Aprender e ouvir música nos torna mais inteligentes?

Por Maria Clara Rossini

O hábito pode até gerar outras habilidades cognitivas – mas a associação entre música e aumento de QI não passa de um mito

A noção de que aprender música melhora as habilidades cognitivas faz parte do senso comum. Um pouco dessa ideia vem da associação entre inteligência e composições sofisticadas, como as de Mozart e Beethoven. A música, no entanto, vai muito além dos arranjos eruditos do século 18. Afinal, o que as pesquisas dizem sobre o aprendizado musical?

“Como tudo na ciência, a resposta não é simples”, diz Guilherme Delmolin, professor de psicologia da Universidade São Caetano do Sul. Ele é músico e pesquisador vinculado ao Projeto Neurociência e Música da UFABC.

Existem dois efeitos possíveis. Um deles é o de transferência curta, quando uma habilidade adquirida com um instrumento musical auxilia em uma tarefa relacionada. Por exemplo: uma pessoa que sabe tocar violino provavelmente terá mais facilidade em aprender violoncelo. O mesmo vale para violão e guitarra, teclado e piano, entre outros.

As relações menos óbvias se encaixam nos efeitos de longa transferência: quando o aprendizado de música influencia uma tarefa não relacionada. Esses são mais difíceis de serem mensurados – em parte porque precisam de um acompanhamento a longo prazo, e em parte porque buscam comprovar a relação entre habilidades que, aparentemente, não têm nada em comum.

Delmolin diz que os estudos da área não encontram uma relação entre o aprendizado de música e a inteligência de forma geral. Mas há benefícios em aspectos mais específicos, como a percepção auditiva. Um estudo conduzido pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) mostrou que crianças que participam de aulas de piano conseguem distinguir melhor as tonalidades, o que se traduziu em uma facilidade em diferenciar palavras faladas. O estudo foi feito com crianças cuja língua nativa é o mandarim, um idioma em que pequenas mudanças de tonalidade resultam em palavras totalmente distintas.

Ou seja: uma habilidade musical se transferiu em uma habilidade linguística. Esse foi um estudo randomizado, em que o grupo que recebeu aulas de piano era comparado a um grupo que recebeu aulas de leitura, e outro que não recebeu intervenção alguma.

Não há tantos estudos com esse rigor acadêmico, então é difícil apontar que a habilidade musical cause outros efeitos de longa transferência. Independentemente disso, saber tocar um instrumento é um estímulo cognitivo por si só, mesmo que não se traduza em habilidades distintas.

Efeito Mozart

Em 1993, uma pesquisa conduzida pela psicóloga Frances H. Rauscher associou as composições de Mozart a um melhor desempenho em testes que envolviam inteligência espacial. Segundo o estudo, não seria necessário tocar, mas só ouvir as músicas para notar a melhora. Na época, a imprensa divulgou a pesquisa de uma forma que soou como “ouvir Mozart te deixará mais inteligente”. Foi o suficiente para introduzir o “Efeito Mozart” no imaginário popular – e fomentar as vendas de CDs de música erudita.

Isso provocou um aumento de vendas de discos nos Estados Unidos, e o impacto do artigo foi tão grande que quase virou política pública. Em 1998, o governador da Georgia propôs oferecer discos de música clássica a todas as crianças nascidas no estado, o que custaria US$105 mil por ano aos cofres públicos (cerca de R$1 milhão, em valores atuais). O plano não foi aprovado, mas estimulou a Sony Records a doar CDs aos hospitais do estado.

Mas isso faz sentido? Primeiramente, é importante entender o que dizia o tal artigo de 1993, um experimento realizado com 36 estudantes universitários. Eles ouviram 10 minutos da sonata para dois pianos em ré maior e então fizeram um teste de raciocínio espacial com questões de múltipla escolha, o teste Stanford-Binet.

Os participantes também fizeram o teste após ouvir 10 minutos de silêncio e 10 minutos de um áudio com instruções de relaxamento (uma pessoa falando em tonalidade monótona). Após o silêncio, obtiveram, em média, 54 pontos no teste. Depois do áudio, 54,61 pontos. E a composição de Mozart levou a uma média de 57,56 pontos.

Isso equivale a 110, 111 e 119 pontos de QI relacionados ao raciocínio espacial – e eram comuns as alegações de que ouvir Mozart aumentava o QI em 8 ou 9 pontos. Mas há um detalhe: esse efeito só dura entre 10 e 15 minutos.

O artigo esclarece que os benefícios da música clássica são temporários, e só duraram enquanto os participantes faziam o teste. Os pesquisadores esclarecem que são necessárias mais variações do experimento, como incluir um período de pausa entre a música e a aplicação do teste, e experimentar com outros gêneros musicais.

Tudo isso foi publicado em um artigo de uma única página no periódico Nature. O texto não destrincha a metodologia nem inclui as seções clássicas de um artigo científico (introdução, objetivos, resultados). Além disso, tentativas de reproduzir o experimento não chegaram a resultados duradouros, o que põe em xeque sua validade científica. 

E não foi por falta de insistência. Uma meta-análise publicada em 1999, também na Nature, avaliou 16 experimentos semelhantes e concluiu que os efeitos, de fato, eram passageiros e não refletiam um aumento de inteligência.

Um dos maiores experimentos sobre o tema foi conduzido no Reino Unido em 1996, e seus dados foram reanalisados em 2005. Com a ajuda da emissora BBC, a pesquisa reuniu 8 mil crianças entre 10 e 11 anos de idade, de 207 escolas pelo país.

A amostra foi dividida em três grupos: o primeiro ouviu dez minutos do Quinteto de Cordas em ré maior, de Mozart; o segundo escutou apenas uma descrição do experimento em si; e o terceiro ouviu uma sequência de três músicas pop: “Country House”, do Blur, “Return of the Mack”, de Mark Morrison, e “Stepping Stone”, de Duffy. Depois, as crianças fizeram um exercício de inteligência espacial relacionado a formas e dobraduras de papel.

Assim como no experimento de 1993, os estudantes que ouviram música performaram melhor na tarefa. Com uma diferença: o grupo que ouviu música pop foi ainda melhor que o de música clássica. Os autores chamaram isso de “Efeito Blur”.

Ao final do artigo, eles concluem que a diferença não está no estilo musical em si, mas no que o indivíduo gosta de ouvir. A hipótese é que o engajamento na música serve como um estímulo inicial ao cérebro para realizar outra tarefa. Mas isso só serve como start, e não garante um melhor desempenho por muito tempo.

Por mais que ouvir música não aumente seu QI, ela traz benefícios psicológicos: pode proporcionar relaxamento, desencadear emoções, e promover prazer. E isso já basta para justificar a apreciação da arte. Seja Mozart ou Blur, o que vale é ouvir o que você gosta.

Maria Clara Rossini é jornalista (USP) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)