Gramática de línguas naturais e cultura: como se contam as coisas

Glauber Romling da Silva e Maria Adriana Leite

Será que a forma como expressamos contagem e medida varia de acordo com a língua que falamos? A linguística atual diz que sim. E será que a forma de expressarmos contagem e medida em uma língua vai determinar ou influenciar como expressamos isso em outras línguas em que também sejamos fluentes? Para essa pergunta a resposta é não. Questionamentos desse tipo, que envolvem a correlação entre a capacidade humana de adquirir línguas e capacidades cognitivas mais gerais, como contar e medir, têm como fundo uma das maiores questões científicas da história do conhecimento: dentre as capacidades humanas, o que há de natural e inato e o que há de cultural e adquirido pela experiência?

A capacidade de adquirir línguas é inata. A partir da exposição a dados linguísticos primários (que são as línguas faladas por nossos pais e comunidade), seres humanos demonstram competência gramatical em muito pouco tempo. Crianças em seus primeiros anos de vida são capazes de formular e experimentar enunciados a que nunca foram expostas. “Erros” sistemáticos, em que a criança generaliza regras gramaticais predominantes para outras estruturas identificadas como semelhantes, como eu escolhei, no lugar de eu escolhi, o golo, em vez de o gole, cabiu, em vez de coube, demonstram poder de análise, segmentação e ajuste. Crianças também se demonstram, por outro lado, incapazes de formular alguns enunciados mesmo ao serem exaustivamente expostas a eles. Isso pode ser verificado em estudos que percebem certa ordem previsível de aquisição de algumas partes da gramática, como a tendência em dominar a terceira pessoa (ele/ela) antes da primeira (eu) e da segunda (você/tu). Essa capacidade denota algum tipo de maturação específica necessária para a aquisição de certas estruturas linguísticas e não mera “imitação”. O que a criança “faz” para dominar uma ou mais línguas em tão pouco tempo parece ir além da mera aplicação de funções cognitivas gerais, mas indicar para a existência de uma capacidade específica de linguagem, ou “órgão de linguagem”, nas palavras de Noam Chomsky.  

Sobre a forma de expressão de contagem e medida em línguas naturais, podemos dizer que a explicação para o descompasso entre o que o mundo real apresenta e o que as línguas naturais humanas representam está na interação de fatores como o significado das palavras de uma língua (seu léxico), as estruturas linguísticas em que determinadas palavras podem ocorrer (sua sintaxe) e como essas palavras são usadas em determinados contextos (pragmática) (Lima, 2018). Vejamos como isso ocorre na prática.

Façamos o seguinte teste. Perguntemos a um adulto falante nativo de português “onde tem mais caneta?”. Na figura abaixo, na opção à esquerda, onde há cinco canetas pequenas, ou na opção à direita, onde há duas canetas gigantes? A primeira opção é a resposta óbvia.

Agora perguntemos ao mesmo falante “onde tem mais água?”. Na opção à esquerda, onde há cinco porções de água pequenas, ou na opção à direita onde há duas porções de água gigantes? Certamente, a tendência do mesmo falante é apontar a segunda opção como verdadeira.

Essa diferença de julgamento ocorre pois caneta e água são palavras nocionalmente distintas. Enquanto caneta é nocionalmente contável, água é nocionalmente massiva. Essa diferença reside no significado inerente dessas duas palavras, ou seja, em seu léxico. Nesse tipo de teste, palavras nocionalmente contáveis (caneta) apresentam respostas cardinais, ou seja, que contam os entes atomizados; já palavras nocionalmente massivas, privilegiam respostas que apontam para o volume, ou seja, que ignoram a atomização em porções (Barner & Snedecker, 2005).

Línguas naturais são sensíveis para a distinção entre entes contáveis e massivos. O contraste entre substantivos contáveis e massivos pode ser verificado gramaticalmente quando expandimos um pouco nossa lista de palavras e as experimentamos em certas estruturas, ou seja, em outras combinações sintáticas. Pode-se falar tranquilamente em português brasileiro “eu quero duas canetas”, assim como para qualquer palavra nocionalmente contável. Também pode-se falar “eu quero duas águas”, o que, necessariamente, pressupõe uma palavra contêiner de medida (garrafas, copos, barris etc). Em português, isso pode ser afirmado para várias outras palavras nocionalmente massivas, como cerveja (eu quero duas cervejas), óleo (eu quero dois óleos), e assim por diante. O português brasileiro permite que numerais ocorram diretamente concatenados a substantivos massivos, mas essa estrutura sintática não é permitida em todas as línguas.

Em dëne suliné, língua falada pelos Chipewyan no Canadá Central, nenhum substantivo nocionalmente massivo pode ser concatenado diretamente a um numeral. A frase solághe dzol (cinco carnes) não é aceita por nenhum falante dessa língua, pois a sintaxe numeral + substantivo é proibida. Nesse caso, é obrigatória a intermediação de uma palavra contêiner expressa: solághe nedádhi dzol, ou cinco porções de carne (dados de Wilhelm (2008) apud Lima (2014)). Tanto em português brasileiro quanto em dëne suliné, as diferenças e restrições de expressão da distinção entre substantivos contáveis e massivos devem-se a limitações puramente gramaticais do perfil sintático de cada língua. 

Voltemos ao português brasileiro. Ao expandirmos a lista de palavras nocionalmente massivas, percebemos que algumas dessas palavras não permitem a concatenação direta de numerais, é o caso da palavra sangue. Em um contexto amplo, um falante nativo de português rejeita expressões como cinco sangues ou, ao menos, não as aceita com a mesma naturalidade que aceita as palavras cerveja e água na mesma estrutura sintática. No entanto, em um contexto cultural mais específico, por exemplo na interação comunicacional entre enfermeiros de um banco de sangue, a expressão é perfeitamente aceita, e pode significar cinco porções de sangue em tubos, bem como se referir a tipos diferentes de sangue. Nesse caso, o que estabelece o contraste é o contexto pragmático (Srinivasan & Barner, 2016).

Em resumo, o denë suliné apresenta uma restrição puramente formal: a sintaxe da língua não permite. Em português, embora a sintaxe permita, as restrições são de cunho puramente cultural e pragmático.

Como as gramáticas contam as coisas

Os estudos citados mostram que não há uma relação um-a-um entre as naturezas dos seres e entes (sua ontologia) e a forma que as palavras que as expressam vão ocorrer nas gramáticas de línguas naturais humanas (Lima, 2018). De um lado, temos um mundo real onde há substâncias cuja referência básica pode ser atomizada (canetas) e substâncias que parecem necessitar de algo mais para serem atomizadas ou discretizadas (água, óleo, sangue). Do outro lado, há as gramáticas de línguas naturais humanas que codificam essas diferenças reais do mundo de maneiras distintas (em seu léxico, sintaxe e na sua interação com a pragmática).  

O contraste gramatical entre contáveis e massivos pode ser verificado para além da restrição observada em expressões do tipo numeral + substantivo. Essa distinção também afeta a distribuição de outros tipos de palavras. Em inglês, por exemplo, a palavra boy (menino) não pode ser precedida por most (todo/toda), a maioria (most boy), enquanto a expressão most water (toda água) é perfeitamente lícita. A palavra most somente é lícita com palavras contáveis quando precedida de um substantivo contável em sua forma plural, como em most boys (maioria dos garotos). O mesmo contraste ocorre com a boy (um menino), expressão perfeitamente lícita em inglês, em contraste a a water e a boys, que não são aceitas gramaticalmente. A distinção entre palavras contáveis e massivas não só pode ser revelada pela distribuição dessas palavras com numerais, mas também na distribuição de outros elementos que acompanham os substantivos em algumas línguas (como as palavras most e a em inglês) (Lima, 2014, 2018).

Em algumas línguas, o contraste gramatical entre palavras contáveis e massivas não se revela tão facilmente. No kheuól do Uaçá, língua crioula de base francesa, falada pelos povos indígenas Karipuna e Galibi-Marworno no município de Oiapoque, Amapá, Brasil, o contraste, à primeira vista, parece não existir. Qualquer palavra pode vir acompanhada de um numeral (sẽk khẽiõ – cinco canetas, sẽk djilo – cinco águas, sẽk djisã – cinco sangues), com a única exceção para a palavra kwak (farinha), que precisa obrigatoriamente de uma palavra contêiner para se juntar a um numeral (sẽk sak kwak – cinco sacos de farinha). Como os indígenas falantes de kheuól são grandes produtores de farinha, é fácil justificarmos essa exceção por questões pragmáticas e culturais. Em relação a palavras que podem acompanhar os substantivos (como vimos em inglês para most e a), o kheuól também quase não apresenta diferenças. Palavras como to (bastante), aie (nada), boku (muito), xak (cada), tu (todos), nen (nenhum), sél (somente), tut (todo), tahot (um bocado), xaken (cada um) e tximoho (pouco) podem preceder tanto com substantivos nocionalmente contáveis quanto massivos. A única exceção é un de thoa – alguns, que não pode preceder diretamente palavras nocionalmente massivas (un de thoa djilo –  algumas águas), e que, para ser gramatical, necessita de uma palavra contêiner intermediária (un de thoa butei djilo – algumas garrafas de água).

O kheuól do Uaçá, no entanto, expressa o contraste entre palavras nocionalmente contáveis ou massivas de maneira mais específica em sua gramática. Em contextos de anáfora pronominal, ou seja, em contextos em que um pronome pessoal (como ele ou eles) refere-se uma palavra já mencionada, a natureza contável ou massiva da palavra referida determina qual pronome pode ocorrer (Silva, 2021). Quando o antecedente é um substantivo contável, como tximun (criança), o pronome a ser usado é o plural ie (eles): Mahi kõtã tximun, mẽ ie tho ãbetã – Maria gosta de criança, mas são muito danadas. Por outro lado, quando o antecedente é um substantivo massivo, como djilo (água), o pronome a ser usado é o singular i (ele): Mahi axte djilo, mẽ i te tho xe – Maria comprou água, mas estava muito cara. É interessante notar que palavras que podem ter uma leitura contável ou massiva, a depender do contexto, também seguem o mesmo contraste. É o caso da palavra pul (galinha). Quando se refere a uma criação de galinhas, a leitura é contável, o que permite o pronome plural ie: Mahi kõtã pul, mẽ ie tho sal – Maria gosta de galinha, mas elas são muito sujas. Quando pul se refere à comida, a leitura é massiva, o que permite o pronome singular i: Mahi kõtã pul, mẽ i gãiẽ gu djifehã – Maria gosta de galinha, elas têm um gosto diferente.

Como duas gramáticas em uma mente contam

Já vimos que português, inglês, denë suliné e kheuól codificam a diferença entre substantivos nocionalmente contáveis e massivos de maneiras distintas, mas o que ocorre na mente de falantes bilíngues? Estudos com falantes bilíngues de português como segunda língua e de yudja como primeira (língua da família Juruna falada no Mato Grosso por cerca 800 pessoas) mostram que os julgamentos de quantidade permanecem diferentes (Lima, 2018). O yudja permite que qualquer substantivo ocorra após numerais: txabïu pïza dju wï – trouxe três canoastxabïu apeta dju wï – trouxe três (porções de) sangues. É importante notar que yudja tende a prover leituras cardinais (individualizadas) mesmo em contextos de substantivos massivos. Mesmo quando uma palavra contêiner é inserida, a interpretação tende a focar na localização das porções individuais que estão sendo contadas, em vez de definirem uma unidade de medida. A frase txabïu asa wï he saku he au – há três porções de farinha em sacos na beira do rio – pode ser interpretada tanto como há três sacos de farinha na beira do rio, quanto há três porções (colheres, bocados) de farinha em sacos. Para os mesmos indivíduos, os testes em português mostram outra tendência, que apontam menor possibilidade de substantivos massivos serem associados com leituras cardinais. Portanto, os julgamentos de falantes bilíngues parecem não sofrer influência mútua. Para esses indivíduos, enquanto na gramática do yudja todos os substantivos de natureza massiva podem ser codificados como contáveis, em português brasileiro, substantivos contáveis e massivos exibem status gramatical distinto.    

Considerações finais

Falantes de inglês, denë suliné, kheuól do Uaçá, português brasileiro, yudja ou de qualquer outra língua natural humana têm os mesmos aparatos cognitivos que lhes permitem ver, sentir, analisar, contar e medir as coisas do mundo a partir das mesmas condições. A distinção em relação à expressão do que se conta e do que se mede é um fenômeno puramente linguístico que não têm relação com capacidades gerais dos falantes ou a “filtros de percepção” norteados pela língua. A aquisição inconsciente e a consequente competência no uso de regras gramaticais tão sutis nos indicam que, sem ajuda de uma capacidade específica, bastante ativa nos primeiros anos de vida, o domínio uma língua por uma criança seria uma tarefa quase impossível.

Glauber Romling da Silva é doutor em linguística, com pós-doutorado em linguística, professor do programa de pós-graduação em letras e da licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. glauberomling@yahoo.com.br

 Maria Adriana Leite é doutoranda em educação e ciências matemáticas e professora da licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. mariaadriana@unifap.br

Referências:

Barner, D., & Snedeker, J. (2005). “Quantity judgments and individuation: evidence that mass nouns count”. Cognition97(1), 41–66. https://doi.org/10.1016/j.cognition.2004.06.009
Lima, S., (2018) “Quantity judgment studies in Yudja (Tupi): Acquisition and interpretation of nouns”. Glossa: a journal of general linguistics 3(1): 45. https://doi.org/10.5334/gjgl.359
Lima, Suzi, “The Grammar of Individuation and Counting” (2014). Doctoral Dissertations. 109.
https://doi.org/10.7275/msad-1e04 https://scholarworks.umass.edu/dissertations_2/109
Silva, G. R. da (2021) “A distinção contável-massivo no Kheuól do Uaçá”, LIAMES: Línguas Indígenas Americanas. Campinas, SP, 21(00), p. e021004. https://doi.org/10.20396/liames.v21i00.8661283.
Srinivasan, M., & Barner, D. (2016). “Encoding individuals in language using syntax, words, and pragmatic inference”. Wiley interdisciplinary reviews. Cognitive science7(5), 341–353. https://doi.org/10.1002/wcs.1396