| Álbum 
              de Retalhos Carlos 
              Vogt  
              
                | Só 
                  na velhice a mesa fica repleta de ausências. Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
 após arrebentar-se em música.
 Creio na cerração das manhãs.
 Conforto-me em ser apenas homem.
  
                    Envelheci,tenho muita infância pela frente.
 
 Fabrício 
                    Carpinejar |              I A velhice é um dos temas mais recorrentes na literatura mundial 
              e a passagem do tempo - veículo de sua consecução 
              - motivo de páginas antológicas de lírica tristeza.
 Cormac 
              McCarthy, autor de Meridiano de sangue e da Triologia 
              da fronteira, à qual pertencem Todos os belos cavalos, 
              já transformado em filme, e Cidades da planície, 
              esplêndidos romances sobre a vida em extinção 
              do velho oeste americano, escreve neste último uma reflexão 
              casual de um dos personagens cowboys em que a perda e a beleza 
              andam juntas e espelhadas, como gêmeas univitelinas: "Um 
              homem descia a estrada conduzindo um burro sobrecarregado com uma 
              pilha de lenha. Os sinos da igreja começavam a soar na distância. 
              O homem lhe esboçou um sorriso dissimulado. Como se partilhassem 
              um segredo entre os dois. Um que dizia respeito à idade a 
              à juventude e a suas reivindicações e à 
              justiça dessas reivindicações. E das reivindicações 
              feitas aos dois. O mundo passado, o mundo vindouro. A transitoriedade 
              comum aos dois. Sobretudo um saber do âmago que a beleza e 
              a perda são uma coisa só." Ivan 
              Lessa, há tantos anos vivendo fora do Brasil e tão 
              ligado às suas distantes presenças, tem uma crônica 
              saborosamente desconfiada sobre o direito por ele adquirido, ao 
              completar 65 anos, na Inglaterra, de possuir um CV, não o 
              curriculum vitae, mas o "Certificado de Velhice", 
              ou a "Carteira de Velhinho", para o qual os ingleses "usam 
              um eufemismo meio pomposo: 'Freedom Pass'. Passe da liberdade. 
              Parecendo coisa da guerra fria." Em 
              Cidades invisíveis, Ítalo Calvino, nas narrativas 
              das cidades-mulheres que o viajante Marco Polo faz ao Grande Khan, 
              opõe, continuamente a juventude eterna do visionário 
              ao ceticismo da eterna velhice do imperador. Berenice 
              é a última cidade invisível a ser contada. 
              É uma cidade e também uma série de cidades, 
              justas e injustas e que, no presente, contém todas as Berenices 
              do futuro, "uma dentro da outra, apertadas, espremidas, inseparáveis", 
              de modo que o tempo, ele próprio, contém - e é 
              contido por - uma dimensão espacial que a memória 
              desenha em ruas, casas e labirintos. Ou, 
              como escreve Jorge Luiz Borges:"Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao 
              longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, 
              de reinos, de montanhas, de baías, de mares, de ilhas, de 
              peixes, de habitação, de instrumentos, de astros, 
              de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse 
              paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto."
 II Simone 
              de Beauvoir em seu livro clássico sobre a velhice mostra, 
              entre outras coisas, que o inconsciente não tem idade e que 
              temos forte tendência a nos comportar, na velhice, como se 
              jamais fôssemos velhos: aos 60 anos, raros são os que 
              se consideram nessa condição e mesmo depois dos 80 
              anos há muitos que acreditam ser de meia-idade e uns tantos 
              que continuam a se achar jovens. Como 
              escreve Cícero, em seu famoso tratado De Senectute 
              (Da velhice), "todos querem chegar à velhice; quando 
              chegam, acusam-na". E ainda: "Torna-te velho cedo, se 
              quiseres ser velho por muito tempo". Pensamentos que ressoam, 
              no século XVII, no dito de Swift e que, de certo modo, vão 
              na mesma direção dos dados do livro de Simone de Beauvoir: 
              "Todos desejam viver por muito tempo, mas ninguém quer 
              chegar a ser velho". Em 
              Ninguém escreve ao coronel, de Gabriel Garcia Marques, 
              o personagem espera, em vão, uma carta do governo, outorgando-lhe 
              aposentadoria e conferindo-lhe pensão. O coronel paramenta-se, 
              arruma-se ao espelho e, semana após semana, posta-se à 
              espera da correspondência que não vem. Todos sabem 
              que não virá, inclusive sua mulher. Mas essa é 
              a forma de manter-se vivo, pelo ritual da esperança e, assim, 
              pelo adiamento da pensão, protelar, em ilusão, a própria 
              velhice. De 
              algum modo, esse romance de Garcia Marques faz eco - mesmo que não 
              intencional, como é provável que não seja - 
              ao conto de Machado de Assis "O espelho" que integra o 
              livro Papéis avulsos, publicado originalmente em 1882. Nesse 
              conto, como se sabe, cinco personagens de meia-idade (para a época), 
              entre 40 e 50 anos, entre eles Jacobina, conversam sobre discrepâncias 
              físicas e metafísicas. Num dado momento, este último, 
              que participava marginalmente da conversa, deixa sua casmurrice 
              e lança a sua nova teoria da alma, afirmando que "cada 
              criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro 
              para fora, outra que olha de fora para dentro..." Para 
              provar sua teoria, Jacobina "concerta a ponta do charuto, recolhendo 
              as memórias" e narra a experiência de solidão 
              e abandono que vivenciou aos 25 anos, logo que nomeado alferes da 
              guarda nacional, e foi visitar D. Marcolina, tia viúva, em 
              sua fazenda. Lá estando, a tia teve de viajar, os escravos, 
              em seguida, fugiram e Jacobina ficou só, sem a imagem de 
              ilustre alferes que a tia e a criadagem se lhe representavam. Um 
              grande e antigo espelho, que estava na sala, fora posto em seu quarto 
              por "carinhos, atenções, obséquios" 
              da boa tia. Deprimido 
              pela perda da identidade social que o entorno lhe conferia, Jacobina, 
              depois de dias, veste-se com a farda de alferes diante do espelho, 
              promovendo o reencontro de sua alma interior, dilacerada, com sua 
              alma exterior, até então perdida:"Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me 
              diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três 
              horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais 
              seis dias de solidão, sem os sentir."
 III
 
               
                |  |   
                | Quadro 
                    de Rembrandt - "Meditation" |    Solidão 
              e velhice são também temas da narrativa de vida, memórias, 
              do casmurro Bentinho, personagem, juntamente com Capitu, da história 
              de amor mais amargamente doce que o pessimismo, a ironia e o humor 
              despistadores de Machado de Assis produziram. Bentinho, 
              agora o Dom Casmurro, da velhice, vive só, com um 
              criado, em casa própria que fez construir com o propósito 
              de "reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga 
              Rua de Mata-Cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela 
              outra, que desapareceu." Mas, 
              como continua a explicar no capítulo II o narrador-protagonista, 
              a empreitada não sucedeu, ao menos para os fins de reconstituição 
              da vida, a que se propunha:"O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar 
              na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui 
              recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, 
              a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, 
              vá, um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; 
              mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo."
 [...]
 "Entretanto", adverte este Fausto sem pacto, prócer 
              da modernidade e do modernismo, "vida diferente não 
              quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, 
              aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe 
              achei; mas é também exato que perdeu muito espinho 
              que a fez modesta, e, de memória, conservo alguma recordação 
              doce e feiticeira.
 Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações 
              raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; 
              como bem e não durmo mal."
 Sob 
              esse aspecto, relativizado, da idade avançada, Bentinho parece 
              encontrar-se com o Marquês de Maricá, que viveu entre 
              o século XVIII e a primeira metade do século XIX e 
              é autor de famosas máximas, entre elas: "Estuda-se mais na velhice para bem morrer do que se estudou 
              na mocidade para bem viver."
 IV
 O tema 
              do Fausto, de Goethe, o médico cientista que vende a alma 
              ao diabo em troca da juventude, cujas origens estão na Idade 
              Média e no Renascimento, reaparece no romance de Thomas Mann 
              e mantém uma tradição sempre renovada, e por 
              isso eternamente provisória da fugacidade do tempo, da fragilidade 
              da vida, da finitude dos sonhos, da imortalidade da arte. O tema 
              do espelho, como já tive oportunidade de escrever anteriormente, 
              tem um momento de grande força expressiva no romance de Oscar 
              Wilde, O retrato de Dorian Gray, publicado pela primeira 
              vez em 1891. Há 
              também aqui um pacto pelo qual o protagonista transfere para 
              o seu retrato todos os efeitos de seu envelhecimento físico 
              e de suas degradações morais e espirituais. O retrato 
              torna-se velho e carcomido, com o passar do tempo; o retratado permanece 
              jovem, arrogante e iludido, sem passar por ele. Num dos momentos 
              de confrontação consigo mesmo, no retrato, dilacera-o 
              com um punhal, tombando morto pela destruição de sua 
              imagem condensada em progressiva e dinâmica decadência. Em 
              Machado de Assis, o solo de solidão mais bem executado talvez 
              seja o do Conselheiro Aires em seu Memorial, embora a transcendência 
              da velhice em suas memórias mais acabadas e perfeitas só 
              se dê naquelas póstumas, de Brás Cubas. Uma 
              das peças mais fortes de Shakespeare é Rei Lear, 
              baseada em lendas e narrativas muito antigas. A peça dramatiza 
              a situação do velho soberano que renuncia ao poder, 
              em nome de suas três filhas, mas que não aceita abdicar 
              dos ritos e das comodidades do mando da soberania. Triste engano 
              que passa pela constatação amarga de que é 
              péssimo envelhecer antes de tornar-se sábio e chega 
              à tragédia da morte das filhas e do próprio 
              rei. Mario 
              Monicelli, diretor de O incrível exército de Brancaleone, 
              fez, em 1992, o filme Parente é serpente, cujo entrecho 
              lembra um pouco a tragédia do rei Lear, posta agora numa 
              clave cômica pela visão do humor moderno e divertido 
              que tão bem caracteriza a obra do excelente diretor italiano. Aqui, 
              a história gira em torno de uma família italiana típica 
              e tradicional que todos os anos se reúne na casa dos patriarcas 
              para as festas de fim de ano. Nesse ano, contudo, os pais anunciam, 
              por se considerarem velhos demais para se cuidarem sozinhos, que 
              passarão a viver um pouco na casa de cada filho pelo resto 
              de suas vidas. É o que basta para provocar uma série 
              de confusões, de subterfúgios, de evasivas, de negaceios 
              obscuros, gerando o clima favorável da comédia de 
              costumes que, divertindo, vai, irreverente, satirizando, e, castigando, 
              vai, reverente, construindo e ensinando. V
 São 
              muitas as histórias de velhos e velhices. Como 
              aquela do belo filme de David Lynch, História real, 
              em que o protagonista atravessa o país num tratorzinho de 
              cortar grama para visitar o irmão doente e à beira 
              da morte e o qual não via por quase toda a vida. Ou 
              estas outras contadas por Guimarães Rosa no livro Manuelzão 
              e Miguilim e que contém duas novelas magistrais que se 
              olham em espelho: "Campo Geral", relato lírico 
              da infância de Miguilim que vive com a família na mata 
              do Mutum, em Minas Gerais; "Uma estória de amor", 
              que, já da velhice, conta a estória do vaqueiro Manuelzão, 
              que recompõe sua vida, recompondo a família, construindo 
              sua casa e a capela que prometera à sua mãe. Infância 
              e velhice, descoberta e lembrança, construção 
              e reconstrução, narrativas, uma em terceira pessoa 
              - a da infância de Miguilim -, outra em primeira - a da velhice 
              de Manuelzão, completam-se e integram-se na prosa lírica 
              e criativa do autor mineiro. Há 
              mais, há muito mais, como são tantos os ciclos da 
              vida. Como 
              este registrado pelo poeta romântico Walter Savage Landor, 
              cujo título é "No seu septuagésimo quinto 
              aniversário", e cuja tradução de José 
              Lino Grünewald faz justiça à beleza sonora, lírica 
              e poética do original:Lutei com nada e nada valia a lida.
 Amei a Natureza e logo após a Arte;
 Aqueci as mãos ante o fogo da vida;
 Tudo se afunda e estou como quem já parte.
 Harold 
              Bloom, em Como e por que ler, destaca o poema como um de 
              seus preferidos acompanhando-o do seguinte comentário:"Quando se chega aos setenta e cinco anos de idade, mesmo sabendo 
              que a quadra contém uma inverdade, tem-se a vontade de sair 
              por aí, murmurando o epigrama, no dia do aniversário, 
              em homenagem a si mesmo e a Savage Landor."
 Façamos 
              a homenagem!  
              
             |