Uma ação cooperativa e interdisciplinar para retomada da língua Kali’na

Gelsama Mara F. dos Santos, Evilania Bento da Cunha, Kassia Angela Lod Moraes Galiby, Evangelina Sonia dos Santos Jeanjacque, Davi Castro Gabriel, Nicole Sthefany Lod da Silva e Valber Rogério dos Santos Jeanjacques

O povo Galibi Kali’na é falante da língua kali’na, pertencente à família linguística Karib, e habita toda a costa caribenha, desde a Venezuela até o Brasil (Vidal, 2009).  Migraram para o Brasil na década de 1950, quando passaram a ser chamados de Galibi do Oiapoque, uma forma de se diferenciar dos Galibi-Marworno, povo que reside no rio Uaçá. Atualmente são identificados como Galibi Kali’na, uma população de aproximadamente 74 indivíduos, dos quais uma parte vive na aldeia São José, conhecida também como Galibi, na Terra Indígena Galibi, na margem direita do Rio Oiapoque, sentido Oceano Atlântico, e outra parte está espalhada pelo Norte e Nordeste do Brasil (Galiby, 2020).

Localização das Terras Indígenas Galibi, Juminã e Uaçá. Fonte: CUNHA,E.B. (2022)

Boa parte das pessoas que realizou a migração em 1950 já não está mais viva. Resta apenas um pequeno grupo que conhece profundamente a história de todo o processo migratório e ainda fala a língua kali’na telewuyu. O intenso contato com outros povos da região, a proximidade com a cidade e casamentos interétnicos resultaram em uma parcela da população miscigenada que tem o português como língua de comunicação.

A terceira geração tem como língua materna o português, que ocupa os espaços doméstico, escolar e ritualísticos. Essa geração não tem contato diário com a língua dos mais velhos, o que leva ao enfraquecimento na transmissão da língua kali’na telewuyu. Entretanto, sempre houve contatos com os parentes do outro lado da fronteira na Guiana Francesa, e com as diversas ferramentas tecnológicas, a comunicação tornou-se mais frequente, o que tem ajudado a fortalecer as tradições.

As pesquisas acadêmicas dos jovens kali’na têm fortalecido a preservação de bens culturais de natureza material e imaterial. Essas iniciativas ajudam a promover encontros entre os Kali’na do Oiapoque, Guiana Francesa e Suriname, com a realização de eventos culturais com músicas e danças, rompendo as fronteiras impostas pelo Estado e entrelaçando as relações socioculturais.

Este artigo se propõe apresentar os primeiros resultados do projeto de extensão Kali’na na escola: uma construção colaborativa de material didático em língua Kali’na, desenvolvido por uma equipe multidisciplinar das áreas de linguística e geografia do curso de licenciatura intercultural indígena da Unifap e também do curso de direito. O projeto teve como objetivo principal promover a capacitação em documentação linguística e cultural dos jovens para iniciar o processo de documentação e registro da língua kali’na telewuyu, a língua dos seus antepassados. A formação se deu através de métodos participativos, práticos e autônomos na produção do conhecimento.

Os Kali’na no Plâto das Guianas

A migração do povo Kali’na para o Brasil considerou os trâmites das relações internacionais diplomáticas, com uma negociação prévia da acolhida desse povo indígena por intermédio do órgão federal responsável na época, o Serviço de Proteção aos Índios – SPI. Embora a migração tenha ocorrido há 70 anos, algumas das crianças que viveram esse processo ainda estão vivas como guardiãs da memória e da língua Kali’na.

A migração faz parte da territorialidade Kali’na. Esse processo, na maioria das vezes, foi impulsionado por cisões xamânicas, que resultou na criação de diferentes grupos familiares que ocuparam outros espaços, outros territórios, ampliando a espacialidade Kali’na no Platô das Guianas, como aponta Cunha (2021) representado no mapa abaixo:

Presença do povo Kali’na no Platô das Guianas. CUNHA, E.B. (2022)

A presença Kali’na se estende por Venezuela, Guiana, Suriname, Guiana Francesa e Brasil. A partir do mapa, podemos observar que há uma dispersão e apropriação de território dentro de um espaço que permite a manutenção da identidade Kali’na, seja através de traços culturais, seja através da língua que é falada nos cinco países.

Compartilhamento de conhecimentos

A documentação linguística e cultural tem objetivos bem claros, que são: registrar, através de áudio ou vídeo, a diversidade, ainda existente, de culturas e línguas em seus contextos, criando materiais digitais para múltiplos usos e usuários. Os processos de capacitação em documentação linguística podem funcionar como estimuladores da valorização da língua, cultura e costumes, como fator essencial à preservação e à promoção da diversidade linguística e cultural do mundo.

Assim, uma equipe de jovens kali’na participou de oficinas de formação para uso de equipamentos de gravação de áudio e vídeo e técnica de organização dos materiais registrados.

Oficina de oficina de uso de equipamentos de gravação de áudio e vídeo. Fonte: acervo do projeto Kali’na

Houve também uma oficina de uso do Elan, um programa multimídia que permite o uso de áudio ou vídeo, usado para transcrever e traduzir eventos de fala (narrativas, entrevistas, conversas etc.). Nesta oficina os pesquisadores kali’na iniciaram o processo de gravação e transcrição dos áudios e vídeos em língua kali’na. Após a transcrição, fizeram a tradução para o português.

Print screen de uma sessão de transcrição e tradução no ELAN. Fonte: acervo do projeto Kali’na

Este primeiro exercício colocou esses jovens em contato direto com a língua. Mesmo não tendo sido alfabetizados em Kali’na, o desconhecimento da ortografia não foi um empecilho. Para realizar a transcrição, foram utilizados materiais escritos em Kali’na da Guiana Francesa e mesclados com a ortografia do português. O mais importante nesta experiência foi o desafio de diminuir a distância que existe entre esses jovens e a língua materna de seus pais.

As entrevistas possibilitaram o encontro com as histórias de certa forma já conhecidas, mas com o diferencial de serem contadas na língua kali’na, que permanece presente na oralidade.

Para a documentação foi preciso entrevistar um/uma kali’na falante da língua materna, e durante essa prática foi possível entrar em contato com as narrativas da migração da Guiana Francesa para o Brasil, das condições da viagem e o que se transportou além das pessoas, como mantimentos para a travessia e para os primeiros meses enquanto esperavam os frutos das plantações que seriam feitas na nova terra.

Iniciando um acervo

O projeto foi executado durante a pandemia de covid-19, e as sessões de gravação de narrativas com falantes kali’na foram prejudicadas pela restrição de circulação e aglomeração de pessoas. Porém, como se tratavam de pesquisadores kali’na em seus meios de circulação e vivência, foi possível realizar algumas gravações.

O projeto conseguiu construir um pequeno acervo de áudio e vídeo, somando 7 arquivos de vídeo (40 minutos), 1 arquivo de áudio (6 minutos), 3 sessões transcritas em língua kali’na e traduzidas para o português no programa Elan. Esses materiais estão em revisão para que sejam utilizados no contexto escolar, pois acreditamos que o contato com suas histórias em língua kali’na telewuyu desperte o desejo de retomar e aprender a língua de seus antepassados.

Sessão de gravação em áudio e vídeo de uma entrevista com uma Kali’na. Fonte: acervo do projeto Kali’na

Considerações e perspectivas

Hoje, o povo Kali’na está na 4º geração e o número de falantes da língua só diminui. Por isso, qualquer movimento em favor da revitalização da língua será positivo. A proposta do projeto em formar pesquisadores kali’na em metodologia de documentação linguística veio para somar com as iniciativas dos jovens que estão empenhados em criar estratégias e desenvolver ações para a revitalização e manutenção da língua e cultura kali’na. O trabalho colaborativo/participativo está provocando nos pesquisadores kali’na mais interesse em documentar e revitalizar a língua dos seus antepassados dentro da comunidade. Durante a execução das atividades do projeto foi perceptível os impactos causados, como empoderamento de pesquisadores indígenas e o fortalecimento dos laços entre gerações.

Gelsama Mara Ferreira dos Santos é doutora em linguística, com pós-doutorado em antropologia social, professora do programa de pós-graduação em letras e da licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. gelsama.santos@gmail.com

 Evilania Bento da Cunha é doutoranda em geografia, mestra em linguagens e saberes na Amazônia e professora da licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. evilaniabc@gmail.com

 Kassia Angela Lod Moraes Galiby é graduada em licenciatura intercultural indígena e graduanda em direito na Universidade Federal do Amapá. klod13tj@gmail.com

 Evangelina Sonia dos Santos Jeanjacque é graduada em licenciatura lntercultural indígena e graduanda em direito na Universidade Federal do Amapá. soniajeanjacque@gmail.com

Davi Castro Gabriel é graduando em licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. davigalibimarworno@gmail.com

 Nicole Sthefany Lod da Silva é graduanda em licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. lodnicoli@gmail.com

Valber Rogério dos Santos Jeanjacques é graduando em licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. valberjeanjacques@gmail.com

Referências

Cunha, E. B. “Dinâmica do uso da terra em relação aos fatores ambientais na Terra Indígena Galibi, Oiapoque-AP”. Colloque Transition agricole et environnementale des espaces ruraux brésiliens. Le Mans, 27 – 30 setembro 2021.
Elan (Version 6.2) [Computer software]. (2021). Nijmegen: Max Planck Institute for Psycholinguistcs, The Language Archive. Retrieved from https://archive.mpi.nl/tla/elan.
Galiby, K. A. L. M. “Processo de formação do povo Galibi do Oiapoque”. Impactos Migratórios; Oiapoque, 2018.
Pinto, C. M. Mapa da localização das Terras Indígenas Galibi, Juminã e Uaçá. 2019.
_____________________. Mapa da presença do povo Kali’na no Platô das Guianas. 2021. 
Vida, L. B. Povos Indígenas do Baixo Oiapoque: o encontro das águas, o encruzo dos saberes e a arte de viver. 3ª ed. Rio de Janeiro: Museu do Índio e IEPÉ, 2009.