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Computadores simulam vida artificial

Uma nova forma de estudar sistemas biológicos vem adquirindo cada vez mais importância nos últimos anos: a simulação, em programas de computador, de características típicas de organismos vivos, como evolução, adaptação e aumento da diversidade. Ao invés de trabalhar com seres vivos em laboratório, essa técnica permite investigar, num "mundo biológico virtual", temas como o papel da cooperação entre seres vivos na evolução ou mesmo a origem da vida.

Um exemplo de estudo nessa área é a evolução pré-biótica, ou seja, o estudo dos processos que levaram ao aparecimento da vida conforme a entendemos hoje - antes, portanto, do surgimento das células e do DNA. Nessa linha, o físico Paulo Roberto de Araújo Campos, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, simula a evolução das moléculas de RNA, que, segundo se suspeita, já existia antes do DNA. A idéia da sua pesquisa é codificar uma seqüência de RNA em dígitos binários (uma seqüência de zeros e uns, a linguagem "entendida" pelos computadores) e simular a ação das duas principais influências evolucionárias: a seleção natural e as mutações aleatórias. Com isso, investiga as possíveis características da evolução pré-biótica, procurando por indicações sobre como tal situação pode ter evoluído para uma biosfera com organismos celulares com RNA e DNA.

No mesmo instituto, a física Viviane Moraes de Oliveira usa a computação para pesquisar a ecologia evolucionária - relacionada com a evolução da relação entre as espécies, como o aumento da biodiversidade, o papel da cooperação entre espécies na evolução etc. No computador, é simulada a evolução de um conjunto de espécies que competem entre si, analisando o número de indivíduos ao longo das gerações. O método utilizado é o da física estatística, uma área da física que estuda sistemas constituídos de um número muito grande de componentes (por exemplo, com esse método pode-se considerar um gás formado de um grande número de átomos e daí extrair as leis físicas do gás como um todo). Com essa abordagem, é possível, por exemplo, analisar o papel, na evolução ao longo das gerações, do nível de cooperação entre as espécies e da complexidade dos organismos. Um estudo desse tipo foi publicado por Viviane no início deste ano, em um artigo no European Physical Journal B (volume 31, pág. 259).

Criaturas virtuais
Os programas de computador usados por Campos e Viviane simulam organismos replicadores. Em uma outra abordagem, chamada genericamente de "vida digital", os próprios programas se replicam automaticamente. Como vírus de computador, são softwares capazes de fazer rapidamente inúmeras cópias de si mesmos - só que de forma controlada. É possível introduzir mutações aleatórias (pequenos defeitos nas réplicas) e mecanismos de seleção, análogos ao da seleção natural, e assim simular a competição entre espécies e outros fenômenos evolucionários.

Observa-se, em tais populações de "organismos virtuais", um processo de evolução que simula várias características da evolução biológica. Em 1991, o ecólogo especialista em plantas tropicais Tom Ray conseguiu pela primeira vez criar programas auto-replicantes que sofrem uma rápida diversificação na sua população (diversos tipos ou "espécies" de programas apareciam em número crescente) e também um aumento da "adaptação" - ou seja, após alguns milhares de gerações, os programas estavam se replicando muito mais rápido do que seus ancestrais originais feitos a mão.

Nos anos seguintes, os "mundos virtuais" ficaram cada vez mais sofisticados. Pouco depois do trabalho de Ray, Chrostoph Adami obteve programas que ficavam não só cada vez mais rápidos, mas também cada vez mais complexos.

Esses programas são capazes de se adaptar às condições do "meio", desenvolvendo "estratégias" de "sobrevivência" e "contra-estratégias" que suplantam estratégias adotadas anteriormente por espécies rivais. O pesquisador Karl Sims, do Projeto de Biologia Digital (Biota), desenvolveu uma série de "criaturas" virtuais que aparecem na tela do computador como "seres" feitos de blocos retangulares. Esses "seres digitais" são capazes de se deslocar pelo espaço e mover as partes dos seus corpos em busca de "alimentos" (seu objetivo é caminhar até um certo ponto da tela, que representa o "alimento"). Quem encontra o alimento tem mais chances de se reproduzir, o que proporciona uma pressão de seleção natural análoga à dos organismos vivos.

Introduzindo mutações aleatórias, essas criaturas são capazes de gerar, através das gerações, novas formas e novas estratégias de adaptação para que possam capturar o alimento. Após muitas gerações, aparecem criaturas complexas, capazes de fazer movimentos sofisticados. Vídeos com exemplos de seres virtuais como esses estão disponíveis na Internet.

Esses estudos propiciam possibilidades novas, como ampliar a perspectiva da biologia para uma classe mais ampla de organismos vivos do que a que existe na Terra. Até há pouco tempo, não era possível investigar as possibilidades que a biologia poderia oferecer fora dos paradigmas presentes na Terra - moléculas orgânicas baseadas em cadeias de carbono, presença de células etc. As técnicas da vida digital podem permitir discriminar quais características da vida são devidas à forma particular do organismo e quais são independentes do seu substrato material, podendo ocorrer em organismos biológicos, em robôs ou em simulações digitais.

Além disso, o tempo transcorrido entre uma geração e outra em organismos digitais é muito menor do que em organismos biológicos. Isso remove uma das grandes dificuldades do estudo da evolução: o tempo transcorrido entre as gerações, que fazia com que a evolução em longo prazo, com milhares de gerações, envolvesse experimentos excessivamente longos. O novo método permite também ter uma precisão estatística maior, pois pode-se lidar com populações maiores.

A biologia digital, entretanto, não pode tudo. Como lembram Claus Wilke, do Laboratório de Vida Digital no Instituto de Tecnologia de Pasadena (EUA) e Christopher Adami, do Laboratório de Propulsão a Jato do mesmo instituto, em um artigo em uma edição de 2002 da revista Trends in Ecology & Evolution (volume 17, pág. 528), "em contraste com os estudos puramente experimentais com bactérias e vírus, a pesquisa com organismos digitais é restrita a questões abstratas sobre princípios gerais." Não é possível fazer estudos específicos para uma ameba ou um cachorro e, portanto, evitar experimentos com animais.

O que é vida
A possibilidade de simular aspectos gerais da vida em sistemas não-vivos provocou uma reavaliação da concepção geral do que vem a ser vida. Muitos cientistas assumem uma postura pragmática, adotando conceitos particulares de vida que levam em conta algumas de suas características básicas. Para Paulo Campos, "o que consegue manter a informação evolutiva é vida". Os organismos vivos são capazes de reter em si e transmitir informação (genética, por exemplo) para réplicas suas de forma autônoma, sem intervenção externa, e essa é a característica explorada na pesquisa de Campos.

Discussões mais filosóficas sobre o conceito de vida aparecem nos próprios congressos científicos sobre vida artificial e cientistas eminentes como Christopher Langton, reconhecido por muitos como o fundador da área da vida artificial, reconhecem a possibilidade de situações onde a vida digital é indistinguível da vida "real".

Em uma conferência da área em junho de 1992 em Santa Fé (EUA), o cientista húngaro Stevan Harnad, então do Laboratório de Cognição e Movimento da Universidade de Aix Marseille II, na França (atualmente, na Universidade de Southampton, no Reino Unido), relatou uma conversa com Langton, que era justamente o organizador da conferência. Segundo Harnad, ele propunha que, se pudéssemos codificar em um programa de computador todas as condições iniciais da biosfera, bem como todos os mecanismos evolutivos, a simulação poderia evoluir até a representação de formas de vida exatamente como ocorreu com a biosfera real - chegando, inclusive, a simular os próprios Langton e Harnad e a conversa que travavam naquele instante. Langton então perguntou como se poderia, nessas condições, distinguir entre a vida real e a vida simulada.

Harnad, na conferência, contestou a impossibilidade de diferenciar as duas coisas, centrando na distinção entre os objetos em si e a sua descrição simbólica. Segundo ele, no caso dos objetos reais, não há mediação de nenhuma interpretação entre as características e os próprios objetos; já no caso da descrição simbólica, "os únicos 'objetos' são os símbolos físicos escolhidos e suas interações sintaticamente restringidas; o resto é apenas nossa interpretação dos símbolos e interações como se eles fossem as propriedades dos objetos que descrevem."

Porém, esses argumentos podem depender da forma como a vida é encarada. O filósofo Alvaro Moreno, da Universidade do País Basco (Espanha), lembra que está emergindo uma noção de que as propriedades características dos sistemas vivos "não são conseqüência de uma determinada materialidade, mas de uma determinada organização". Tal corrente chama-se "funcionalismo". Em um artigo apresentado na Sétima Conferência Internacional sobre Simulação e Síntese de Sistemas Vivos, em Portland (EUA), em 2000, Moreno argumenta: "afirma-se que a fenomenologia biológica é exclusivamente resultado de algum arranjo organizacional, ao invés de uma implementação material particular. Na verdade, a questão de se esses arranjos organizacionais são sustentados por moléculas de carbono ou silício, ou por padrões de elétrons em um computador, é considerada completamente irrelevante."


Leia também:
Evolução Digital de Funções Complexas (Maria Carolina de Oliveira Aguiar e Silvia Cristina Pabón Escobar), no Radar da Ciência

(RB)

 
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Atualizado em 10/08/2003
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