Embora essenciais, testes não garantem controle da epidemia, dizem cientistas em webinário

Por Luciana Rathsam e Raquel Torres

Para enfrentar a epidemia, não basta fazer testes; é preciso saber interpretar resultados, estabelecer estratégias e tomar decisões. Esse foi o ponto de vista defendido por especialistas no webinário promovido nesta quinta-feira, 16, pela Ciência na Rua, pela Agência Bori e  pela Rede Covida, e que discutiu as possibilidades e limites dos testes do coronavírus com cientistas e com os jornalistas de ciência Herton Escobar e Mariluce Moura.

Diferente de outras doenças, em que o enfoque do debate está nos sintomas e na progressão da doença, no caso da Covid-19, o diagnóstico por testes assumiu uma importância fundamental. Fato é que as evidências clínicas da doença nem sempre são suficientes para identificar a infecção, tampouco o padrão de transmissão. Há a possibilidade de transmissão do novo coronavírus mesmo antes de surgirem sintomas, e em indivíduos assintomáticos. Como resultado, “temos uma enfermidade que exige testes para que a gente entenda o padrão de transmissão”, conforme salienta Manoel Barral Neto, médico epidemiologista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-BA) que participou do webinar.

Há dois grupos de testes, não excludentes, mas complementares. Um grupo compreende o chamado “teste molecular”, como o RT-PCR, voltado à detecção do RNA do vírus em amostras coletadas nas vias aéreas dos indivíduos sintomáticos ou assintomáticos. O resultado positivo neste teste indica a presença do vírus e a possibilidade de transmiti-lo. Por ser um método mais caro e de disponibilidade reduzida, tem sido prioritariamente usado em pacientes sintomáticos.

O outro grupo de testes inclui o “teste sorológico”, que aponta evidências de uma resposta imunológica contra o vírus, ou seja, a presença de anticorpos – imunoglobulina M (IgM) e imunoglobulina G (IgG) – que indica que ocorreu o contato com o vírus. Esse teste pode ser útil para identificar quais indivíduos poderiam talvez retomar às suas atividades, pois eventualmente estariam protegidos contra uma nova infecção. “A presença de anticorpos contra o vírus, em geral, indica proteção. Mas nós não temos evidências ainda, na Covid-19, de quanto essa proteção é efetiva”, lembra Manuel. O teste sorológico também pode ser usado em grupos populacionais, para verificar a imunidade comunitária ou a “imunidade de rebanho”, que ocorre quando a quantidade de pessoas na população que já apresentam resposta imune ao vírus é tão alta que dificulta a sua transmissão e, assim, aqueles que ainda não tiveram contato com o vírus acabam sendo protegidas.

Embora seja mais simples e de menor custo, o teste sorológico também apresenta limitações pelo risco de produzir resultados falso-negativos nos primeiros dias de infecção. Idealmente, este teste deve ser aplicado a partir do 14º dia após as primeiras manifestações de sintomas, quando o índice de detecção dos anticorpos é maior. “Esse teste vai realmente estar positivo em 75% das pessoas a partir de 10 a 14 dias; e com 14 dias você à espera que uma faixa de 90% esteja positivo”, ressalta o epidemiologista.

Ester Sabino, professora do Departamento de Moléstias Infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e uma das responsáveis pelo sequenciamento do genoma do novo coronavírus em tempo recorde, destaca que outra questão que chamou a atenção para os testes foi a notícia amplamente divulgada de que os países que izeram mais testes teriam tido melhor condição de controlar a epidemia. Também ficou evidente a dificuldade de produção local e rápida de testes no país. “Ainda poucas empresas produzem no Brasil, e muitos componentes dessa produção são importados”, explica a médica.

Quando o assunto é testes, a questão da qualidade também é colocada em cheque; afinal, testes rápidos são ruins? A avaliação exige cuidado, para que os resultados científicos sejam corretamente compreendidos. Os testes podem não se mostrar eficientes por serem aplicados de forma inadequada ou no tempo incorreto. No atual momento da epidemia no Brasil, os especialistas avaliam que é esperado que a frequência de anticorpos na população seja baixa; mas, se for a análise for feita em um ambiente hospitalar, o valor preditivo positivo do teste será elevado. Como explica Manuel Barral: “Depois da primeira onda, a frequência de pessoas com soropositividade deve ser 1% a 2% [da população]. Tudo depende de onde será testado – num hospital, ou em outra região. Há resultados científicos que fazem sentido, mas são mal interpretados. Então, é necessário saber interpretar os resultados com muita cautela, e ter um plano claro do que queremos testar”.  

Para além dos testes

Apesar de essenciais, os testes não garantem, por si só, o controle da epidemia e a livre movimentação das pessoas sem expor a população a um grande risco de contágio. Durante o webinar, os pesquisadores deixaram claro a necessidade de um planejamento de ações efetivas, combinando a utilização dos testes de forma racional, com outras estratégias, como o monitoramento de dados do sistema de saúde, a vigilância ativa e o envolvimento da atenção básica.

Ester defende que um caminho seria aplicar mais testes moleculares, para aumentar a detecção de casos ativos, e estabelecer o isolamento social dos contactantes, independente de testes e resultados. Para viabilizar essa sugestão, ela afirmou que deve ser desenvolvido um sistema de informação e de infraestrutura de web que permita definir os locais de alta transmissibilidade para que seja possível rapidamente rastrear e bloquear a movimentação das pessoas contactantes dos infectados. Considerando a estratégia de saúde da família do SUS, a pesquisadora sugeriu a possibilidade de associar os testes a uma ferramenta que informe ao agente comunitário de saúde da probabilidade de transmissão naquela comunidade, para que se possa implementar ações de controle locais.

A possibilidade de soluções adaptadas às condições locais foi também salientada pelos cientistas, que ressaltaram que o Brasil é muito diverso e que os municípios e regiões enfrentam situações distintas de avanço da epidemia. Jaqueline Goes, pós-doutoranda no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo (IMT-USP), acrescentou ainda a necessidade de estudar como o vírus está se adaptando à população brasileira, indicando que o sequenciamento genético do vírus pode ajudar a entender como tem ocorrido a dispersão do vírus no Brasil. Ela acredita que a testagem em massa possa ajudar a definir ações de saúde pública. “Minha sugestão para um momento futuro seria a testagem por teste rápido, e, no caso dos positivos, mapear como está havendo a dispersão”, explicou a cientista.

Graças às pesquisas é que podemos passar a entender a dinâmica da Covid-19. Há relatos na Coreia do Sul de indivíduos que voltam a apresentar resultado positivo para o novo coronavírus depois de terem sido declarados curados. Sobre isso, Jaqueline Goes esclarece que há duas hipóteses para interpretar esses casos: ou os vírus sofreram reativação, ou os indivíduos não apresentaram uma resposta imune adequada diante da primeira infecção, possibilitando assim a reinfecção. Mas ainda não há evidências científicas que apoiem estas hipóteses.

O que aprendemos?

Como sintetizou Manuel Barral, há duas mensagens de aprendizado que não podemos perder: a primeira é que o país é muito diverso, o que faz com que a epidemia não tenha velocidade de propagação igual em todos os locais. Assim, as estratégias de combate à Covid-19 devem ser adaptadas a cada região. A segunda mensagem é que a convivência humana com o vírus está só começando. “Depois do pico, o problema não acabará. O que todas as modelagens mostram é que teremos várias ondas posteriores. Então, essa estratégia deve incluir também a fase pós-primeira curva”, enfatiza. Neste cenário, o epidemiologista acredita que além de investir em um grande número de testes, também será preciso fazer o monitoramento de dados e envolver toda a atenção básica.

A crise também evidenciou a dificuldade de empresas brasileiras produzirem testes em quantidade suficiente para atender ao aumento repentino de demanda. Esse fato trouxe à luz a necessidade de reduzir a dependência em relação a países estrangeiros e de se investir mais na ciência brasileira, que tem sofrido inúmeros cortes nos últimos anos. Os esforços de centros de pesquisa e cientistas não param, a despeito do baixo investimento de recursos. Conforme conta Jaqueline Goes, novos testes estão em desenvolvimento no país com lançamentos previstos para o final de abril e de maio, segundo informações do Ministério Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) “Justamente são testes que utilizam sensores e não precisam de insumos (reagentes) importados; mas precisam ser testados no quesito de sensibilidade”, explica.

Apesar da ciência acelerar as pesquisas, desenvolvimento de testes, tratamentos e vacinas, provavelmente como nunca antes vivenciamos, Manuel lembra que, mesmo se a primeira vacina testada for efetiva, ainda será preciso aguardar um período de um ano até que ela esteja disponível. Por isso, “precisamos ter um preparo para lidar com a situação, mesmo sem vacina”, defendeu.

Lab-19 é uma produção dos alunos e alunas da Oficina de Jornalismo  Científico II do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor-Nudecri/IEL/IA, da Unicamp, para cobrir a pandemia da Covid-19. Os textos desta série extraordinária são editados por Germana Barata e Sabine Righetti, professoras do curso.