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Reforma universitária e avaliação

Maria Helena de Magalhães Castro

O ensino superior é um dos campos onde a comparação internacional faz todo sentido. Não só as universidades constituem um tipo milenar e universal de instituição, como têm sido sede privilegiada da produção científica de domínio público, publicada internacionalmente, e depara-se com pressões e realidades irreversíveis de internacionalização. O ensino superior tem sido um dos setores de maior dinamismo e experimentação desde os anos 80, quando se iniciou a última onda de reformas sistêmicas em países que vão da Inglaterra e países da Commonwealth, Holanda, Dinamarca e países nórdicos, até vários da Europa Oriental, o Chile na América Latina, Índia, África do Sul, entre outros.

A necessidade inicial dessas reformas foi expandir o sistema, (ampliando a cobertura na faixa etária e o atendimento a populações adultas) e promover maior transparência e sintonia com as demandas sociais e interesses nacionais, em contextos de inelasticidade do financiamento público. A lógica foi a de que universidades auto-reguladas seriam capazes não apenas de gerar as receitas necessárias para co-financiar sua expansão, como também teriam melhores condições de encontrar suas sintonias com o mundo externo, diferenciando seus serviços e redes de relações. Vale notar que não se tratava de enfrentar problemas de qualidade acadêmica, mas de liberar potenciais e elevar a eficácia da gestão dos Sistemas de Ensino Superior (SES), substituindo o controle direto estatal por arranjos que conjugam administração remota (por indução e avaliação) com delegação de responsabilidades diretas a entidades colegiadas, que reúnem representantes do governo e da comunidade universitária (não exclusivamente).

Com efeito, as universidades não só ganharam escala, como assumiram novos perfis e mudaram a composição de seus orçamentos, elevando o percentual das receitas próprias (Clark, Shattock). Isto não se deveu a cortes do financiamento público; mas sim, ao maior dinamismo e abertura das universidades ao mundo externo – local, nacional e internacional (El-Kawas, Green, Witt, Eaton).

Essas reformas tiveram outros componentes decisivos; em particular, a revisão, ampliação e refinamento dos sistemas de avaliação, para efeitos de contrapartida da autonomia e de mecanismo de indução. Estes foram desenhados para cumprir duas funções: auditar e prestar contas à sociedade dos recursos públicos despendidos e serviços prestados (accountability) e promover a transição das instituições para o regime de auto-regulação. Em vários casos, novos mecanismos de avaliação foram introduzidos para também calibrar o financiamento público a critérios de necessidade e desempenho.

A novidade em termos de “avaliação” foi a introdução de mecanismos de promoção da qualidade na gestão através de avaliação institucional. Adaptou-se o modelo tradicional das agências regionais norte-americanas que se baseia na elaboração, pela universidade, de um auto-estudo (referido a standards de qualidade definidos pelo conselho superior das agências avaliadoras), que é submetido à validação e avaliação, in loco, por comitês de pares. Trata-se de um mecanismo interativo que, em grande medida, constitui uma assessoria e uma alavanca ao desenvolvimento institucional – no caso, o da capacidade de auto-regulação.

As reações iniciais das instituições foram mistas e variaram de país para país, dependendo do ambiente criado pela flexibilidade das políticas (prazos e tratamento dado) e, principalmente, pela oferta de apoios para o realinhamento (programas ou financiamento de assistência técnica, capacitação em gestão e sistemas de informação, etc.) Em alguns países (Suécia e Inglaterra, por exemplo), a descentralização sistêmica foi sentida inicialmente, nos institutos e departamentos universitários, como intrusão externa e/ou centralização interna (Bauer, 94; Trow, 93). De fato, essa nova avaliação tem o efeito de reforçar a dimensão institucional vis a vis a tradição de autonomia da gestão acadêmica. Mas, o maior envolvimento da comunidade do ensino superior na gestão do setor permitiu as revisões necessárias para completar a transição e consolidar o regime auto-regulado.

Embora o modelo básico de avaliação seja o mesmo, há muitas variações de país a país, devido à flexibilidade de seu formato e às singularidades dos processos. Variam as conseqüências atreladas aos resultados das avaliações (especialmente, seu impacto sobre os termos do financiamento público); a composição e códigos de conduta dos comitês de pares, os padrões de referência dos auto-estudos, a periodicidade, etc. Na verdade, o tema da “quality assurance” no ensino superior ganhou a ordem do dia por, pelo menos duas décadas, motivando o surgimento de dezenas de novos periódicos devotados às questões de gestão, controle e promoção da qualidade institucional. Grosso modo, o processo evoluiu de medidas duras, indicadores e outras práticas típicas do mundo do “management”, para critérios e modos de explicitação da qualidade cada vez mais afinados (e definidos) pela própria comunidade acadêmica (Harris, 2004).

Embora as turbulências já tenham sido, em grande parte, superadas (na verdade, há ainda conseqüências e desdobramentos não resolvidos em alguns países, como na Austrália), o processo de revisão e ajustes continua. Na Inglaterra, por exemplo, o sistema de avaliação foi profundamente alterado pela Quality Assurance Agency - QAA em conjunto com a comunidade acadêmica há menos de dois anos (Harris, 2004). A avaliação do ensino superior continua sendo uma “obra aberta” e razões não faltam para isto. De um lado, há os desafios inerentes ao próprio modelo de avaliação mencionado e as sensibilidades que toca; de outro, há o ingresso de novos atores no setor (provedores de conteúdos, de tecnologias e equipamentos), o avanço da internacionalização (além do Processo de Bologna, de compatibilização dos SES da União Européia) e outras dinâmicas deslanchadas pela própria auto-regulação, que criam situações inéditas a serem compreendidas, reguladas e incorporadas aos padrões de qualidade.

Um desafio do modelo de avaliação é, por exemplo, o de garantir a equivalência de tratamento pelos comitês de pares às diferentes instituições avaliadas e a consistência entre o escopo coberto pelos pares nas visitas e o coberto pelos auto-estudos apresentados. Há um espaço para subjetividades e para discrepâncias que não têm uma resposta geral e definitiva. Com relação às dinâmicas do contexto mais amplo, há o problema de como avaliar, por exemplo, a qualidade das parcerias firmadas pelas universidades, seja com outras instituições de ensino superior no exterior, seja com parceiros não-tradicionais (empresas, entidades), nacionais ou estrangeiros. Os Sistemas de Ensino Superior que, até recentemente, eram exclusivamente compostos por governo e instituições domésticas de ensino e pesquisa, são hoje também integrados por instituições de ensino estrangeiras e por indústrias, empresas de serviços e outras instituições de natureza diversa – domésticas, ou não.

Dois últimos aspectos muito relevantes da experiência internacional recente com a avaliação é [1] o da importância atribuída aos aspectos logísticos e operacionais, que desenvolvem a confiança mútua entre as partes, e [2] o horizonte de tempo e as condições de continuidade que os processos de reforma e de refinamento da avaliação vêm desfrutando.

O êxito das experiências de transição para a auto-regulação (das instituições e dos SES) dependeu, crucialmente, [i] da atuação de secretarias de alto nível e integralmente dedicadas à operação e suporte aos processos e rodadas de avaliação (tanto nas agências que coordenam o sistema de avaliação, como nas instituições; pois há um enorme trabalho de pré e pós-produção); [ii] da drástica melhoria da informação disponível sobre o setor e sobre cada instituição (instauração de diretorias de análise e desenvolvimento institucional) – o que aprofunda e dissemina o conhecimento não só da comunidade acadêmica, mas dos alunos e suas famílias, qualificando-os a exigir qualidade; [iii] a preocupação explícita com o desenvolvimento da confiança (trust), para o qual contribuem a busca de economia de esforços, a flexibilidade e a desburocratização – “a nova agenda [da avaliação no Reino Unido] não tem nada a ver com uniformidade ou com gravar normas em pedra. Tem a ver com contexto e diversidade; com a identificação do que é necessário e suficiente para manter e elevar a confiança, evitando burocracia” (Harris, 2004). Some-se a isso, a preocupação com o dimensionamento de tarefas factíveis de pleno cumprimento e o envolvimento crescente da comunidade com as questões do setor, desenvolvendo sua responsabilidade pública e conhecimento de causa.

O Brasil avançou muito em termos de avaliação, desde meados dos anos 90, com a introdução de verificações da qualidade de ensino na graduação. No entanto, estamos ainda tratando de resolver o problema de garantir um padrão mínimo de qualidade acadêmica e falta-nos experiência em avaliação institucional (muito embora o Conselho de Reitores já venha desenvolvendo com 20 universidades um programa não-oficial e voluntário, desde 2000). Nossa experiência com avaliação tem sido segmentada entre graduação, pós-graduação e pesquisa; entre as diferentes carreiras da graduação e áreas do conhecimento, e não desenvolveu qualquer conexão com a busca da auto-regulação do setor. Já produzimos mais documentos e informações do que fomos capazes de processar. Centenas de Pareceres das Comissões de Especialistas, milhares de catálogos institucionais, de questionários de avaliação e socioeconômicos dos estudantes que fizeram o Provão ficaram inéditos, sem tratamento. Já contamos com centros de pesquisa e produção acadêmica nessa temática; com uma rede de entidades representativas dos segmentos e com importantes iniciativas de promoção da qualidade em âmbito sistêmico – como as dos Fóruns de Pró-Reitores da Andifes que são abertos a todos os segmentos. No entanto, não conseguimos montar redes ou canais institucionalizados de cooperação entre governo e o setor, capazes de elevar a capacidade (administrativa) do governo dar efetivamente conta de tudo a que se propõe a fazer. Foram dificuldades dessa ordem que também motivaram o recuo do Estado para um papel de administração indireta, supervisão e administração de incentivos, que regeu as reformas apresentadas acima.

Por mais que o atual governo tenha buscado incorporar a experiência prévia, não evitou a desorganização, perda de impulso e reversão de tendências. Com efeito, nossa principal dificuldade é a falta de continuidade e todas as conseqüências funestas que acarreta: desperdício de experiência; dispersão de equipes; interrupção de processos de aprendizagem; ceticismo e impunidades, porque não se oferece horizonte de tempo compatível com a tarefa em questão. Qualquer processo em andamento é melhor do que a desorganização e retrocessos provocados pela descontinuidade. Evidência disto é a rebelião das universidades estaduais paulistas e a recusa pela Fundação Carlos Chagas do contrato para realizar o Enade, sob alegações técnicas e metodológicas. Os paulistas vocalizam o não comprometimento dos que estiveram fora das redefinições e expressam a gravidade das perdas decorrentes da descontinuidade. Tais eventos não teriam ocorrido se o ENC/Provão tivesse sido mantido, com seus já conhecidos defeitos e méritos – de ter vencido as enormes resistências iniciais; criado um processo interativo com a comunidade acadêmica e coordenadores de cursos e se tornado uma utilidade pública.

A verificação e promoção da qualidade no ensino superior dependem, criticamente, da confiança, factibilidade, informação, aprendizado coletivo, cooperação e muito debate, orientando revisões e experimentos. O que nos falta são mecanismos que assegurem a continuidade do processo de desenvolvimento da avaliação; um processo que deve ser, ele próprio, objeto de acompanhamento e avaliação, com o concurso da comunidade acadêmica (não exclusivamente), para que avance por acumulação de experiências e construa um sistema permanente (embora sempre ajustável) a partir de seus acertos.

Maria Helena de Magalhães Castro é professora do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Socias da Univerisdad Federal do Rio de Janeiro.


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Atualizado em 10/09/2004

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