Entre os extremos do som e silêncio

Por Rogério Bordini

Em um mundo progressivamente ruidoso, a busca pelo silêncio absoluto parece ilusória. A crescente cacofonia da vida moderna não apenas desafia essa proeza, como também impõe obstáculos cada vez maiores à percepção sonora e à harmonia natural.

Imagem: Rogério Bordini com IA Stable Diffusion

É possível viver em completa abstenção sonora? Resposta curta: não. O som é um componente intrínseco ao conglomerado da vida terrestre, para interação socioambiental, desenvolvimento cognitivo e às funcionalidades do organismo. Você pode se isolar em um local à prova de som mas, se seus exames estiverem em dia, descobrirá que o corpo é uma grande sinfonia de micro ruídos: o roçar dos cílios no piscar de olhos, o fluxo sanguíneo dançando pelas veias jugulares e o cadenciamento pulsátil do coração, tudo em alto volume.

Algumas pessoas sentiram isso na pele, literalmente. Fernando Iazzetta, professor de Música e Tecnologia do Departamento de Música da USP, teve a oportunidade de visitar dois dos lugares mais silenciosos no mundo: as câmaras anecoicas do Institute for Research and Coordination in Acoustics/Music em Paris e a do Sonic Arts Research Centre em Belfast. Essas salas, projetadas para conter reflexões de ondas sonoras e eletromagnéticas, são utilizadas para testes de dispositivos eletrônicos, transportes e treinamento de astronautas. “A sensação do corpo é de estranhamento, como se estivéssemos em um estúdio de gravação comum, mas com um isolamento muito bem feito e com as superfícies tratadas para que não exista reflexão do som”, descreve.

A câmara na sede da Microsoft, em Redmond, EUA, construída em 2015, é oficialmente reconhecida pelo Guinness World Records como o lugar mais silencioso da Terra. O bunker, composto de seis camadas de concreto e aço, registra uma média de ruído de 20,35 decibéis negativos (dB) – muito abaixo da capacidade auditiva humana, que vai de 0 a 120 dB. Para efeito de comparação, uma biblioteca silenciosa atinge 30 dB, enquanto o som mais alto já registrado alcançou 310 dB, na erupção do vulcão Krakatoa, localizado entre as ilhas de Java e Sumatra, na Indonésia, em 1883.

Pessoas que permaneceram aproximadamente uma hora em câmaras anecoicas relataram ansiedade, tontura e náusea. De acordo com Iazzetta, que é também coordenador do Núcleo de Pesquisas em Sonologia da USP, isso ocorre pois estamos acostumados a ouvir o som direto e suas reflexões no ambiente. Essa falta de reflexões cria uma dissonância sensorial e perda de referência do espaço, afetando a percepção auditiva e, por consequência, a sensação de equilíbrio. Como o mundo é tipicamente percebido pelos sentidos simultaneamente (como visão, audição e tato, por exemplo) – então é natural que a perturbação de um sentido cause confusão nos outros.

Silêncio, uma ilusão afinal?

Muitos a essa altura podem se perguntar: se a inexistência sonora não é possível, o silêncio realmente existe? Iazzetta esclarece uma confusão em torno da palavra som, que descreve dois conceitos distintos: o fenômeno mecânico no ambiente e a sensação no cérebro em resposta a essa vibração. Embora relacionados, esses conceitos têm naturezas diferentes.

Alcançar o silêncio absoluto, sem movimento mecânico ou vibração no ambiente, é difícil, pois exigiria a completa imobilidade das moléculas do meio. E mesmo na ausência de movimento mecânico, o sistema auditivo humano pode gerar sensações sonoras devido à atividade das células capilares na cóclea. Algo semelhante ocorre com pessoas e animais com deficiência auditiva, que experienciam sons de modos singulares, por vibrações ou mudanças na pressão do ar sentidas em outras partes do corpo, como na pele ou ossos.

Já Eduardo Nespoli, docente de Som, Tecnologias e Estéticas do Departamento de Artes e Comunicação da UFSCar, define que o silêncio não deve ser pensado como ausência de som, mas como som potencial. “O silêncio e o ruído de fundo são virtualidades sonoras. Destacamos dessas virtualidades os materiais sonoros pelos quais produzimos sentidos. No mundo ocidental, a abordagem dada ao silêncio e, por consequência ao ruído, muitas vezes reflete uma tentativa constante de separar um do outro. O mesmo ocorre com a relação entre os sons musicais e os sons ambientais”, explica.

O silêncio absoluto se torna ainda mais improvável em um mundo onde a atenção está cada vez mais dividida por uma variedade crescente de estímulos sonoros de diferentes origens, formas e intensidades. Com o aumento populacional, urbanização e avanço de fontes móveis de ruído, o Natural Sounds and Night Skies Division, agência dos EUA dedicada à preservação de ambientes acústicos, estima que a poluição sonora possa triplicar a cada 30 anos. Isso leva a uma previsão preocupante: espaços com menor nível de ruído tendem a se tornar mais raros. Trata-se de um alerta a órgãos de saúde pública e legisladores para que essas questões sejam vistas com urgência – ou melhor, ouvidas.

Uma ameaça invisível, mas potencialmente artística

O avanço dos sistemas sonoros e a modernização das cidades emanciparam os sons de suas fontes originais, concedendo-lhes independência e amplificação, fenômeno denominado esquizofonia por Murray Schafer. Isso permite que gravações sejam reproduzidas em diferentes locais, tempos e até mesmo no espaço – como realizado pelo projeto SpaceSpeak. Embora questionado por pesquisadores acerca de sua visão eurocêntrica de categorização sonora, Schafer foi pioneiro na ecologia acústica e defensor da conscientização sobre a poluição sonora. Além disso, foi inspirado pelos conceitos de audição criativa e consciência sensorial de John Cage, compositor, filósofo e também um entusiasta das câmeras anecoicas.

Em seus trabalhos, Cage discute questões como o acaso, o silêncio e a incorporação de elementos não musicais nas composições, as quais até hoje influenciam a música contemporânea e a arte performática. Uma de suas peças mais icônicas é 4’33”, que desafia o conceito tradicional de música e questiona o silêncio absoluto – ao assisti-la, não se preocupe, seu sistema de som não está quebrado. A obra instiga os ouvintes a reconsiderarem suas preconcepções acerca de música e silêncio, estimulando uma maior consciência em relação aos sons ao redor e às implicações que exercem sobre nós.

A exposição prolongada a ruídos, segundo a Organização Mundial da Saúde, pode ter efeitos prejudiciais à saúde física e mental, como aumento do risco de hipertensão, deficiência auditiva e prejuízos cognitivos. Animais domésticos e selvagens também podem ser afetados, com estresse, perda de habitat, alteração na reprodução e busca por alimentos, impactando a sobrevivência e o equilíbrio de ecossistemas. Um exemplo são as ondas de baixa frequência (infrassons) geradas por transportes marítimos que interferem na comunicação, navegação e alimentação de animais marinhos, de plânctons a baleias.

Para Nespoli, um caminho para redução da poluição auditiva reside na percepção qualitativa das paisagens sonoras. “Temos que interagir com o silêncio e os ruídos ambientais complexos, fazer uso de suas potencialidades para recriar novas formas de relação em uma perspectiva ecosófica. A poluição também é produto do modo pelo qual pensamos e separamos a técnica da estética, colocando muitas vezes nossa potência sensorial em um plano secundário”, reflete.

Imagem: Rogério Bordini com IA Stable Diffusion

Desde a infância, há prioridade sobre o que é visto e falado – e menos foco no que deve ser ouvido. Quem nunca saiu do cinema mal lembrando da trilha sonora de um filme? Isso é uma herança das raízes da educação formal, que remontam às civilizações antigas, como Grécia e Roma, onde o foco estava no desenvolvimento da alfabetização por meio da leitura e da escrita, o que pode ter levado a uma subvalorização das habilidades da escuta ativa no desenvolvimento curricular.

Iazzetta e Nespoli destacam, portanto, a importância da percepção auditiva em suas múltiplas dimensões. Um exemplo citado por Iazzetta é a área de pesquisa interdisciplinar estudos do som, que aborda a natureza multifacetada do som sob perspectivas antropológicas, sociológicas, psicológicas, culturais e históricas, como seu papel na formação de identidades e comunidades, políticas de escuta e usos artísticos.

Nespoli ressalta a importância de considerar que o mundo não é estático, mas um reflexo do modo coletivo pelo qual interagimos com os espaços sonoros que habitamos. Essa abordagem contribui para a construção de uma perspectiva ecológica que aprofunda a compreensão da relação entre a escuta, o ambiente natural e os recursos tecnológicos que criamos, não apenas em suas dimensões produtivas, mas também estéticas. Ao adotar essa visão sobre a densidade estética dos sons do mundo, perceberemos que até estímulos não tradicionalmente musicais têm relevância artística e sensorial – como o próprio silêncio.

Rogério Bordini é doutor em artes visuais (Unicamp) e em interação humano-máquina (Helmut Schmidt University). Também é mestre em educação e graduado em educação musical (UFSCar). Atualmente cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.