde quando o Sumo Pontífice exercia autoridade suprema até a Paz de Westphalia. Alí a figura papal foi ignorada pelos Estados. A laicização do direito nacional e cosmopolita afastou o papel de mediador não ligado a leis escritas mas aceitas de universa (7).

Maquiavel entra nos assuntos internacionais no instante em que o poder da Santa Sé se atenua. Perdida a fiança divina, cabe ao embaixador criar uma imagem do Príncipe e de si mesmo para atingir alvos políticos. “Segundo Maquiavel a diplomacia é sobre representação em todas as suas formas; de fato, ela é sobre representações competitivas. Para representar um príncipe alguém deve aprender a representar a si mesmo. Para representar a si mesmo de maneira ´adequada´ alguém deve criar um simulacro de si mesmo, um boneco pelo qual pode falar. Tal boneco torna-se uma alegoria da representação, a representação de um representante, do qual as possibilidades e riscos são ao mesmo tempo –por assim dizer– para um outro e para si mesmo”. Segundo Maquiavel o embaixador  deve “ser um fabricante de ficções, um formador de eventos através da linguagem, um criador de vozes diferentes e versões. Ele controla situações para proteger a si mesmo e servir o seu príncipe” (8). Diminuído o religioso, aumenta a força da embaixada. Nos conflitos julgados pelo Papa o tempo tinha pausas que permitiam aos pactuantes decidir uniões e rupturas. Agora, a rapidez é a norma.

Com os poderes laicos vem a corrida para a guerra e a espionagem (9), o que exige de governantes e embaixadores maior astúcia e prudência . Como confiar no árbitro que pode dissimular (10) neutralidade mas tem interesses imediatos ou de longo prazo na coisa a ser julgada (11)? Ao falar da Fortuna como árbitro, Maquiavel retoma um imaginário milenar e esboça os dilemas políticos dos Estados que rumam para o reforço próprio ou sumiço enquanto poder autônomo (12). Era o caso da república florentina, ameaçada pela Espanha, França, Inglaterra, Holanda. Volto ao trecho do Príncipe sobre a Fortuna e a liberdade humana.

“Non di manco, perché el nostro libero arbitrio non sia spento…”. Maquiavel assume uma doutrina clássica na Igreja. Tal modo de pensar, posto nos textos de Paulo sobre a συνείδησις (syneidesis) (a consciência de si ligada a Deus) (13) foi ideado por São Justino (100 DC) . No capítulo 43 da Primeira Apologia (14) ele nega que os cristãos aceitem o Destino (15), pois cada um “segundo suas práticas (o termo usado é praxis) será castigado, punido ou receberá recompensa”. Se tudo fosse obra do Destino (ei kath’heimarmenèn panta ginetai) não haveria livre arbítrio (oute to eph’hèmin estin holôs: nada mais dependeria de mim). Se o Destino quisesse que uma coisa fosse boa, outra má, não haveria motivo para admoestações ou elogio. Se o homem não pode, pela livre escolha da vontade (proairesei eleuthera) evitar o mal e fazer o bem, ele não deve responder por seus atos. A prova de que o homem faz livremente o que é bom e pratica o mal é a seguinte : vemos o mesmo homem passar de um extremo a outro. Se fosse fatalmente bom ou mau não haveria contradição em seu proceder, ele não mudaria constantemente. Não existiriam homens virtuosos nem depravados porque o Destino seria a causa ao mesmo tempo do bem e do mal, seria contraditório consigo mesmo. Ou ainda seria preciso admitir (…) que o bem e  mal nada são e a virtude e o vício apenas opinião (doxa) A sã razão diz que aí está uma impiedade e odiosa injustiça. Para nós, o verdadeiro destino inevitável é a justa recompensa do bem e o justo castigo do mal. Deus não criou o homem como os outros seres – árvores e os quadrúpedes – que nada podem fazer livremente. O homem não mereceria recompensa ou elogio se, em vez de escolher ele mesmo o bem, fosse bom por natureza. Do mesmo modo não se poderia punir com justiça as suas faltas, se não fossem voluntárias”.

As frases acima acolhem relevantes temas da política ocidental. As últimas linhas atingem o desafio, posto na República e retomado por Etienne de La Boétie, sobre a ethelodoulia (16). Na época de Maquiavel o livre arbítrio é questionado com base em Santo Agostinho. Ao pecar o homem perde a força de ser livre (amissa libertas, nulla libertas). Vale a graça divina, não a vontade humana. Contra tal doutrina Tomás de Aquino retoma Justino:  “o homem possui o livre arbítrio; caso contrário os conselhos , as exortações, os preceitos, os interditos, as recompensas e os castigos seriam vãos” (17). Em sentido oposto erguem-se Lutero, Calvino, Hobbes, jansenistas de várias tendências (18). Dada a herança agostiniana da Reforma, Maquiavel vai contra a modernidade, mas sua concepção do livre arbítrio e do tempo expõe a teoria mais secular da vida política.

A noção do tempo em Agostinho desuniu os defensores do livre arbítrio e os da Graça. Para ele teria existido no Paraíso (antes do tempo) a livre escolha entre Deus e o Nada. Feita a opção os homens caíram na passagem inexorável dos instantes, cuja parada ocorre no Paraíso ou Inferno (19). “Nem o futuro nem o passado existem. Não é apropriado dizer ´existem três tempos, o passado, o presente, o futuro´ (…) Porque os três tipos de tempo existem na alma (anima) e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a espera” (20). O tempo se dilata ou restringe segundo a nossa alma: “Como são os dois tempos, o passado e o futuro, se o passado não é mais e o futuro não é ainda? Quanto ao presente, se ele fosse sempre presente, seria a eternidade. Logo, se o presente, para ser do tempo, deve se unir ao passado, como poderemos declarar que ele é também, ele que só pode ser deixando de ser?” (21). O ser humano vive no tempo irreversível e não tem mais livre arbítrio para seguir ao Eterno (o que só ocorre pela Graça). O passado e o futuro não existem. O presente existe mas desaparece no átimo em que surge (22). A salvação reside no Eterno, donde a falácia do livre arbítrio –imerso no tempo– e a distância entre a Cidade de Deus e os Estados (magna latrocinia) (23).

Por conservar o livre arbítrio e a confiança na história Maquiavel assume o ser humano na sua finitude errática e fluída, numa natureza feroz a ser dominada pela política, a única garantia do coletivo e dos indivíduos. O tempo, corrente inexorável, não significa a morte, mas permite ao Estado se dirigir para vários rumos, nem sempre os piores. Para bem usar o tempo é necessário aproveitar o Kayrós, instante oportuno. Para vencer o arbítrio da Fortuna e as perversões dos Estados existentes, fugir do tempo é a pior escolha, oferecida pela Igreja. Na Itália a Santa Madre reivindica a Civitas dei e as possessões temporais, tingidas por corrupção pior do que a dos grandes latrocínios (24). O jogo entre Eterno e temporal mostra a contradição da Ecclesia, poder que impede os italianos de se tornarem unidos e livres, pois favorece o jugo estrangeiro (25). Para o livre arbítrio faz-se necessária a prudência, arte de captar o presente, o passado, o futuro. O tempo é denso e deve ser obedecido para ser dominado (26).

Atentemos para a mudança das visões sobre a prudência no Florentino. O tempo marca, nas três faces, os eventos nos quais age o indivíduo ou coletivo (27). A prudência atenua a Fortuna e seu arbítrio. A Igreja não guardou apenas as doutrinas de Agostinho sobre o tempo. Levada, pela queda do Império romano do Ocidente, ao controle de terras italianas ela manteve a doutrina do Eterno, acrescida das obrigações temporais que dela exigiam realismo sórdido. Tal via levou Carl Schmitt a defini-la como um complexio oppositorum. Ela recolhe doutrinas e práticas opostas, mas elabora uma política que garante a sua própria sobrevivência institucional. O primeiro livro sobre a razão de Estado, com semelhante nome, foi escrito por um sacerdote, Giovanni Botero. Magnífica percepção do tempo histórico e tempo eclesiástico, nas contradições do mundo estatal e político, temos em Lampedusa: “Vivemos numa realidade fluída à qual buscamos nos adaptar como as algas se dobram na beira do oceano. À Santa Igreja foi prometido explicitamente a imortalidade; para nós, como classe, não. Para nós um paliativo que promete durar cem anos equivale à eternidade. Podemos talvez nos preocupar pelos nossos filhos, talvez pelos nossos netos; mas além de tudo o que esperamos acariciar com nossas mãos, nada nos obriga; não posso me preocupar com o que será dos meus eventuais descendentes em 1960. A Igreja, sim, deve se preocupar, porque está destinada a não morrer. No seu desespero está o conforto. E o senhor acredita que se ela pudesse ou se poderá no futuro salvar a si mesma com o nosso sacrifício, não o faria ? Com certeza o faria, e faria bem”. Belíssimo truque aplicado pela Igreja, pois o Eterno garante sua atividade no tempo (28).

Maquiavel golpeia o religioso que almeja dirigir o mundo. Ele afasta a dicotomia entre Eterno e tempo, radicaliza a secularização dos laços sociais e jurídicos. O político se orienta na história que, sem o arrimo da estabilidade celeste, mostra-se desafiadora. Daí a prudência como controle do tempo e das formas estatais nascentes. Erwin Panofsky tematiza um quadro de Tiziano (29). A tela reúne três faces de homem em momentos diversos. Agora leiamos o Principe sobre a prudência: “O prudente senhor não pode manter sua fé e tal observância lhe traz prejuízos se as causas que o levaram a prometer sumiram” (cap. xviii) (30). E pouco antes: “Porque dos homens se pode dizer geralmente que eles são ingratos, mutáveis, dissimulados, inimigos do perigo, ávidos de ganho; enquanto fazes bem a eles, são teus, te oferecem seu sangue, bens, vida e filhos (….) mas quando a precisão se aproxima, fogem. E o príncipe que confia apenas na sua palavra perde outros preparativos, está perdido” (31).

Não se trata, como deduziram os maquiavelistas como Gabriel Naudé, de não ter confiança na multidão. sim, o povo é fluído, inconstante como o tempo e a Fortuna (32), caça dos demagogos (33). Ele é enganado por escritores venais, milagreiros, propaganda. F. Meinecke recorda o dito de Naudé segundo o qual um soberano, com doze bons oradores, faz-se obedecer melhor do que ao usar exércitos. Maiores matizes encontramos em Maquiavel. Os Discorsi (I, 58)  mostram que o povo pode ser mais prudente e constante do que um príncipe. O capítulo sobre a fluidez da massa e do príncipe, tema antigo, das diatribes platônicas aos nossos dias, recebe uma torsão (34). Livio sublinha o caráter inconstante da plebe em Ab urbe condita (XIV, xxv): “Eis a natureza da multidão, quando serve humildemente ou governa de modo arrogante”. Continua a frase : “Quanto à liberdade, que está no meio termo, ela não a pode assumir ou manter com moderação” (35). Maquiavel corrige o romano: “A ligeireza da qual os escritores acusam a multidão também é defeito dos indivíduos e mais particularmente dos príncipes, porque todos os que não são retidos pelo freio das leis cometem os mesmos erros da massa desenfreada”(36). O povo, como o príncipe, pode ser vítima da Fortuna. Ele desempenha seu labor cívico se está saudável. Adoecido pelas quimeras do Eterno e pela falta de unidade, se corrompe com o governante. Tudo depende da crise social ou política (37). Se o povo e o líder não diagnosticam malefícios em sua gênese, tendem a ser dominado pelas doenças que os enfraquecem. A sua história, fornece instrumentos para sanar defeitos, em tempo certo.

Segundo Luigi Zanzi (38), o Florentino propõe a virtude oposta à corrupção política. O remédio encontra-se em Platão e Aristóteles, mas evoca médicos cuja arte é somada à dos historiadores. Os textos maquiavélicos reúnem observação e experiência, unidas à lógica probabilística que permite diagnoses. O seu pensamento desvela explicações causais do passado. Trata-se de explorar evidências trazidas pelos experimentos históricos, criticar tais evidências com a história, garantir ações futuras. Ao examinar eventos do passado e do presente, Maquiavel constrói uma casuística com base no provável. “Com ele cumpre-se a passagem (…) rumo à reconstrução historiográfica da experiência passada para obter uma explicação idônea, útil experiência do pretérito. Uma só racionalidade preside, em tal sentido, seja para compreender o passado seja para intervir no futuro. ´É preciso sair do presente e reconhecer o passado para prever o futuro´”.

A citação sobre o método de Maquiavel retoma o escrito hipocrático da Antiga Medicina (Epidemia, I, 11). O texto grego ensina : “Dizer o passado, conhecer o presente, prever o futuro: tal é a luta” (λέγειν τὰ προγενόμενα, γινώσκειν τὰ παρεόντα, προλέγειν τὰ ἐσόμενα: μελετᾶν ταῦτα). As três faces do tempo permitem agir de modo certo, no momento certo, com a técnica certa. Mais interessante é a continuidade do trecho hipocrático, após tantos símiles do príncipe com o médico (abusados por Platão). Em se tratando de mazelas, diz o escrito, “é preciso fazer um hábito de duas coisas: socorrer, ou pelo menos não prejudicar. A técnica possui três fatores, a doença, o paciente, o médico. O médico é o servo da técnica. O paciente deve cooperar com o médico no combate à doença” (39). Se a república adoece de corrupção não basta, para salvá-la, um especialista platônico, médico ou príncipe. É preciso revolver o passado do povo com o mesmo povo, conseguir que ele opere nos negócios coletivos. Tal é a arte de governar segundo Maquiavel. Após a inspeção de Maquiavel, termino com o que iniciei, as teses de Regis Debray sobre o tempo da ação e a História. Seguem-se alguns pontos:

1) Após a URSS, a vida internacional procura técnicas para mudar o status quo capitalista.

2) Não ocorreu, nas hostes democráticas, uma análise ampla do seu próprio passado, erros e acertos, salvo trabalhos acadêmicos parciais.

3) Houve uma capitulação diante de conservadores e neoliberais, voltados para a ortodoxia econômica (ajustes fiscais, cortes nos investimentos em políticas públicas, nulificação de direitos).

4) Passadas as revoluções e a Guerra Fria, retornam as eleições como via para as mudanças sociais e políticas. São assumidas doutrinas administrativas que tendem a manter dogmas das finanças em detrimento das populações acuadas pelo desemprego, miséria, ausência de políticas públicas.

5) As autocríticas do pensamento progressista deixam de lado eventos graves, em desvios dos movimentos para favorecer dirigentes e aliados.

6) Tudo se passa, após meio século do artigo escrito por Debray, como se retornasse a Guerra Fria (sob Trump) sem a bipolarização entre capitalismo e socialismo que abriu oportunidades, no século 20, para desequilibrar a balança em prol das populações.

7) No Brasil, em governos com rubrica progressista, e no governo e meio que terminou em golpe branco de Estado, foi reforçada a aliança com a direita política, as forças empresariais retrógradas, finanças neoliberais.

É tempo de encarar a tarefa proposta por Maquiavel e definida nos hipocráticos: “Dizer o passado, conhecer o presente, prever o futuro”. Fora tal atitude, resta a desculpa da Fortuna, o suicídio no Messianismo que confia em taumaturgos e isenta governantes e governados, afasta o livre arbítrio sem que o “ adoecido” povo possa colaborar para a sua própria cura.

Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva).

Notas

(1)“Notes de Prison”, Les temps modernes, número 287, junho-1970, pp. 1942 ss.

(2) Ὁ βίος βραχὺς, ἡ δὲ τέχνη μακρὴ, ὁ δὲ καιρὸς ὀξὺς, ἡ δὲ πεῖρα σφαλερὴ, ἡ δὲ κρίσις χαλεπή. Vida breve, arte longa, ocasião temerária, experiência perigosa, ajuizamento árduo. Temos aí os registros do tempo: o da vida, célere, o das técnicas lento, o do kayrós incerto, a experiência que leva ao bom resultado ou ao péssimo, o juízo difícil de atingir. Maria Sylvia Carvalho Franco tem trabalhos inéditos sobre o elo entre política e medicina hipocrática que podem ajudar na interpretação do pensamento renascentista. Para outra linha, cf. Luigi Zanzi: I ´Segni´ della natura e i ´paradigmi´ della storia (Manduria, Lacaita Editores, 1981).

(3) Il Principe, III, De principatibus mixtis, Il principe di Niccolò Machiavelli, (Torino, Einaudi, 1961). p. 5 e ss.

(4) Em Políbio, as formas de poder seguem a natureza, da monarquia à realeza, tirania, aristocracia, oligarquia, democracia e oclorocracia. A corrupção é nelas imanente, indo das melhores às piores. A Fortuna em Maquiavel é aproximado de tal esquema em Gennaro Sasso: Machiavelli e gli antichi e altri saggi (Milano, Riccardo Ricciardi Ed., 1987).

(5) Zanzi, Luigi: I ´segni´ della natura e il ´paradigma´ della storia, il metodo del Machiavello, ed. cit.

(6) Principe , XXV : “Quantum fortuna in rebus humanis possit, et quomodo illi sit occurrendum” Il principe di Niccolò Machiavelli, (Torino, Einaudi, 1961).

(7) Roberto Romano, “A paz de Westphalia’, in Magnoli, D.: História da Paz (SP, Contexto, 2008).

(8) Hampton, Timothy: Fictions of Embassy (Ithaca, Cornell University Press, 2009).

(9) O soberano deve ser “warned” e “forearmed”. Sem os dois requisitos, ele pode ser surpreendido pelos inimigos, perde o momento oportuno. Para saber os planos dos adversários, espiões agem como aranhas cujas teias são armadas para colher os movimentos alheios. cf. De cive, Ed. by Bernard Gert (Cambridge, Hackett Publishing Company, 1991).

(10) Trabalho desde longa data, no trato da Raison d´état, com o conceito de dissimulação. Também: Eliav-Feldon e Herzig Tamar (eds): Dissimulation and deceit in early modern Europe (New York, Palgrave macmillan, 2015).

(11) O problema foi posto por Rohan em De l ´interêt des princes de la chrétienté (Editado por Christian Lazzeri, Paris, PUF, 1995)

(12) Para a arbitragem antes e depois de Maquiavel, cf. Evans, Robert e Wilson, Peter (org.) : The Holy Roman Empire, 1495-1806, a European Perspective ( Leiden, Koninklijke Brill, 2012).

(13) Lecler, Joseph : Histoire de la tolérance au siécle de la réforme (Paris, Albin Michel, 1994).

(14) Justin, Apologies, texte original et traduction par Louis Pautigny (Paris, Alphonse Picard et Fils, ed. 1904).

(15) Para ambos os termos importa Gundel. W. : Beiträge zur entwickelungsgeschichte der begriffe Ananke und Heimarmene (Giessen, 1914).

(16) Carvalho Franco, Maria Sylvia : “Servidão Voluntária, crítica aristocrática à Tirania” (manuscrito). Folha de São Paulo, Caderno Letras, em  14/04/1990 : “La Boétie formula Crítica à Tirania”. Schachter, Marc D. : Voluntary Servitude and the Erotics of Friendship (Ashgate Publisihin Limited, 2008).

(17)Suma teológica, I, q. 83, a. 1.

(18) A disputa de Erasmo e Lutero. Cf. E. Gordon Rupp e Philip S. Watson: Luther and Erasmus, free will and salvation ((Philadelphia, Westminster Press, 1979). Sobre o livre arbítrio, em especial nos jansenistas, cf. Sainte Beuve, Port Royal (La Pléiade, de 1953 a 1955).

(19) Agostinho, Confissões, livro XI, Capítulos 20 – 28.

(20) Confissões, XI, 28.

(21) A fluidez temporal é tema comum no Renascimento e Barroco. Poetas e escritores ampliaram a noção do tempo que tudo consume e destrói, se o homem não aproveita o Kayrós. Em Ricardo 2, o rei perde o trono por confiar no Eterno (e seus anjos). A comparação da vida ao tempo e à música sempre espanta : ““Rá, rá, conservem o tempo ! Como é amarga a doce melodia quando o tempo se quebra e a proporção some! Assim é a música da vida humana. Tenho boa audição para notar o tempo fraturado numa corda solta. Mas quanto à concórdia de meu Estado e tempo, não tive ouvidos para escutar meu verdadeiro tempo dissonante. Gastei tempo e agora o tempo me consome. Porque agora o tempo fez de mim seu relógio numeral. Meus pensamentos são minutos e com suspiros eles batem seus mostradores em meus olhos, o mostrador externo onde meus dedos, como os ponteiros, limpam minhas lágrimas”. (Ato 5, cena 5). Muitos outros dedicaram textos ao tempo e à sua devastação, como Edmund Spencer (The ruins of Time). Também no The Faerie Queen, Livro 7, Two Cantos of Mutabilitie. O poema de Camões, sobre os tempos e as vontades que passam, tem companhia numerosa. À obsessão política com o tempo Maquiavel deu resposta fina. Para os elos entre Shakespeare e Maquiavel, além do clássico de Jan Kott (Shapeskeare our contemporary), cf. Grady, Hugh : Shakespeare, Machiavelli, & Montaigne, power and subjectivity from Richard II to Hamlet (Oxford, Univ. Press, 2002).

(22) Confissões, XI, 14

(23) A falta de confiança na política, disseminada por Agostinho, medrou na cultura ocidental. Muitas lutas contra a corrupção, sem o saber, herdam a ojeriza ao tempo histórico e à política. “Tão desacreditada estava a palavra política que, para Montesquieu, equivalia à uma arte sem lealdade e sem honra. ´É inútil a tentativa de tratar a política diretamente´, começa Montesquieu, ´mostrando até que ponto ela contradiz a moral, a razão, a justiça´. Pois a política existirá enquanto existirem paixões que se mantenham independentes das leis”. (F. Meinecke, Die Entstehung des Historismus, (Munich, R. Oldenburg, 1936).

(24)Sátira da contradição eclesiástica –ter as chaves do Eterno e possuir pode temporal– foi realizada por um próximo de Maquiavel na secularização, a Julius Exclusus e coelis de Erasmo. O autor caçoa do papa guerreiro e representante do Eterno. cf. “Jules à qui on refuse l ´entrée” in Erasme, Oeuvres choisies (Paris, Librairie Générale Française, 1991).

(25)Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, I, 12. Opere, i, Pléiade (Einaudi, Gallimard, 1997).

(26)Lefort, Cl.: Machiavel, le travail de l ´oeuvre (Paris, Gallimard, 1986).

(27) Thierry Ménissier. “Lefort lecteur de Machiavel : le travail continué de l’oeuvre”in Revue Française d’Histoire des Idées Politiques, L’Harmattan, 2017. <halshs-01661672>

(28) Il Gattopardo (Milano, Feltrinelli, 1957), p. 50

(29) Principe, capítulo XVII.

(30) l´Allegoria della prudenza in Il significato nelle arti visive (Einaudi, 1962).

(31) Principe, cap. XVII.

(32) Meinecke, F. : L´idée de la raison d´État dans l˜histoire des temps modernes (Genève, Droz, 1973), p 181 e ss. cf. Pois, R.A. Friedrich Meinecke and Germain Politics in the Twentieth Century (Univ. California Press, 1972).

(33) Considerations politiques sur les coups d´État (Suivant la Copie de Rome, MDCCXII).

(34) Da bibliografia sobre a fluidez da massa retenho o volume de Yavetz, Zvi : La plèbe et le prince Foule et vie politique sous le Haut Empire romain (Paris, la Découverte, 1984).

(35) Cf. Hammond, Paul; Milton and the people (Oxford University Press, 20140. p. 36 e ss.

(36) Principe, Opere I, (Einaudi-Gallimard, T. I) , p. 316.

(37) Cf. os comentários de Carl Schmitt sobre o desprezo votado por Maquiavel às coisas “feitas pela metade” em política. Cf. Schmitt, Carl: Machiavel Clausewitz, droit et politique face aux défis de l´histoire (Paris, Krisis, 2007).

(38) I ´segni´della natura e il ´paradigma´della storia; Il metodo del Machiavelli, ed. cit.

(39) Hippocrates, De morbis popularibus (W.H. Jones, ed.) Site Perseus