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O difícil equilíbrio do jogo global

Nas últimas décadas, globalização, nova ordem mundial, enfraquecimento dos Estados nacionais e fim das fronteiras têm sido expressões recorrentes no discurso político, econômico e do direito internacional. Nesse cenário, organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial do Comércio (OMC) e, mais recentemente, o Tribunal Penal Internacional (TPI) assumiram um papel de destaque na chamada política internacional.

Criadas após a Segunda Guerra Mundial, essas instituições surgem com o entendimento de que os direitos, deveres e condições sócio-econômicas dos países não podem mais ser vistos como problemas isolados. Já que influenciam a ordem global, precisam de alguns mecanismos para serem regulados globalmente. Surge assim uma nova forma de governança do território, através de organismos internacionais, trazendo um debate sobre a viabilidade de um governo supranacional.

Atuação das organizações internacionais

“Sem dúvida, as resoluções dos organismos internacionais como a OMC, ONU e FMI sempre têm um grande impacto nos governos e na formação da opinião pública internacional”, analisa Antônio Cachapuz, professor de relações internacionais da Universidade Católica de Brasília (UCB) e consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores. Diante desse poder é forte o questionamento sobre a “igualdade de vantagens” e “não autoridade sobre os governos” como princípios das instituições internacionais. Como garantir esses pressupostos para países com realidades político-econômicas tão assimétricas quanto a dos países desenvolvidos e dos países subdesenvolvidos?

Esse é um ponto polêmico, alimentado pelo fato de a maioria das instituições internacionais, que deveriam garantir a representatividade de todos os países, têm na verdade sua constituição e distribuição de poder condicionadas pela posição político-econômica dos países na comunidade internacional.

No FMI, por exemplo, os votos estão relacionados com a cota de contribuição dos Estados para o Fundo. Os EUA, como maior cotista, têm a maioria dos votos. “No FMI e Banco Mundial existe uma espécie de voto censitário de acordo com o poder econômico dos países”, explica Tarciso Jardim, analista jurídico do Congresso Nacional e professor de Direito Internacional do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). A partir das décadas de 1980 e 1990, o FMI passou a exercer não só a função de fornecedor de empréstimos de última instância, ou seja, em caso de crise de balanço de pagamentos, mas também de fiscalizador da política monetária e fiscal de cada Estado.

No caso da OMC, existe o voto participativo, pelo qual cada Estado tem um voto e as decisões são tomadas por consenso. Para Jardim, a OMC é uma organização que também está estabelecida com um perfil econômico muito claro, o livre mercado, e lá também os maiores acabam tendo mais espaço. “O Brasil tem conseguido alguns avanços nas deliberações dos painéis da política da OMC. Mas temos que levar em conta que o Brasil não é qualquer país, possuímos cerca de 1% do comércio mundial. Seguramente, um país com menos poder econômico-comercial não tem a mesma força e poder participativo”, ponderou Jardim. Para Nogueira, a OMC, herdeira do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade, em inglês), criada como uma organização para efeito de tarifas e mercado, “virou uma organização que tem enormes poderes de sanção sobre os Estados, julga recursos e toma decisões que obrigam os Estados a mudar sua política e suas leis”.

No caso da ONU, o princípio participativo seria relativizado por uma desigualdade formal, já que no seu principal órgão, o Conselho de Segurança, que é responsável por estabelecer as sanções aos países, existem apenas cinco Estados com assento permanente e poder de veto: França, Rússia, Estados Unidos, Reino Unido e China. Ao mesmo tempo, a Assembléia Geral da ONU não tem poder para estabelecer leis.

TPI: princípio é bom, mas ainda não foi testado

Dentre as organizações internacionais, o Tribunal Penal Internacional (TPI) é uma das mais recentes e também considerada a que possui estrutura e sistema de funcionamento mais democrática. O TPI foi criado pelo Estatuto de Roma, em 1998, e tem a função de julgar pessoas que cometeram crimes de alcance internacional como genocídio, crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes de agressão. O Tribunal pode exercer seus poderes e funções no território de qualquer Estado participante e, por acordo especial, no território de qualquer outro Estado. Territorialmente estabelecido em Haia, na Holanda, o TPI entrou em funcionamento em 2002, e não é sua competência julgar crimes antes dessa data.

“Do ponto de vista jurídico, o TPI tem uma estrutura inédita em qualquer outra organização internacional. Existe uma assembléia geral com 99 países, que elegem um corpo de 18 magistrados, sendo a lógica: um país um voto”, explica Jardim. Segundo ele, a pretensão do TPI de julgar todos igualmente, faz com que haja várias resistências para seu funcionamento. “Os EUA é um dos países que exerce essa pressão. Até hoje o poder de atuação do TPI não foi testado, já que o tribunal ainda não julgou ninguém”. O caso de Slobodan Milosevic, ex-presidente da antiga Iugoslávia, que foi acusado de pelo menos 66 crimes contra a humanidade, genocídios e crimes de guerra, está sendo julgado pelo Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPII), uma corte especial. Como os alegados crimes de Milosevic datam da década de 1990, o TPI legalmente não poderia julgá-los. Para que isso acontecesse foi criado um tribunal especial, que será dissolvido após o fim do processo.

“A responsabilidade do Milosevic é evidente, assim como foi a dos réus do tribunal após Segunda Guerra Mundial ou de Ruanda. A questão principal aqui é que esses modelos de tribunais que foram criados até agora foram modelos seletivos que, ainda não julgam a todos igualmente. Se olharmos pelo ponto de vista da justiça internacional penal, houve uma evolução. Mas ainda não estamos na situação ideal. Tudo indica que os julgamentos do TPI devem começar pela África Central Sudão, Congo, Uganda que são casos gravíssimos, mas ainda não vão ser o grande teste do TPI”, afirma Jardim. Na opinião dele, instituições como TPI, ONU e OMC são ainda muito recentes para que se possa fazer uma avaliação mais dura.

Tarciso Jardim, analista jurídico do Congresso, explica que com o fim da Guerra Fria estaríamos num modelo de transição onde se fala em reforma da Carta da ONU e de algumas regras dessas organizações internacionais. “Na década de 90 passamos por um ciclo de conferências internacionais incessantes e agora temos uma certa ressaca com a política mais dura e unilateral dos EUA que renega os foros multilaterais”, completa.

Soberania flexibilizada

Após 1945, com a vitória dos Aliados e a derrota dos países do Eixo, houve uma mudança brusca nas relações que envolvem os Estados-nacionais. João Pontes Nogueira, doutor em relações internacionais e pesquisador do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio, explica que o poder político que antes se definia territorialmente passou a ser definido num espaço mais abstrato, no âmbito do mercado. Porém, lembra que não se trata de afirmar que o Estado-nação perdeu sua importância, mas que nos tempos atuais está em curso uma flexibilização da soberania que torna as fronteiras mais porosas. Dessa forma, os Estados estão cada vez mais participando desse processo de internacionalização, ou seja, uma desterritorialização de vários aspectos da sua autoridade. “Os Estados não são somente vítimas, são também agentes desse processo”, avalia Nogueira.

Já Cachapuz, da UCB, acredita que o Estado soberano clássico está hoje em crise. Para ele a crise vem de fora, por causa da transferência de grandes partes das funções exclusivas dos Estados para organizações supranacionais, mas também vem de dentro, por causa do processo de desagregação interna.

Segundo Tarciso Jardim, nota-se dois movimentos paralelos no que diz respeito à flexibilização da soberania dos Estados. De um lado, com o surgimento dessa pluralidade de atores supranacionais, os países não conseguem mais manter o perfil da soberania absoluta. Por outro lado, a própria interdependência maior entre os países e uma estratégia econômica internacional forçam uma menor atuação estatal, o que restringe as opções do ponto de vista financeiro e desenvolvimentista.

Para Nogueira, é preciso lembrar que as organizações internacionais são estabelecidas através de um ato voluntário do Estado. “São organizações intergovernamentais constituídas pelos Estados voluntariamente e, portanto, não são soberanas e nem são governos, por isso não têm autoridade sobre esses governos”. Segundo ele, o multilateralismo que inspira as organizações internacionais seria uma forma “mais democrática” para resolução de conflitos.

Nogueira destaca que a soberania sempre foi relativa a quanto dessa soberania os Estados querem ceder para uma organização ou outro Estado de maneira a alcançar algum objetivo, estabelecer um acordo, celebrar um tratado ou regular alguma relação. “Na medida que o mundo fica cada vez mais integrado os Estados vão cada vez mais cedendo partes de sua soberania para poder administrar suas relações com outros Estados”, explica.

Guantánamo, soberania ignorada

Um caso particular de afronta à soberania de países politicamente mais fracos pode ser observado nas intervenções militares dos Estados Unidos na América Latina. Bases militares na Guatemala, Nicarágua e Cuba são exemplos dessa afronta. Nesses casos, não se trata de uma soberania flexibilizada, mas uma soberania ignorada. A soberania de um país, para ser exercida, deve ser antes reconhecida externamente. Recentemente, até o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, veio a público questionar e pedir transparências sobre o processo de interrogação dos presos de Guantánamo.

A base de Guantánamo é o último reduto de militares dos EUA em Cuba. Eles estão presentes na região desde a década de 1930, a revolução cubana não conseguiu expulsá-los. Os prisioneiros capturados após o 11 de setembro, mesmo os nascidos nos EUA, são para lá levados para que não usufruam os mesmos direitos de presos comuns.

“Os presos afegãos foram levados para lá para que não tivessem os direitos civis que as pessoas julgadas em território americano têm. Eles são submetidos a um tratamento especial que envolve segredos de justiça, o não acesso a advogados, a ignorância em relação às acusações, prazo indefinido de detenção sem julgamento, além de torturas e até mesmo casos de mortes por mal tratamento”, explica Nogueira.

Charles Pennaforte, diretor do Centro de Geopolítica e Relações Internacionais (Cenegri), explica que a independência de Cuba foi tutelada pelos Estados Unidos para exercer a doutrina Monroe (aquela que pregava uma “América para os americanos”). Porém, Cuba sempre reagiu de maneira extremamente dura contra as armações norte-americanas nesses últimos 40 anos. “A última resposta rigorosa contra tais armações foi a expulsão de parlamentares europeus que apoiavam a oposição cubano-bushista”, informa Pennaforte. Ele conta que, em maio, ocorreu uma reunião da oposição cubana em Havana com vários parlamentares europeus, cujo pano de fundo seria uma “libertação da ilha” patrocinada por George W. Bush.

Segundo essa mesma linha de raciocínio, Chávez já teria rompido vários acordos com os EUA, inclusive militares. “O fato é que a administração Bush tem utilizado a velha cartilha da Guerra Fria para desestabilizar o governo Chávez: financiamento de grupos paramilitares, apoio à insurreição, sabotagens etc. Aliás, o que faz até os dias de hoje contra a ilha caribenha”, aponta. Na opinião de Pennaforte, a doutrina Bush de invasão ao Iraque e promoção de “guerras preventivas” são um atentado frontal ao direito internacional. “O próprio direito internacional está sendo alterado dentro dessa visão”, finaliza.

(AG e MT)

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Atualizado em 10/07/2005

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