Editorial:

Fármacos e Medicamentos: Urgências
Carlos Vogt

Reportagens:
Genéricos são a linha de frente da política de medicamentos
Instrumentos de regulamentação dos genéricos
Descentralização na distribuição de medicamentos enfrenta falta de estrutura
Luta contra a Aids terá de buscar novas formas de financiamento
Aids nos países pobres: lições da experiência brasileira
Poder das
multinacionais inibe a indústria brasileira
Inovação e fomento à indústria estão entre os principais desafios
Fundação produz medicamentos de qualidade para a população carente
Falta de garantia faz Ministério acabar
com os similares
Investimento em pesquisa de fármacos
no Brasil ainda é pequeno
A questão das
patentes na política brasileira de fármacos
Conhecimento tradicional e direito à propriedade intelectual
Fitoterápiocos: o mito
do natural
Artigos:
Aproveitamento das inovações farmacêuticas no Brasil
Antônio Camargo

Fitoterápicos: alternativa para o Brasil
Lauro Barata

Cronofarmacologia e Melatonina - o hormônio que marca o escuro
Regina Pekelmann Markus
Farmacologia perde integração com a cultura
Ulisses Capozoli
Notícias e "notícias" na comunicação pública da saúde
Isaac Epstein
Inovação e Gestão em um Mundo Globalizado
Antônio Buainain
Sergio Paulino de Carvalho

Acesso aos antiretrovirais na América Central
Eloan Pinheiro
Fernanda Macedo
Cristina D'Almeida

Poema
Bibliografia
Créditos

Cronofarmacologia e Melatonina -
o hormônio que marca o escuro

Regina Pekelmann Markus

Os sistemas biológicos respondem de forma integrada e, para tanto possuem sistemas especializados em manter esta integração. Uma das mais importantes formas de integração entre as diferentes funções do organismo é a capacidade de que diferentes ações sejam sequenciadas no tempo. Para que isto ocorra o organismo precisa ter uma previsão do tempo e uma pré-programação do sequenciamento das diferentes funções. Considerando-se um organismo unicelular pode-se presumir que uma ação seja desencadeante da próxima, e assim, de uma forma simples e linear, os diferentes fenômenos ocorreriam de forma concatenada. Já com um organsimo pluricelular há a necessidade de um sistema mais complexo e os seres vivos lançam mão de um sistema de marcação de tempo muito bem elaborado, que nâo somente tem a possibilidade de fazer uma marcação interna do tempo, através de células cujo metabolismo oscila de forma ritmica e constante, como também é possível que estes osciladores possam ser contralados pelo meio ambiente.

De forma bastante genérica esta é a forma como o nosso organismo consegue lidar com o tempo e cocatenar as diferentes funções que precisam ser sequenciadas. Por outro lado, disfunções no sistema de controle temporal podem levar a importantes alterações orgânicas, ou serem panos de fundo silenciosos em diferentes patogenias. Além disso, a utilização de medicamentos que alterem, ou mesmo anulem a comunicação entre o meio ambiente e o sistema de controle do tempo biológico podem promover efeitos colaterais relevantes.

O conhecimento desta importante função biológica não só facilitaria evitar-se efeitos secundários, ou mesmo conhecer a etilogia dos mesmos para com estes poder lidar, como também permitiria a administração de medicamentos e horas adequadas de tal forma a minimizar os seus efeitos colaterais. Ao estudo da interação entre o tempo biológico e a administração de medicamentos tem sido chamado de Cronofarmacologia, e para que esta ciência possa ser entendida e desenvolvida faz-se necessário conhecer quais as estruturas, vias de transmissão e hormônios implicados no controle do tempo pelo organismo humano.

Este sistema de controle do tempo é formado por um oscilador central, localizado nos núcleos supraquiasmáticos do hipotálamo (importante centro regulador das funções autonômicas), pela glândula pineal e pelo hormônio liberado por esta, chamado de melatonina. O primeiro elemento desta cadeia, os núcleos supraquiasmáticos, ciclam em um ritmo de aproximadamente 24 horas. A palavra "aproximadamente" é muito importante no contexto da Cronofarmacologia. Para cada indivíduo isolado este ritmo é fixo, por exemplo 24, 3 horas, significando que ao final de 1 semana o organismo deste indivíduo estaria defasado com o meio ambiente em 2,1 horas. Para que isto não ocorra há a necessidade de que este relógio receba infomarações sobre o desenrolar do tempo no mundo exterior. A forma mais fácil de marcar o tempo no mundo exterior é a passagem dos dias, ou seja a variação entre o claro e o escuro. De fato, o ser biológico lança mão desta informação para ajustar o seu relógio endógeno e estar sempre na hora certa!

A pergunta seguinte é como os dois sistema podem se comunicar. Logo imaginamos que isto deva ocorrer em forma de diálogo, que nada mais é do que falar e escutar e reajustar suas posições de acordo com o parceiro. Na realidade é exatamente isto o que ocorre. Uma via nervosa que sai da retina, passa para os núcleos supraquiasmáticos e segue para a glândula pineal liberando o hormônio melatonina sempre que estiver escuro. Assim sendo, existe uma interação entre o meio ambiente e o sistema marcador de tempo exógeno e também existe a liberação de um hormônio na corrente sangüinea, que irá infomar o organismo que está escuro.

Essas informações apresentadas de forma resumida foram sendo obtidas ao longo de muitos séculos. A glândula pineal foi descrita pela primeira vez há mais de dois mil anos, por Herófilo, um anatomista da Universidade de Alexandria que sugeriu ser esta um esfíncter que regulava o fluxo do pensamento, por estar localizada próximo ao sistema ventricular cerebral. Galeno, 450 anos depois, mostra que a pineal é formada por um tecido diferente do cérebro e Descartes, no século XVII, sugere ser a pineal o "centro da alma". Somente em 1880 Ahlborn, de Graaf e outros descrevem as propriedades macro-anatômicas, histológicas e embriológicas e apontam a semelhança com o "terceiro olho" ou o órgão epifiseal fotossensível das aves. A pineal de mamíferos não é fotossensível e sua função é transduzir as informações luminosas ambientais para o organismo. Assim sendo, em mamíferos a glândula pineal informa ao organismo as condições de iluminação ambiental fazendo a tradução de um sinal de entrada neural em um sinal de saída hormonal. Caricaturalmente, a pineal e seu principal hormônio, a melatonina, desempenham o papel de um maestro capaz de sincronizar o ritmo endógeno do organismo ao ciclo claro-escuro ambiental. Para desempenhar este papel a síntese deste hormônio deve ser regulada pelo ciclo claro-escuro ambiental e este deve ter a capacidade não só de atuar sobre o relógio central, mas também comunicar-se com diferentes elementos do sistema biológico, tendo assim uma ação pleiotrópica.

II

Os núcleos supraquiasmáticos (NSQ), localizados no hipotálamo, têm como função gerar ritmo circadiano endógeno (período de aproximadamente 24 horas) que pode ser sincronizado pela luz e pela melatonina. Um gerador de ritmo circadiano foi definido por Moore (1982) como sendo uma estrutura que produz um ritmo endógeno de 24 horas, independente de pistas ambientais. O gerador de ritmo endógeno deve apresentar ritmicidade independente de inervação e deve ser passível de ser sincronizado por pistas ambientais e controlado por substâncias endógenas. A atividade celular dos núcleos supraquiasmáticos (por exemplo: metabolismo de glicose, atividade elétrica celular, etc) apresenta uma ritmicidade com período ao redor de 24 horas. Lesões dos núcleos supraquiasmáticos abolem o ritmo circadiano de locomoção e de beber, a ritmicidade de corticosterona na adrenal de ratos, etc. Os núcleos supraquiasmáticos continuam ciclando mesmo quando isolados neuralmente do resto do cérebro de ratos ou in vitro em preparações de fatias de hipotálamo. Estas propriedades rítmicas conferem aos mesmos a função de relógio biológico. Este relógio é passível de ajuste através de dois processos acoplados; o fotoperiodismo ambiental e a melatonina.

A informação fótica chega à pineal por via de um circuito polissináptico que inicia-se na retina. Fibras retinohipotalâmicas projetam-se para os núcleos supraquiasmáticos e este tem conexão anatômica com a área retroquiasmática do hipotálamo (núcleo paraventricular, PVN) e este, por sua vez, faz conexão com a coluna intermediolateral da medula espinhal que emite as fibras pré-ganglionares que invervam o gânglio cervical superior simpático. A partir deste gânglio saem fibras simpáticas que inervam a glândula pineal.

Na fase de claro, os neurônios simpáticos estão quiescente, e na fase de escuro ocorre sua ativação, que foi demonstrado levar à liberação de noradrenalina e ATP (Barbosa e col., 2000). A noradrenalina liberada atua diretamente sobre adrenoceptores do subtipo a1 e b1 e o ATP atua sobre purinoceptores P2Y1 (Ferreira e col. 2001) localizados nos pinealócitos e promove a síntese de melatonina, o hormônio liberado na fase de escuro pela glândula pineal.

A estimulação dos adrenoceptores b1 é essencial para que ocorra a síntese de melatonina, portanto o seu bloqueio através do uso de bloqueadores beta impede que os organismos mantenham uma síntese adequada de melatonina. O precursor imediato da melatonina, a N-acetilserotonina, também é secretada pela pineal de forma rítmica.

O fato da melatonina da pineal ser liberada apenas no escuro propicia a este hormônio ser não só o marcador do escuro, como permitir que o organismo distinga o inverno do verão. No inverno as noites são longas e a duração do pico noturno de melatonina é maior, enquanto no verâo este pico é menor. É claro que este fato ganha mais relevância quanto mais afastados estivermos do Equador. Na realidade é a diferença de fotoperíodos nas diferentes latitudes que faz com que tenhamos que ter dados locais e bem definidos para fazer uma cronofarmacologia adequada. Dados obtidos em locais onde os invernos apresentam noites mais longas, estão na realidade contaminados com uma duração maior dos picos de melatonina.

III

Tendo descrito como ocorre a produção de um marcador de tempo que informa a todo o organismo que "está escuro" a pergunta seguinte é como atua este hormônio.

A melatonina é uma molécula com características hidrofílicas e lipofílicas e pode penetrar em todas as membranas biológicas, incluindo a placenta e a barreira hemato-encefálica. Em nível celular a melatonina pode atuar sobre receptores de membrana ou diretamente no interior da célula interferindo com processos bioquímicos de grande relevância.

A melatonina é considerada um scavenger, um "varredor" de radicais hidroxila e radicais peroxila e pode atuar indiretamente como antioxidante, com ação protetora contra diversos agentes oxidantes. É importante ressaltar que a concentração requerida para o efeito antioxidante da melatonina está na faixa de milimolar (mM), enquanto nos tecidos in vivo a faixa é de nanomolar (nM). Uma consideração importante a fazer quanto à concentração plasmática e tissular de melatonina, é que sendo este hormônio lipofílico, a compartimentalização do mesmo poderia resultar em altíssimas concentrações em locais especiais intracelulares. Trinta minutos após a injeção de 0,5 mg/kg de melatonina por via subcutânea, a concentração deste hormônio no núcleo de células da córtex cerebral e cerebelar é cinco vezes maior que em animais controle, assim sendo, melatonina administrada com fármaco pode alcançar altas concentrações no interior das células. Ainda não sabemos responder se o mesmo ocorre com o hormônio melatonina liberado da glândula pineal.

Para a avaliação dos efeitos funcionais da melatonina é relevante considerar ser este hormônio um transdutor neuroendócrino das alterações fóticas ambientais. Dessa forma a melatonina possui uma ação moduladora pleiotrópica interferindo no sistema endócrino, nervoso e imunológico e sua ação como fármaco depende diretamente da hora em que é administrada. A principal ação da melatonina é temporizar ou sincronizar diferentes funções do organismo. Fora isto, a descoberta de que este hormônio, quando testado in vitro, atua como scavanger de radicais livres abriu a possibilidade de que uma de suas funções seria a de proteger o organismo de radicais resultantes do metabolismo intermediário.

Os primeiros trabalhos funcionais com melatonina enfocavam a ação sobre a reprodução. No início do século Heubner relatou que um menino portador de pinealoma apresentava puberdade precoce e sugeriu que a glândula pineal seria responsável pelo inicício da puberdade. A ação da pineal e de seu hormônio, melatonina, sobre a reprodução tem sido confirmada. No entanto, não é possível generalizar a melatonina com um hormônio pró- ou antigonadotrófico; sua ação depende da espécie animal e da hora de administração. A melatonina serve de pista temporal para o organismo de tal forma que a função reprodutora seja ajustada às variações sazonais. Animais com reprodução sazonal e longo tempo gestacional têm fecundação invernal (ex. ovelhas), isto é, quando o fotoperíodo é curto (dias curtos, noites longas). Neste caso o aumento artificial do fotoperíodo faz com que ocorra um efeito gonadotrófico positivo com desenvolvimento da genitália. Por outro lado, quando a fecundação ocorre na primavera, isto é, dias longos (ex. hamster) melatonina passa a ter uma ação antigonadotrófica. Hamsters pinealectomizados perdem a capacidade de apresentar controle sazonal da genitália e as gônadas mantem-se sempre ativas. Assim sendo, a melatonina traduz informações temporais para o eixo hipotálamo-hipófise-gônadas, coordenando sinais para a reprodução.

A ação da melatonina sobre o sistema imune e as células imunocompetentes tem ganho importância a partir de 1980. Desde a década de 20 até a década de 70 havia vários relatos controversos sobre os efeitos da pinealectomia na resposta imunológica, e apenas a redução precoce do timo de camundongos foi confirmada por diferentes autores (cf. Maestroni e Conti, 1993). Estudos mais recentes demonstram que tanto melatonina endógena como melatonina exógena administradas no final da tarde, mas não no início da manhã, podem aumentar a reposta primária e secundária de produção de anticorpos em camundongos quando estimulados por hemáceas de carneiro. Melatonina em doses 20 vezes maiores que as efetivas quando administradas no início da manhã passa a ter uma ação imunodepressora. Além disso, a melatonina também pode aumentar a ação citotóxica dos linfócitos T, quando administrada no final da tarde. Esta resposta também não é observada, ou é observada na direção inversa, quando melatonina é administrada no início da manhã. Melatonina pode ter uma ação imunoestimulante em animais imunodeprimidos por estresse agudo ou por administração de glicocorticóides (Maestroni e Conti, 1990, 1991). Melatonina é capaz de aumentar a estimulação de citocinas (IL- 2 e interferon gama) e a produção de opióides em linfócitos T, que possuem receptores de membraba para este hormônio. Experimentos clínicos têm evidenciado uma ação positiva da melatonina como coadjuvante em terapia com IL-2, com o objetivo de reduzir a dose de citocina administrada que é uma substância com alta toxicidade.

Os dados descritos acima permitem evidenciar uma ação da melatonina sobre o sistema imune, por outro lado, produtos derivados de células imunocompetentes interferem na produção de melatonina. Interferon-y é capaz de estimular a síntese de melatonina pela glândula pineal e interleucina-2 pode abolir o ritmo noturno de melatonina. Nós temos estudado o efeito da melatonina e da própria glândula pineal sobre a resposta inflamatória crônica e aguda. A lesão crônica gerada ao se injetar o bacilo responsável pela tuberculose (BCG) em pata de camundongos varia circadiannamente. A redução noturna da lesão é devida à melatonina liberada pela glândula pineal. Neste modelo experimental já foi mostrada uma importante interação entre a ação de corticosteróides e a produção de melatonina pela pineal. Em modelo de inflamação aguda pudemos verificar que a melatonina em concentrações fisiológicas era capaz de inibir o rolling e a adesão de leucócitos a vênulas pós-capilares. O efeito sobre a adesão, mas não o efeito sobre o rolling são mimetizados por N-acetilserotonina, o precursor imediato da melatonina. Estes efeitos são devidos a ação da melatonina, ou de seu precursor sobre receptores de membrana e são obtidos com doses muito baixas, na faixa de picomolar. Portanto, além de ser compatível com uma ação fisiológica, são mecanismos que devem ser levados em consideração quando da terapia com atiinflamatórios.

Considerando os poucos exemplos mencionados acima, e o conceito de que o organismo varia ao longo do dia de forma programada e previsível, torna-se muito relevante que ao administrarmos tratamentos, principalmente aqueles que são administrados cronicamente, sejam levados em consideração os parâmetros da cronofarmacologia. Estes cuidados podem não só facilitar a ação dos fármacos, como também evitar importantes efeitos colaterais, ajustando a administração ao horário mais apropriado.


Regina Pekelmann Markus é professora do Laboratório de Cronofarmacologia do Departamento de Fisiologia do
Instituto de Biociências - USP

Atualizado em 10/10/2001

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2001
SBPC/Labjor
Brasil