Einstein ainda precisa provar sua inocência?

Por Peter Schulz

Por que essa insistência em anunciar em manchete uma descoberta científica como sendo mais uma prova de que Einstein estava correto? A teoria não precisa de mais provas, ela já é aplicada no cotidiano. Mas há outra insistência, que talvez explique a primeira: por que ainda tem gente que insiste que Einstein estava errado? O eclipse de 1919 não escapa, um século depois. Algumas medidas realizadas à época foram colocadas em dúvida, dando origem à “denúncia” de Richard Moody Jr. sobre a “conspiração” de Sobral e Príncipe. Mas em ciência, resultados importantes são reproduzidos para confirmar ou aparar arestas. E, no caso, foram repetidos inúmeras vezes (em particular durante eclipses em 1922, 1953 e 1973) por grupos diferentes. Confirmando sempre o mesmo resultado.

Não deixa de ser curioso que o centenário da observação do eclipse solar em Sobral (e na Ilha de Príncipe) seja marcado pela fotografia de um buraco negro. A manchete anuncia: “Primeira fotografia de um buraco negro confirma a teoria da relatividade de Einstein”. A foto é incrível e importante, embora haja quem conteste que seja uma foto, pois demorou anos para ser tirada. Para mim é uma foto sim, pois, afinal de contas, a primeira fotografia, tirada por Nicéphore Niépce, precisou de dias de exposição, também um tempo inimaginável perto das frações de milésimo de segundo das máquinas fotográficas atuais[1].

No entanto, buracos negros já haviam sido detectados antes de outras maneiras, mas escrupulosamente chamados de “candidatos a buracos negros”. E o trabalho de 2019 muito menos confirma a teoria da relatividade de Einstein. Quer dizer, a existência de buracos negros é uma possibilidade (solução) das equações de campo da teoria da relatividade, mas na qual Einstein não acreditava como fisicamente plausível. Apesar disso, sítios por aí atribuem a Einstein a predição desses objetos curiosos, desconsiderando uma história com uma linha do tempo complicada.

Assim, chego ao fim desse desvio e volto ao tema: por que essa insistência, que dura um século, em anunciar em manchete uma descoberta científica como sendo mais uma prova de que Einstein estava correto? A teoria não precisa de mais provas, ela é aplicada em nossa vida cotidiana, já que o sistema GPS só funciona graças a ela[2]. Mas existe o outro lado da moeda, outra insistência, que talvez explique a primeira: por que ainda tem gente que insiste que Einstein estava errado? Errado em muitas coisas, embora certo em outras, de acordo com a conveniência do conspiracionista ou pseudocientista (que em geral vão juntos).

O eclipse de 1919 não escapa dos conspiracionistas ainda hoje, um século depois. Algumas medidas realizadas à época foram colocadas em dúvida, dando a origem ao título “Os dados do eclipse de 1919: o maior embuste da ciência no século XX”. Richard Moody é o cavaleiro que insiste na conspiração de Sobral e Príncipe.

O que celebramos em 29 de maio
Mas antes de entender essas insistências, o melhor resumo do que celebramos é a primeira página do extenso artigo de 1920, que relata “A determinação da deflexão da luz pelo campo gravitacional do Sol a partir de observações do eclipse total em 29 de maio de 1919”. Assinam o texto Sir Frank Dyson, então Astrônomo Real Britânico, Arthur Eddington, professor de Cambridge e C. Davison – que não tinha título especial. A ilustração dessa primeira página apresenta todos os elementos importantes. Índice: propósito das expedições, preparações das expedições, a expedição a Sobral, a expedição a Príncipe e as conclusões gerais.

O propósito das expedições está magnificamente resumido no título e no resto da primeira página, que segue o sumário. A ideia era de, aproveitando o eclipse solar, coletar imagens de estrelas, cujos raios de luz passassem perto da nossa estrela e ver se sua massa deflete ou não a luz vinda desses objetos distantes. Três possibilidades colocadas: não acontece nada, desvia sim, mas de acordo com a gravitação de Newton, ou desvia segunda a teoria da relatividade geral. Esta última previa o dobro do desvio antevisto pelo grande mestre do século XVII. Os números das previsões estavam lá. Para ser bem coerente, pensando nos dias de hoje, seria necessário mencionar uma quarta possibilidade: nenhuma das respostas anteriores.  Se nenhuma das três hipóteses se verificasse, teríamos de concluir que uma outra teoria ainda seria necessária.

Antecipo que deu Einstein, como pode ser lido em outros artigos deste dossiê da revista ComCiência. Só para ficar no terreno da imaginação, vamos supor que o resultado fosse o dobro do que previa a teoria de Einstein e, portanto, o quádruplo da de Newton. A relatividade geral seria riscada dos compêndios da ciência?

Nada disso, teríamos que fazer novas medidas para entender o que estaria acontecendo de fato. Com isso vou ao final desse precioso documento, o artigo de Dyson, Eddington e Davison, com algumas outras partes também ilustrando esse texto. A seção 39 atesta a importância da expedição de Sobral e o começo da página 332 (penúltima) afirma: verifica-se a previsão da relatividade geral. No entanto, adverte e sugere que a observação é de tal interesse que seria desejável repeti-la em eclipses futuros (é bom lembrar que datas e horários de eclipses são perfeitamente preditos no âmbito da gravitação de Newton).

É isso que acontece em ciência: resultados importantes são reproduzidos para confirmar e aparar possíveis arestas. E, no caso, foram repetidas inúmeras vezes, em particular durante os eclipses em 1922, 1953 e 1973, realizados por grupos diferentes e confirmando sempre o mesmo resultado[3].

“Big science”, mau tempo e… política
Houve, no entanto, problemas em 1919, devidamente relatados e publicados no artigo de 1920, que descreve detalhadamente os preparativos e as expedições em si. O artigo menciona também os acordos de colaboração e de financiamento e detalhes da organização. Pode-se dizer que o empreendimento foi um precursor do que décadas mais tarde passou a se chamar “big science”.

Voltando aos problemas de 1919, algumas observações foram prejudicadas pelo mau tempo em Príncipe, liderada pelo próprio Arthur Eddington, idealizador da empreitada. Com isso, cientistas levantaram questões quanto à qualidade e precisão das observações e se ela seria suficiente para distinguir diferentes efeitos que entram no cenário de tão delicada observação.

Se as observações durante eclipses posteriores deram ganho de causa a Einstein, a observação original continuou sob suspeita, e não apenas de natureza técnica. Eddington foi um defensor de primeira hora das ideias de Einstein, mas numa Inglaterra que estava em guerra contra a Alemanha, terra de Einstein. Ambos, além disso, eram pacifistas. Rumores havia de que Eddington teria um viés favorável ao colega alemão e assim as observações e medidas teriam sido forçadas em favor da relatividade e contra Newton, orgulho inglês. Mathew Stanley se debruça sobre o tema no artigo “Uma expedição para curar as feridas da guerra”[4]. Vale uma citação direta:

“As evidências não dão razão à ideia de que Eddington e seus colaboradores não foram absolutamente rigorosos. O pacifismo de Eddington não se reflete em dados manipulados, mas no significado da expedição e na maneira que ela entrou na memória coletiva como uma celebração de cooperação internacional na esteira da guerra.”

No entanto, Eddington só foi “inocentado” em uma efeméride anterior a essa: uma “sindicância” em 1979, reexaminando as placas fotográficas originais de Sobral, revelam que tudo foi feito de acordo com o melhor padrão de conduta. Estava, além disso, correto do ponto de vista científico.

Caso resolvido entre cientistas, mas não entre conspiracionistas e pseudocientistas, que são a mesma coisa. Para eles, Sobral e Príncipe em 1919 seriam uma grande conspiração e não um bem realizado experimento precursor de “big science”. Nas palavras de um dos homens de frente dessa estranha comunidade, Richard Moody Jr:

“Arthur Eddington viajou a Príncipe, África, com o propósito manifesto de provar que Einstein estava certo. Antes disso, era defensor de Einstein devido, em parte, ao compartilhamento da mesma visão política. Zelando para ser ao mesmo tempo mediador da paz e criador de um rei (Eddington queria ser conhecido como o homem que descobriu Einstein), Eddington engajou-se em corrupção e derrogação de dados científicos, do método científico e de boa parte da comunidade científica. Até hoje, esses dados completamente fabricados são citados por cientistas proeminentes e meios de publicação.”

Moody Jr. segue dizendo que essa “corrupção e derrogação” teriam por objetivo impedir o desenvolvimento de teorias alternativas, transformando uma teoria obscura (a relatividade geral) em uma teoria forte da noite para o dia. Ou seja, o anúncio do propósito do artigo com os dados e sua análise de 1920 (veja a ilustração) não considera o quarto item que eu mencionei acima: a possibilidade de que os resultados encontrados não concordariam com nenhuma das possibilidades anteriores. Bem, não havia indícios (e não existem) de outras possibilidades – e na época a pseudociência não era uma preocupação.

O eclipse de 1919 é um bom exemplo para entendermos a “argumentação” pseudocientífica, que se apega a interpretações enviesadas de experimentos iniciais que ganharam reconhecimento histórico. A ciência seria linear, o experimento que se transforma em marco histórico seria, ao mesmo tempo, o evangelho definitivo. Pseudocientistas simplesmente deixam de considerar que teorias são testadas (e re-testadas) por uma miríade de experimentos de grande precisão e diferentes metodologias, como diz Michael Brown em artigo com o instigante título “Por que a relatividade geral de Einstein é um alvo tão popular para malucos?”

A pobre teoria da relatividade sofre ataques pseudocientíficos em vários outros flancos e a “conspiração” do eclipse de 1919 é apenas um deles. Os que ainda acreditam em ciência podem ficar tranquilos e lembrar-se de Einstein toda vez que marcarem o endereço do novo restaurante da moda no Waze. Mas fica a pergunta do título: quando será que Einstein não precisará de advogados?

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em física e cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010). É secretário de comunicação da Unicamp.

[1] Parece que a imagem mesmo foi coletada em três dias, mas a “revelação” da “foto” demorou 2 anos.

[2] “Relativity and the global postioning system”, Neil Ashby, Physics Today vol. 55(5), 2002, pp. 41-7.

[3] “Testing relativity from the 1919 eclipse – a question of bias”, Daniel Kennefick, Physics Today, vol. 62(3) 2009, 37-42.

[4] “An expedition to heal the wounds of war – The 1919 eclipse and Eddington as quaker adventurer”, M. Stanley, Isis vol. 94 57-89 (2003).