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O que os brasileiros pensam sobre a democracia?

Situações de crise política como as recentes denúncias de corrupção envolvendo membros da cúpula do governo federal, partidos políticos e deputados federais têm gerado avaliações sobre o estado do regime democrático no país: completados 20 anos do fim da ditatura militar, a democracia estaria, de fato, consolidada no Brasil? A tendência das avaliações é focalizar as instituições que compõem o sistema político formal tais como as eleições e os partidos políticos. Mas um fenômeno importante parece ser ignorado: o que os brasileiros comuns pensam sobre a democracia. Recentes pesquisas de opinião têm revelado a descrença dos brasileiros em relação à política e aos políticos. E, mais do que isso, o apoio incondicional à democracia tem sido posto em cheque.

E o que explicaria essa desconfiança dos brasileiros em relação às instituições democráticas e aos políticos? Sobre qual política e qual democracia os brasileiros estão falando nessas pesquisas? Quais seriam as consequências desse sentimento de desencanto generalizado?

Preocupadas com a influência recíproca entre as instituições formais que compõem o sistema político e a cultura política relativa às crenças, valores, comportamentos e práticas dos cidadãos, pesquisas recentes têm se debruçado sobre as percepções e representações dos brasileiros em relação à política. Duas iniciativas merecem ser destacadas por trazerem as opiniões dos brasileiros sobre a democracia: as pesquisas anuais realizadas pela organização não-governamental Latinobarómetro e que têm revelado, desde 1996, que os latino-americanos abririam mão da democracia em nome da resolução dos problemas econômicos de seus respectivos países; e o Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb), realizado no Brasil após as eleições presidenciais de 2002, que revelou índices elevados de insatisfação dos brasileiros com o funcionamento da democracia no país.

As pesquisas realizadas pelo Latinobarómetro são baseadas em cerca de 19.000 entrevistas para se constituir uma amostra dos 400 milhões de latino-americanos e suas percepções sobre o regime democrático. Em relação ao Brasil, consta no Latinobarómetro a evolução do apoio à democracia no país: no primeiro ano em que a pesquisa foi feita (1996), 50% dos brasileiros preferiam a democracia a qualquer outra forma de governo. Esse índice foi mantido no ano seguinte, mas começou a cair a partir de 1998, ano da crise econômica que resultou na desvalorização do real em 1999. Até então, 48% dos brasileiros preferiam a democracia e o índice declinou para 39% (em 2000) e 30% (em 2001). A preferência pela democracia volta a crescer em 2002 (37%) e alcança 36% no ano de 2003. No ano passado o índice foi de 41%.

Os dados do Latinobarómetro mais recente, realizado em 2004, revelam ainda que 43% dos brasileiros entrevistados acreditam que um pouco de "mão dura" do governo não faria mal ao país; 48% dos entrevistados não se importariam que o Brasil ficasse à mercê de empresas privadas se elas solucionassem os problemas do país; 26% concordam que, para as pessoas comuns, um regime democrático e um não-democrático daria no mesmo; 18% dos brasileiros afirmam que, em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível; e, por fim, 65% acreditam o país é governado por interesses dos poderosos que agem pensando nos seus próprios benefícios.

Todos esses indicadores revelam uma certa ambigüidade dos brasileiros nas suas opiniões sobre a democracia: 56% dos brasileiros, sob nenhuma circunstância, apoiaria um governo militar ao mesmo tempo em que 54% dos brasileiros apoiariam um governo autoritário se ele resolvesse os problemas econômicos.

Essa ambigüidade também parece caracterizar os dados relativos à democracia, presentes no Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb), e analisados pelos pesquisadores Denise Paiva, Marta Rovery Souza e Gustavo de Farias Lopes, da Universidade Federal de Goiás (UFG). Segundo o Eseb, para 80,4% dos entrevistados (2.513 pessoas de todas as regiões do país), "a democracia, mesmo com problemas, é a melhor forma de governo". Existiria, assim, na sociedade brasileira, um apoio disseminado à democracia enquanto regime político que parece sugerir uma certa rejeição a regimes autoritários. Mas 62,4% dos entrevistados estão pouco ou nada satisfeitos com o funcionamento da democracia no país.

Como explicar, então, essa ambigüidade? Para Denise Paiva, é necessário distingüir o apoio que os brasileiros dão à democracia, enquanto regime político, das críticas que eles fazem ao seu funcionamento e eficácia: "a insatisfação dos brasileiros com a democracia diz respeito ao mau funcionamento das intituições democráticas que tem resultado no prejuízo das condições de vida dos brasileiros e na falta de melhoria dos indicadores sociais", afirma a cientista política.

Mais da metade dos entrevistados do Eseb, por exemplo, estão insatisfeitos com a atuação da Justiça, que é considerada ruim por 32,5% e péssima por 20,5%. Mas os dados da pesquisa que melhor permitiriam entender as razões da insatisfação dos brasileiros com as instituições democráticas são aqueles relativos às percepções sobre os direitos e os problemas do país: 90% dos entrevistados se consideram pouco ou nada respeitados em seus direitos e liberdades. Quando indagados sobre qual seria o maior problema do Brasil nos últimos quatro anos, os entrevistados apontaram o desemprego (37,5%) e, com distância significativa, a violência (11%).

"Esses dados ganham importância e coerência no conjunto de perguntas que propõem ao entrevistado que estabeleça as ações que seriam mais importantes para melhorar o Brasil. Gerar empregos sempre aparece como a ação prioritária, quando contrastada com a importância de se combater a fome, controlar a inflação e fazer a economia crescer", afirmam Paiva, Souza e Lopes, em seu artigo publicado na revista Opinião Pública.

É preciso lembrar ainda, segundo os autores, que a percepção do desemprego como o maior problema do país não é apenas uma preocupação retórica, já que 30% dos entrevistados afirmaram ter vivido a experiência do desemprego nos últimos seis meses. O mesmo percentual menciona a preocupação em ficar desempregado nos seis meses seguintes.

Causas e consequências da descrença dos brasileiros

Avaliar a atual cultura política brasileira, marcada pelo descontentamento dos brasileiros com as instituições democráticas implica analisar a crise da democracia representativa no país, segundo Marcello Baquero, professor do programa de pós-graduação em ciência política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O Brasil estaria vivendo uma crise de representação política. Um dos elementos seria a incapacidade dos partidos políticos de agirem como mediadores entre a sociedade e o Estado por estarem cada vez mais interessados na defesa de interesses privados. Essa distância entre os interesses dos políticos e seus partidos e as necessidades da população, segundo Baquero, é alimentada pelo neoliberalismo, interessado no uso privado das instituições públicas para salvaguardar interesses dos setores econômicos dominantes.

“Relações sociais dessa natureza têm se fortalecido nos últimos governos neoliberais, cuja estratégia, no campo político, orienta-se para fragilizar o sistema de representação política. Um dos exemplos disso seria o enfraquecimento da estrutura sindical. A própria instalação de uma economia de mercado, ao catalisar o desemprego estrutural e o surgimento de uma economia informal, vulnerabiliza os setores mais frágeis da sociedade. Os partidos, por sua vez, historicamente frágeis, tornam-se deficientes como instituições de identidades coletivas em economias de mercado”, afirma Baquero em seu artigo publicado na revista São Paulo em Perspectiva.

Formas antidemocráticas de se governar tais como a utilização de medidas provisórias, o loteamento de cargos e outras formas clientelistas ou mesmo corruptas de negociação estariam sendo, segundo Baquero, cada vez mais disseminadas, comprometendo-se cada vez mais a legitimidade do Estado perante os seus cidadãos. Estaria em curso a consolidação de uma cultura política cuja principal característica seria a desconfiança das pessoas em relação ao Estado e suas instituições. “Como decorrência dessa cultura, constata-se o surgimento de um eleitor individualista e pragmático, cujo comportamento político se guia por princípios de eficácia administrativa e capacidade gerencial e não por princípios ideológicos”, avalia Baquero.

Para Denise Paiva, cientista política da Universidade Federal de Goiás não se trata de um problema de representação política. A insatisfação dos brasileiros com o funcionamento da democracia diz respeito à incapacidade do Estado brasileiro de responder às demandas da sociedade. "Eu atribuo a descrença das pessoas muito mais à incapacidade da democracia de responder às demandas sociais relativas à diminuição das desigualdades sociais e de melhoria das condições de vida. Trata-se da descrença das pessoas em relação às instituições democráticas que não deve ser atribuída, a meu ver, a uma crise de representação política".

Embora façam avaliações distintas sobre quais seriam as causas da descrença dos brasileiros nas instituições democráticas, Denise Paiva e Marcello Baquero concordam que uma das possíveis consequências é o surgimento de lideranças carismáticas e personalistas. "A médio e longo prazo, as insatisfações dos brasileiros com a democracia podem abrir flanco para uma aventura populista ou mesmo autoritária, seja à esquerda ou à direita", avalia Denise Paiva.

Para Marcello Baquero, a consequência da crise de representação política que, na sua opinião, o Brasil está vivendo, resulta num paradoxo. Por um lado, busca-se o fortalecimento das instituições através de reformas políticas (tais como as que estão sendo propostas recentemente) e, por outro, procuram-se líderes políticos capazes de se impor às instituições. O resultado seria a descrença e a desconfiança cada vez maior em relação a elas. "O resultado é a vigência de um ciclo vicioso, pois quanto maior a deslegitimação institucional, maior também a exigência de líderes carismáticos, os quais contribuem para neutralizar e desacreditar essas mesmas instituições", conclui o cientista político.

A idéia de que a reforma política possa colaborar com a mudança de percepção dos brasileiros em relação à política e aos políticos (através da exigência da fidelidade partidária, da restrição à nomeação para cargos públicos e do financiamento público de campanhas eleitorais) também deve ser relativizada. Para Denise Paiva, embora se trate de uma agenda extensa, ela é importante para melhorar a percepção das pessoas em relação à classe política, pode auxiliar na manutenção da governabilidade e, a médio prazo, melhorar aquilo que seria a perfomance do sistema político brasileiro. Mas, segundo a cientista política, os seus efeitos serão limitados. "Durante o período de transição política, que se inicia com o fim da ditadura em 1985, e termina com a eleição direta presidencial de 1989, também havia a expectativa de que o retorno ao regime democrático e à institucionalidade iria resolver todos os males. Como sabemos, isso não aconteceu. Uma reforma puramente institucional não irá resolver o problema, apenas melhorar um pouco a situação".

(CC)

 

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Atualizado em 10/07/2005

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