Impunidade incentiva desmatamento ilegal no Brasil

Por Camila Carvalho de Carvalho

Embora haja um grande esforço de monitoramento para proteção da vegetação nativa, falta aplicação efetiva das leis

Em 2020 foram identificados 74.218 alertas no Brasil, totalizando uma área desmatada de 13.853 km2. Isso representa um aumento de 30% em relação ao número de alertas do ano anterior e 14% a mais de área desmatada, segundo o Relatório Anual de Desmatamento no Brasil produzido pelo MapBiomas Alerta, uma rede colaborativa de ONGs, universidades e empresas de tecnologia.

Alertas de desmatamento no Brasil em 2020. Fonte: Relatório Anual de Desmatamento no Brasil 2020, MapBiomas Alerta

O projeto MapBiomas, criado em 2015, tem como objetivo a sistematização de mapas sobre o histórico de ocupação de áreas rurais no Brasil. Já o sistema de alertas veio pela urgência em fornecer informações rápidas sobre os desmatamentos. Assim, os desenvolvedores do projeto reuniram-se a provedores de outros sistemas semelhantes (Deter/Inpe; Sad/Imazon e Sad Caatinga; e Glad – Global land analysis) e seus usuários (órgãos reguladores, proprietários de imóveis e fiscalizadores) para a criação do MapBiomas Alerta.

A finalidade é identificar as áreas de desmatamento de forma rápida e disponibilizar a informação através de uma plataforma pública e transparente. Pelo portal é possível gerar laudos, facilitando o processo de autuação pelos órgãos responsáveis.

Segundo Marcos Rosa, coordenador técnico do MapBiomas, o sistema de alerta “surgiu para desestimular todo o processo de desmatamento e garantir que eles tenham publicidade”.

No portal podem ser acessadas as imagens de satélites em alta resolução mostrando as propriedades antes e depois da ação de desmatamento. As imagens acima representam o maior alerta detectado em 2020, em Altamira (PA). Fonte: Relatório Anual de Desmatamento no Brasil 2020, MapBiomas Alerta.

Dados do desmatamento

Ainda segundo o Relatório Anual de Desmatamento, mais de 99% dos alertas registrados em 2020 eram de áreas que não possuíam autorização para supressão de vegetação registrada no sistema de controle do Ibama, ou seja, caracterizados como desmatamento ilegal.

Desde a criação da Lei da Proteção da Vegetação Nativa, também chamada de Novo Código Florestal, foi instituído o cadastro ambiental rural (CAR), que possibilita identificar o perfil dos proprietários e propriedades, as dimensões e a localização do imóvel. Isso permitiria aplicar a lei prevista em um programa de regularização ambiental, como explica o doutor em geoprocessamento pela Esalq/USP Paulo André Tavares, que integrou o Projeto Biota Fapesp sobre o Código Florestal em São Paulo.

Mesmo assim, foram detectados desmatamentos que sobrepuseram com 52.766 CARs (0,9%) em 2020. Embora não seja uma porcentagem representativa dos proprietários, a área desmatada dentro de propriedades cadastradas foi significativa.

“O problema é que o CAR é auto declaratório e há um aumento expressivo de registros do CAR em sobreposição com terras públicas não destinadas e sobreposição com áreas protegidas. Além disso, ter o CAR não significa que as propriedades vão cumprir a lei no sentido de restaurar seus débitos ambientais ou evitar o desmatamento ilegal”, afirma Aline Soterroni, pesquisadora da Universidade de Oxford e coautora do artigo “Implementing Brazil’s Forest Code: a vital contribution to securing forests and conserving biodiversity” publicado na revista Biodiversity and Conservation.

Por ser um sistema auto declaratório, o proprietário indica quais seriam, no respectivo imóvel, as Áreas de Preservação Permanente (APP, área protegida com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, por exemplo) e de Reserva Legal (área na qual a cobertura de vegetação nativa deve ser mantida ou restaurada, cujo percentual varia por bioma), previstas em lei.

Porém, do total de alertas registrados, 39% apresentaram sobreposição com áreas de Reserva Legal, Áreas de Preservação Permanente ou Áreas de Nascente declaradas no cadastro.

Em relação ao tamanho das propriedades, uma análise apresentada no boletim Sustentabilidade em Debate feito pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) mostrou que apenas 6% do total de imóveis abrangem 59% da área total com déficit ambiental no Brasil. “Esses 115 mil grandes imóveis (maiores que 15 módulos fiscais) acumulam um déficit de 11 milhões de hectares, sendo 6,3 milhões de ha de Reserva Legal e 4,7 milhões de ha de APPs”, diz o boletim.

“No caso do Estado de São Paulo são mais de 340 mil propriedades, porém, aplicando todas os descontos ambientais previstos em lei, vemos que apenas cerca de 1200 propriedades respondem por 50% dos déficits estimados de Reserva Legal”, afirma Paulo André Tavares.

Impunidade

Um dado que preocupa especialistas é 70,9% das áreas desmatadas em 2020 estavam em propriedades privadas – que detêm 53% de toda cobertura de vegetação nativa no Brasil.

Um pequeno número de propriedades é responsável pela maior área desmatada, embora haja um monitoramento eficiente com imagens de alta resolução e presença de instrumentos legais como o CAR para fiscalização, monitoramento, planejamento e controle do desmatamento. Mesmo assim, menos de 1% das áreas desmatadas são multadas, embargadas ou sofrem alguma ação por parte do Estado.

“Essa minoria (mas que desmata muito) é barulhenta e está representada no Congresso. A bancada ruralista luta para anistiar desmatadores ilegais”, aponta Marcos Rosa, do MapBiomas, que cita ainda outros agravantes como a desestruturação e enfraquecimento do Ibama pelo atual governo.

O pesquisador ressalta que há um esquema bem conhecido de desmatamento em maior escala na Amazônia (onde houve 79 % dos alertas de 2020), que é realizado em terras públicas. Há a remoção da madeira, em um processo de escala industrial que envolve grandes maquinários, e posterior transformação em pastos. Anistiados a partir de novas legislações, conseguem o título da terra e a propriedade é comercializada para o plantio de soja. “Falta vontade política para barrar”, afirma Marcos.

Em contrapartida, vontade política não falta para a discussão do Projeto de Lei (PL) 2.633/2020, já aprovado pela Câmara dos Deputados e que segue para o Senado. O PL amplia a possibilidade de regularização fundiária de terras públicas por auto declaração, anistiando criminosos ambientais. “A bancada ruralista luta pela anistia para desmatadores ilegais e para quem ocupou irregularmente ganhar posse”, afirma Marcos, relembrando que é um processo recorrente: “a cada cinco anos o Congresso concede nova anistia”, diz.

Medidas necessárias

Frente a esse cenário político desfavorável ao meio ambiente, a principal linha de ação da equipe responsável pelo MapBiomas Alerta atualmente é garantir que as informações sejam acessadas pelos órgãos fiscalizadores. “O trabalho está sendo uma articulação institucional com o Ministério Público e com os estados para garantir que o dado seja utilizado, pois é público. São 160 mil alertas de desmatamento desde 2019, toda semana são emitidos por volta de 1500. É muita coisa. Temos que garantir que todos tenham algum tipo de ação”, avalia Marcos Rosa.

O pesquisador comenta que outra estratégia tem sido o diálogo com empresas, desestimulando-as a prosseguirem com fornecedores que desmatam, e também com instituições financeiras responsáveis por linhas de crédito rural. “Precisamos também dar voz para a maioria que trabalha da forma correta, garantir que elas estejam bem representadas no Congresso”, afirma Marcos. “E avançar também numa agenda de medidas econômicas e financeiras para beneficiar esses proprietários que cumprem a legislação e que puna os devedores”, completa Aline Soterroni.

Além disso, Paulo André Tavares ressalta a necessidade de pressionar o governo para que haja a devida implementação da legislação. “Existe um Código Florestal desde a década de 1960, e que nunca foi implementado de fato. Os esforços hoje têm que ser focados nessa implementação E, claro, não há como discutir desmatamento sem falar sobre a questão fundiária no Brasil, a concentração de terras, interesses políticos e sem ser sob o olhar da justiça climática e social”, conclui Paulo André Tavares.

Camila Carvalho de Carvalho é formada em biologia (UFSCar), com mestrado em oceanografia biológica (FURG). Cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)