Bioinformática,
genes e inovação
Carlos
Vogt
I
O "pecado" da curiosidade do conhecimento levou o homem,
no decorrer de sua história moderna, a sofrer alguns abalos
fundamentais que chacoalharam a sua vaidade e o empurraram para
quedas simbólicas, no sentido bíblico, irrecuperáveis:
a primeira, entre elas, o tira, na Terra, do centro do universo,
com a revolução coperniciana; a segunda, arrebata-o
da linhagem divina, com a teoria da evolução das espécies,
de Darwin; a terceira, composta de dois trancos, praticamente simultâneos,
retira-lhe a condição de sujeito da história,
no choque com a teoria marxista e desaloja-o de seu próprio
eu, para revelá-lo estranho e conflituoso consigo
mesmo, com a criação, por Freud, da psicanálise.
Mais
recentemente, foi anunciada, como resultado do seqüenciamento
dos genes que compõem o genoma humano e dos que compõe
o genoma do chipanzé, uma diferença quantitativa muito
pequena de genes entre os dois, o que motivou cientistas a proporem
uma revisão da classificação do chipanzé
para incluí-lo entre os representantes da linhagem do gênero
Homo, sabido ou ignorante, pouco importa no caso em questão.
O DNA
foi, há 50 anos atrás, a última grande e revolucionária
descoberta científica da humanidade, abrindo novos caminhos
para o desenvolvimento das ciências da vida e para o nascimento
de áreas multidisciplinares de estudo e pesquisa antes desconhecidas.
A própria
biologia, com o desenvolvimento da genômica e, mais recentemente,
da proteômica, foi conhecendo transformações
que têm mudado o seu paradigma teórico e metodológico,
aproximando-a, sob esses aspectos, das chamadas ciências duras,
para as quais a materialidade de seu objeto e a quantificação
de seu conhecimento são condições constitutivas
do rigor dos procedimentos e da verdade dos resultados produzidos
pela investigação
É
nesse sentido, por exemplo, que se deve entender o anúncio
feito, há pouco tempo, na revista Nature Neuroscience, por
Francis Crick, um dos descobridores do DNA, e sua equipe, da identificação
das células responsáveis pela consciência.
Na
mesma linha vai o artigo de Fernando Reinach "A materialização
dos genes", publicado no Caderno Especial, p. 2, da
Folha de S. Paulo, em comemoração dos 50 anos
da descoberta do DNA. Diz o autor:
"Quem
vive hoje acha difícil imaginar que talvez um dia a mente
esteja tão firmemente ancorada no cérebro quanto
a hereditariedade está ancorada na estrutura do DNA. Nesse
dia ouviremos no rádio: 'Foi retirada uma amostra da consciência
do senador fulano de tal e, após exame do material nos
laboratórios do judiciário, ficou constatado que
na época ele tinha consciência de que estava cometendo
um ato ilegal ao mandar violar o painel do Senado'. Nesse dia,
acharemos isso tão natural que a notícia: 'Após
uma cirurgia de várias horas sob anestesia geral, sem se
lembrar de nada, João acordou e sentiu no peito os batimentos
do coração de Maria, que tinha morrido em um acidente
de automóveis no dia anterior'
Esses
dois exemplos mostram a principal conseqüência desse
processo de materialização: ele permite que os conceitos
sejam incorporados em tecnologias. E com a tecnologia vem o poder
de manipular a natureza, e com o poder novas possibilidades, novos
riscos e novas responsabilidades.
Esses
seres vivos, descendentes de algum macaco africano, auto-intitulados
como homens sabidos (Homo sapiens), já podem manipular
a constituição dos seres vivos. Afinal, clonar a
ovelha Dolly a partir das células da glândula mamária
de sua mãe não é muito diferente do ato de
?clonar? Eva a partir de uma costela de Adão."
Esquecendo um pouco o entusiasmo divinizante do cientista, o fato
é que hoje caminhamos cada vez mais forte e celeremente para
explicações materiais da vida e da complexidade de
seu funcionamento. Isso que, sem dúvida, está ligado
à descoberta do DNA e ao desenvolvimento da biologia molecular
se deve também aos resultados cada vez mais sofisticados
das tecnologias da informação e, em particular, nesse
caso, à bioinformática.
II
Entre
as definições que se podem encontrar para a bioinformática,
a que aparece, por exemplo, no site do programa dedicado
ao tema da Universidade de Wageningen, na Holanda http://www.bioinformatica.nl
parece-nos simples, objetiva e esclarecedora e que numa tradução
mais livre poderia ser assim apresentada:
"A
bioinformática é uma nova disciplina científica
com raízes nas ciências da computação,
na estatística e na biologia molecular. A bioinformática
desenvolveu-se para enfrentar os resultados das iniciativas de
seqüenciamento de genes, que produzem uma quantidade cada
vez maior de dados sobre proteínas, DNA e RNA. Desse modo,
os biólogos moleculares passaram a utilizar métodos
estatísticos capazes de analisar grandes quantidades de
dados biológicos, a predizer funções dos
genes e a demonstrar relações entre genes e proteínas".
O papel da bioinformática na descodificação
de um gene é tão importante, do ponto de vista da
velocidade com que a tarefa pode ser realizada, que o Genoma Humano,
inicialmente previsto, em 1987, quando foi concebido, para ser desenvolvido
e concluído em 15 anos, acabou sendo antecipado, em cerca
de 5 anos, tendo em 26 de junho de 2000 sido dado por decifrado
em seus aspectos essenciais.
Hoje,
para que se possa ter idéia da contribuição
que a informática trouxe ao desenvolvimento da genômica,
um novo gene, com cerca de 12 mil bases pode ter sua seqüência
decifrada em 1 minuto, quando há 3 anos atrás a mesma
tarefa levaria 20 minutos e há 20 anos, mais ou menos 1 ano.
Há,
desse modo, uma relação de motivação
científica e tecnológica muito forte entre a descoberta
do DNA, os estudos de transgenia, a materialidade do conhecimento
propiciada pela biologia molecular, e pela genômica e o nascimento,
a constituição e o desenvolvimento da bioinformática.
III
No
Brasil, esse fenômeno pode ser acompanhado de perto se olharmos,
por exemplo, para os diversos projetos do Programa Genoma Fapesp,
reunidos, desde maio de 1997 na Rede Onsa (sigla, em inglês,
para Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis). Com a
Rede Onsa, a Fapesp estabeleceu as bases para o funcionamento de
um instituto virtual e dinâmico que congregou, inicialmente,
cerca de 30 laboratórios de diferentes instituições
do estado de São Paulo, e que hoje, com uma participação
cada vez maior e mais competente de novos grupos de pesquisa em
novos projetos, acabou por consolidar uma nova concepção
do desenho institucional da pesquisa no país. Contribuiu,
além disso, para o estabelecimento de uma cultura de interação
e de integração entre as universidades e as empresas,
essencial quando se quer enfrentar o desafio necessário e
impositivo, em nossa época, da transformação
do conhecimento em riqueza.
O Genoma
da Xylella fastidiosa, o Genoma da Cana, o Genoma Humano
do Câncer, o Genoma Clínico do Câncer, o Genoma
Xanthomonas, o Genoma do Eucalipto, o Genoma do Schistomona Mansoni,
o Genoma da bactéria Leifsonia Xyli, dentro do projeto
abrangente dos Genomas Agronômicos e Ambientais (AEG, sigla
para o inglês Agronomical and Environmental Genomics),
criado em 2000, a partir do projeto feito em conjunto com o Departamento
de Agricultura dos EUA para o seqüenciamento de uma variante
da xylella fastidiosa que ataca as uvas e que na época
atingia as vinhas do sul daquele país, enfim, o Genoma Bovino,
anunciado mais recentemente, todos mostram as etapas dessa progressiva
conquista científica e tecnológica da Genômica
no Brasil, em que a bioinformática esteve presente como instrumento
indispensável, de um lado, e como conhecimento, em dinâmica
de evolução, do outro.
Vários
centros de pesquisa e desenvolvimento em bioinformática foram,
desde o lançamento da Rede Onsa, se constituindo e se consolidando
em São Paulo, acompanhando a espiral de crescimento da cultura
genômica no país. Assim foi na Unicamp, na USP, na
Unesp, no Instituto Ludwig, no Laboratório Nacional de Computação
Científica, no Rio de Janeiro, na Universidade Federal de
Pernambuco, na Federal de Minas Gerais e na Federal do Rio Grande
do Sul.
O movimento não cessa, espalhando-se por outros estados e
instituições a ponto de ter propiciado a realização
de um grande congresso voltado para o tema em maio passado e de
ter motivado o nascimento de uma empresa - a Scylla - com foco na
bioinformática para o desenvolvimento da genômica e
da proteômica.
A empresa
nasceu por iniciativa de pesquisadores que trabalharam, desde o
início, no projeto do Genoma da Xylella, cujo nome
acabou, por anagrama, batizando uma outra empresa - esta de biotecnologia-,
a Alellyx, que teve no mesmo genoma a sua inspiração,
assim como também uma terceira, a Canavialis, teve seu berço
no Genoma da Cana. Todas elas empresas de base tecnológica
que empregam um número expressivo de pesquisadores mestres
e doutores, competências multidisciplinares e modernas, e
que dividem ainda, compartilhando-os, os genes do desafio de agregar
valor econômico e social ao conhecimento produzido em seus
laboratórios e nos laboratórios das instituições
superiores de ensino e pesquisa que lhes deram origem.
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